domingo, 31 de dezembro de 2023

Nem lhe teni, senhor árbitro!

O grande Costeado. João Costeado, que, vem hoje nos jornais, regressa ao seu Vitória de Guimarães para tomar conta da braçadeira que o treinador Paulo Turra não pode usar. O grande Costeado, que jogou no meu Fafe na passagem da década de 1970 para a década de 1980 e que brilhou naquela extraordinária equipa de Nelo Barros que fez frente ao Sporting nas meias-finais da Taça de Portugal e que era assim, tal como a anunciei aos altifalantes do estádio cheio como um ovo: Zé Maria, Costeado, Cândido, Castro e Manuel Fernandes; Albano, Sousa Pinto e Valença, Valdemar, Daniel I e Nogueira. Que luxo! Que máquina! Quem no-la dera naquele ano administrativo em que fomos cheirar a primeira divisão! Nem teríamos descido, digo eu...
Mas a tal meia-final da Taça, e já era a segunda em apenas três anos. Nós na segunda divisão, que era o nosso sítio, e o Sporting que era o Sporting. Foi na época de 1978/79, no nosso campo, e roubaram-nos a glória da final no Jamor, ou pelo menos a hipótese de um segundo jogo em Alvalade, roubaram-nos, dizia, com um penálti produzido pelo árbitro e convertido por Jordão aos 94 minutos, isto é, já no prolongamento. A peregrina falta que deu origem ao castigo que teve tanto de máximo como de injusto foi assinalada, imaginem, ao nosso Costeado.
O João era uma riqueza de moço. E o Costeado, que depois até jogou quatro vezes pela Selecção, à pala de Saltillo, era um defesa direito velocista porém tecnicamente equilibrado, raçudo e amiúde sarrafeiro. Mas estava inocente naquele dia, diga-se em abono da verdade. A Bola, o insuspeito jornal do Benfica, fazia até notar que o árbitro "julgou mal o famigerado lance de Costeado, conferindo-lhe, primeiro, uma natureza e uma intencionalidade, depois, que a nosso ver não teve", e parece que estou a ouvir o Joaquim Rita, com vírgulas e tudo.
Ora bem. Acontece que naquele tempo não havia VAR, o que não era mau de todo, porque assim também não avariava, mas não havia VAR. O VAR daquele tempo eram o Carlos Manuel ou o André a andarem sempre à volta do árbitro a dizerem o que devia ou não devia ser marcado, e nunca falhava. À falta do Carlos Manuel e do André (e, já agora, do Bruno Fernandes, que é actualmente VAR em Inglaterra), o próprio Costeado deu conta do recado, colando-se ao juiz da partida, Santos Luís, agarrando-o respeitosamente pelo avental, pedindo-lhe, rogando-lhe, rezando-lhe, implorando-lhe, jurando-lhe, repetindo-lhe quase em lágrimas, estou em dizer que mesmo em lágrimas - Eu nem lhe teni, senhor árbitro! Nem lhe teni, senhor árbitro! Nem lhe teni!...

O árbitro, o senhor árbitro, não reverteu a decisão. Chamaram-lhe "o roubo do século". Conta A Bola que "Santos Luís saiu fardado de polícia". E Costeado, baptizado pelo Valença, ficou o "Teni"...

P.S. - Publicado originalmente no dia 7 de Setembro, este foi o texto mais lido no Fafismos durante o ano de 2023.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Coitadinhos dos comboios!...

Foto Hernâni Von Doellinger
As notícias dizem que a greve na CP dos próximos dias 2 e 4 de Janeiro vai "afectar" ou "perturbar" os comboios, e eu fico com pena. Dos comboios, evidentemente. A situação dos passageiros, isto é, das pessoas, também me incomoda um bocadinho, e felizmente Fafe está livre, mas os comboios, realmente, coitados dos comboios...

Ovos de galo, havia-os no Peixoto

A ciência ainda não encontrou uma resposta plausível e, pelo menos, isenta de misoginia: porque é que os ovos de galo são maiores do que os ovos de galinha?

A esse respeito, hoje é Dia Mundial do Ovo. O Peixoto, em Fafe, o grande Peixoto, para além de confeccionar as melhores moelas de coelho do mundo, tinha às vezes uns ovos de galo, cozidos e nada mais, que também eram uma especialidade. Na semana da Páscoa, derivado à tradição, os ovos eram evidentemente de coelha. Entretanto o Peixoto passou o negócio, adeus ovos, adeus moelas, e acabou-se o que era bom. É assim. Fafe vai-se perdendo...

P.S. - Este apontamento, publicado originalmente no dia 13 de Outubro, foi o segundo texto mais lido no Fafismos durante o ano de 2023.

Ó faxavor!

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Fafe cheirava a sabão amarelo

Do que eu gostava mais em Fafe, do que eu realmente sinto falta? Do cheiro. Fafe tinha o seu próprio cheiro, distintivo, memorial. Fafe cheirava a esmero, cheirava a limpo, a lavado. Fafe cheirava a sabão amarelo. E era isto o ano inteiro, mais ainda na semana da Páscoa, quando as nossas mães asseavam a casa especialmente para receber o Senhor. Fafe, em boa verdade, era uma acolhedora mistura de cheiros bons, um bouquet requintado, mas o honesto odor do sabão amarelo pairava sobre tudo e sobre todos. Sobretudo.
Parecia penitência, castigo. As nossas mães, dobradas horas a fio com os desgraçados joelhos enfiados naquele caixote de madeira a que uns chamam tacoila e outros chamam cunco ou outro nome qualquer, conforme a região, em todo o caso instrumento de suplício, ou então com um simples farrapo servindo de rodilha ou joelheira, as nossas mães, dizia, lavando, lavando, esfregando, esfregando, água, sabão amarelo e palha de aço, e depois chupar e secar, e depois, e só depois, talvez no dia seguinte, outra vez o castigo, outra vez a penitência, a cera regrada, o lustro puxada e repuxada, até que o soalho brilhasse como um espelho, como o sol. E ficava o cheiro. Aleluia!
De resto, os domingos em Fafe cheiravam que era uma categoria. Os domingos em geral. Cheiravam a desodorizante, a perfume, a brilhantina, a laca, a graxa, a sebo e a naftalina - tudo misturado, na missa das onze, dava uma certa vontade de gomitar, não vou mentir -, mas o melhor era o que se passava entretanto nas ruas da vila antiga, logo desde as primeiras horas da manhã, aquele extraordinário aviso dos velhos fogões de lenha, tão de confiança, tão competentes, tão autónomos, assando vitela tenra e dourada com todos os vagares, com todos os matadores, o cheiro e o fumo magníficos escapulindo-se pela chaminé carbonizada ou pelo telhado mal aparelhado e alastrando de porta em porta, como maldição de filme de mortos-vivos de hoje em dia, mas em bendição, que outros eram os tempos, graças a Deus.
Fafe cheirava. Embora hoje possa não parecer, Fafe era uma povoação rural, íntima, pacata, território de lavradores teimosos e polivalentes - tirante o Largo, isto é, o por Cima e o por Baixo da Arcada, e para além da Fábrica do Ferro e do Bugio, que eram outras vidas. Só por exemplo, toda aquela zona envolvente da Torralta, onde agora estão o bairro tão bem tratado, as várias escolas, o Pavilhão Municipal, as vivendas, as estradas e avenidas, os semáforos, as rotundas, a Biblioteca, os Bombeiros, a Feira, a Central de Camionagem e por aí fora, aquilo era tudo campos, terrenos agrícolas particularmente fecundos, os campos do Santo, Granja e São Gemil, campos, caminhos, quelhas, noras e minas, levadas e poças, com muito milho, fruta e umas quantas pipas de vinho. Era zona de carros de bois, aquela, e actualmente abunda de automóveis e tem o chão pintado a furta-cores. Fafe realmente cheirava. E à semana metia a cotio o cheiro a eido, a estrume, a lavadura, a gado, a galinheiro, a couves cegadas, a erva acabada de cortar, a terra seca acabada de regar, a medas húmidas, a chuva era farta e cheirava muito bem em Fafe.
Fafe tinha o cheiro doce das glicínias, cheirava a alfádega, a cidreira, a amoras, a tílias, a uvas americanas, aos pinheiros de São Jorge e Castelhão, a castanhas assadas à beira do tasco do Zé Manco, ao azeite do Moniz e ao bacalhau frito da Dolorzinhas no tasco do Paredes. Cheirava a maçãs guardadas nos barrotes secretos dos tectos, cheirava a geleia e a marmelada, a vinho novo, a aletria quente, a canela. Fafe cheirava todo o ano a Natal. E cheirava a piche derretido ao sol das tardadas de Verão, e cheirava a cano de escape de motorizadas sem cano de escape na noite atolambada da passagem de ano. Fafe cheirava à aguardente e ao engaço do fantástico alambique do Cinema, copiosamente manobrado pelo Sr. Zé dos Alhos, parece que ainda o estou a ver e ouvir.
Fafe cheirava a roupa a corar. Cheirava ao avental sempre lavado da minha mãe, que cheirava tão bem a sabão, a segurança e a felicidade, e eu, criança, pequenito, abraçava-me a ele, a ela, com quanta força tinha, e fechava os olhos à espera que o tempo à minha volta não passasse. É. Fafe cheirava à minha mãe.

P.S. - Este texto,  publicado originalmente no dia 11 de Novembro, ocupa o terceiro lugar no pódio dos textos mais lidos no Fafismos durante o ano de 2023.

Sim, uns pontos...

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Eram uns pontos...

Havia uns tipos com piada, em Fafe. Piada fina e piada grossa, conforme. Contadores de anedotas, abrilhantadores de saraus de sociedade recreativa, animadores de café, pregadores de partidas, havia-os com fartura naquele tempo. E eram uns pontos!
As anedotas vinham de fora, regra geral. Fafe não tinha então produção própria, quero dizer, os nossos piadistas eram mais divulgadores do que criadores. As redes sociais funcionavam boca a boca, como a respiração salva-vidas, e as novidades humorísticas chegavam até nós trazidas pelos vendedores ou caixeiros-viajantes que visitavam regularmente o comércio e a indústria locais. Debitar umas larachas, se possível frescas em ambos os sentidos - "já sabe a última?, é de bolinha!" -, fazia parte do ofício. Primeiro as anedotas e só depois a nota de encomenda, se corresse bem, embora fosse tudo dar ao mesmo.
As excepções talvez fossem o António Augusto Ferreira e o extraordinário Zé Manel Carriço. O Tónio Augusto, pai do omnijornalista Carlos Rui Abreu, o qual, diga-se de passagem, é o melhor relatador de futebol português de hoje em dia e parece que Fafe ainda não tomou sentido disso, o Tónio Augusto, era aqui que eu ia, abastecia-se de anedotas em Guimarães, onde por aquela altura já se encontrava estabelecido. A loja chamava-se T111, se não estou em erro, suponho que derivado à sua localização, no Toural, e ao número da porta, 111, ali a meia dúzia de passos da Basílica de São Pedro, cujos sinos tocavam, e não sei se ainda tocam, o Hino de Guimarães às prestações de quartos de horas. Quem também tocava o Hino de Guimarães, mas de uma ponta à outra e apenas uma vez por ano, era a Banda de Revelhe quando ia às Gualterianas e fazia a rompida na cidade velha, em frente à Câmara Municipal, e eu sei de cor a música do Hino de Guimarães e esta parte, sou obrigado a admitir, não abona nada a meu favor.
E então o que é que se segue? O Tónio Augusto todos os dias trazia de Guimarães anedotas ainda vivinhas, praticamente por estrear, e, quiséssemos ou não, contava-as pelas noites dentro do Verão fafense, na "esplanada" do velho Peludo, temperadas com fininhos e tremoços. Depois, terminada a função, metia-se no carro e ia para a Póvoa, ter com a família, e só lhe ficava bem.
A piada era fácil para o Tónio Augusto, porque ele era cómico de nascença. Ele era, dir-se-ia hoje, um predestinado, um Cristiano Ronaldo da pilhéria, um Lionel Messi do chiste. Uma vez, jogava o Tónio Augusto nos juniores da AD Fafe, no Campo da Granja, e rachou ou racharam-lhe a cabeça. Encostou ao banco, que era mesmo um banco, em madeira, corrido, ao fundo dos cinco réis de bancada, e o massagista, talvez o João Americano, tratava de enfiar-lhe uns agrafos no lanho escarrapachado e sanguinolento (não tenho a certeza se não estaria mesmo a ser cosido), mas ele não deixava, queria voltar ao jogo. Barafustava um, ralhava o outro, um a puxar para a frente e o outro a puxar para trás, escangalhados como parelha de bêbados matinais. Era mesmo de rir, parecia cinema mudo mas já em sonoro e a cores...
O Zé Manel Carriço era outra coisa. Ele não contava anedotas. O Zé Manel contava as suas histórias, verdadeiras mais ou menos, episódios protagonizados por ele próprio, mas cenas tão improváveis, tão esdrúxulas, tão gagas, com um fim tão inesperado e teatral, e tão bem contadas, que passávamos noites inteiras naquilo, só a ouvi-lo. E o Zé Manel era o primeiro a rir-se do que dizia, e ria-se sonoramente, afagando a pêra elegante, e o seu riso era como um fósforo em mato seco. E nós à volta éramos um incêndio de gargalhadas, incontrolável. Os mesmos empregados do Dom Fafe que, da uma às cinco da manhã, pediam, de meia em meia hora, "Ó Sr. Zé Manel, por favor, precisamos de fechar, olhe a polícia, temos de ir dormir!", às seis já só queriam "Ó Sr. Zé Manel, conte mais uma!"...
Depois tínhamos os "profissionais", o Landinho Bacalhau, o antigo, e o Zé Fala-Barato, os nossos microfónicos apresentadores de espectáculos, paus para toda a obra, cheios de categoria, e sempre com uma chalaça na ponta da língua. E tínhamos os pontos avulsos. As malandrices do Valença, as aventuras do Pimenta, as tiradas do Serafim d'Eiteiro, as saídas do Moisés, o Toninho da Luísa, que eu gostava de imaginar DaLuísa por causa do DeLuise americano, o Aníbal Carriço, o Zé do Registo em dias bons e fora do horário de expediente, o Zé Maria Sapateiro, o Sr. Lem, o Rates da Fábrica, o Manel Fogueiro, o Toninho do Café Chinês, o Aurélio Funileiro, o Chico Americano, o Tónio da Legião e o Aristides Carteiro, amiúde o Sr. Aristeu da Loja Nova e até o Joãozinho Summavielle, que aparecia pouco e só à noite mas não deixava os seus créditos por mãos alheias.
Estávamos, com efeito, muito bem servidos. Aliás, sobre toda esta esplêndida plêiade de bem-dispostos benévolos e geralmente militantes, tínhamos também a nossa conta de reconhecidos gabarolas e mentirosos, e Fafe era realmente abundante. Mentiam tanto e tão mal, patranhavam tão estrambolicamente os nossos queridos aldrabões, que acabavam por ter piada! Eram uns tontos, mas também uns pontos...

P.S. - Texto publicado originalmente no dia 15 de Setembro, assinalando o Dia Internacional do Ponto. Ocupa a quarta posição no ranking dos textos mais lidos no Fafismos durante o ano de 2023.

Só se perdem as que.

Foto Hernâni Von Doellinger

O jogo do pau de... Cabeceiras de Basto

Dizia eu: E não. O jogo do pau não é "uma das maiores tradições do concelho" de Fafe, ao contrário do que diz, por outro lado, a néscia propaganda autárquica. É tão tradição em Fafe como em Lisboa, em Trás-os-Montes, no Ribatejo, na Estremadura, no Algarve ou na Galiza. O jogo do pau é tão tradição em Fafe como a sueca, o futebol ou a malha, a petanca, o esconde-esconde ou o dominó, que se jogam em todo o lado.
Não. O jogo do pau não foi inventado em Fafe, não deriva da Justiça de Fafe. A Justiça de Fafe é outra coisa.
Dizia eu, no texto "À justiça o que é da justiça" com que, a 3 de Agosto de 2022, abri este blogue, Fafismos, então denominado "De Fafe com muito gosto". E que se segue? Soube-se ontem, o "Jogo do Pau de Cabeceiras de Basto" acaba de ser classificado como património cultural imaterial. Exactamente, o jogo do pau de Cabeceiras de Basto.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Catolicamente casados

Vai haver amanhã uma festa muito bonita no Cinema. O "Natal em Família", promovido pelo Arciprestado de Fafe com a colaboração do Município de Fafe, chamemos-lhe um evento lúdico-religioso que "que este ano conta com a participação de 36 casais" e, "pela primeira vez", com a presença de D. José Cordeiro, arcebispo de Braga.
Leio no Expresso de Fafe que "o momento é de homenagem aos casais que celebraram ao longo de 2023 especiais bodas matrimoniais (25, 50, 60 ou mais anos) e também àqueles que casaram catolicamente ao longo deste ano."
Faz-me espécie, isso de o sucesso do casamento ser medido em quantidade e não em qualidade, em felicidade. Isso de o casamento só contar da porta para fora, isso de o casamento ser bom desde que dure muitos anos - ainda que seja uma merda, violento, encornado, infeliz, um inferno, como se Deus nos quisesse assim desgraçados, e não quer. Isso do incenso pacóvio aos que "casaram catolicamente", mas que raio de expressão, e parece que são melhores do que os outros casais, e não são.
E sobretudo faz-me espécie isso de o convidado especial da quermesse ser o Sr. José Cordeiro, que tem 56 anos e é solteiro. Em princípio. Catolicamente solteiro. O que sabe ele de casamento?
Já que a mim, em Fafe, ninguém me chama, eu que conto com uma experiência de mais de quarenta anos ao serviço do casamento, isto é, a casar desde 1981, e sempre com a mesma mulher, realmente uma extravagância na minha profissão, já que o Arciprestado e respectivo Município desconsideram o saber feito deste humilde fafense amiúde católico e quiçá esdrúxulo mas ainda assim tão à mão e em conta - bastava mandarem-me o dinheiro para o bilhete da camioneta, ida e volta -, ao menos então, se o assunto é matrimónio, que convidassem o Sr. Pinto da Costa ou alguém de traquejo e gabarito similares, como, por exemplo, o Sr. José Cid ou o Sr. Pedro Santana Lopes, ou, isso meu Deus é que seria de arromba, a Sra. D. Luciana Abreu.

Já não há mulheres com bigode

Foto Hernâni Von Doellinger
Sempre gostei de ir a Ponte de Lima por causa do arroz de sarrabulho e dos bigodes das mulheres. Mulheres feias é ali. Feias e bigodudas. Basta um raio de sol espreitar por entre as nuvens e elas saltam todas não se sabe donde para as bordas do rio a arejar as carantonhas e respectivas piaçabas. Palavra de honra, é um espectáculo digno de ser visto. Comprar um cartucho de jornal cheio de castanhas assadas e comê-las, ainda quentes, enquanto observamos o mulherio, picadeiro acima, picadeiro abaixo, como num desfile de moda mas para bigodes fêmeos, nove pontos para aquela, treze para a das suíças, há lá melhor maneira de passar um pedaço de tarde! Não sei o que a bela vila alto-minhota tem, mas é assim que as coisas são.
Cuidado. Antes de me soltarem os cães, façam o favor de perceber que eu não disse que as mulheres limianas são bigodadas e feias. Não. O que eu digo é que, sobretudo aos fins-de-semana e feriados, elas, as bigodadas e feias, concentram-se todas ali, à beira-Lima, como se fosse um congresso de camafeus ou um concurso de feieza. Numa dessas ocasiões, eu próprio fui confundido com a cantadeira de um rancho folclórico derivado às minhas barbas. De resto, não sei de onde elas vêm, as mulheres abigodadas, nunca perguntei.

Vou a Ponte de Lima desde pequenino, desde o tempo das excursões ao Alto Minho organizadas pelo meu avô da Bomba, sobrevivente dos sete ofícios. Aqui atrasado tornei lá todo contente e tive um desgosto muito grande. A vila mais antiga de Portugal, Ponte de Lima monumental e histórica, bela, tradicional, está mais pobre. As mulheres continuam particularmente feias, honra lhes seja, mas deitaram abaixo os bigodes. Sentei-me no banco do costume, junto à vendedeira de castanhas, queimei os dedos a comê-las, mas bigodes de mulheres, que era ao que eu ia, nem um para amostra. É lamentável. Os cremes depilatórios estão a dar cabo do nosso património.
Não sei se volto a Ponte de Lima. Ainda por cima, o arroz de sarrabulho também não estava grande coisa. Mas as castanhas eram bem boas.

P.S. - Este texto, publicado originalmente no dia 2 de Setembro, assinalando o Dia Mundial da Barba, foi o quinto mais lido no Fafismos durante o ano de 2023.

O Santo da minha devoção

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Os bons hábitos ainda moram em Fafe

Sodoma e Gomorra
Os sodomitas, habitantes de Sodoma, ficaram
com a pior parte da fama. Os gomorritas
safaram-se, vá-se lá saber porquê, e nem sequer
constam nos dicionários. 

Apraz-me registar que, apesar da minha prolongada ausência, Fafe lá consegue aguentar-se, preservando pelo menos duas das suas mais icónicas e respeitáveis tradições: o jogo e a prostituição. Alegraram-me sobremaneira as notícias do final da passada semana. Notícias animadoras, e logo duas, a primeira dando conta de um apartamento que era usado em Fafe "para negócio de prostituição" e a segunda a propósito da detenção de catorze indivíduos num café "em Arões Santa Cristina por jogo ilegal". Detenção "em flagrante", no caso da batota, não sei em que circunstâncias no que diz respeito ao putedo, e eu gostaria muito de saber, porque, verdade seja dita, é sempre mais interessante de se ver. Por causa do corpo de delito.
Confesso. Eu já temia que, fruto de sucessivos banhos de cosmopolitismo e cultura de croquete, dados evidentemente nas minhas costas, Fafe se tivesse aos poucos deslavado e transformado numa dessas terras virtuosas e insossas, que nem fodem nem saem de cima, talvez até esquecendo e renegando as suas mais ancestrais e emblemáticas tradições, como por exemplo as corridas de jericos ou aquela tão bonita de afogar gatos no rio. Nos nossos rios e poças, que, não desfazendo, também são uma categoria. Mas não. Felizmente, não. Fafe mantém-se fiel ao seu passado glorioso, um farol civilizacional, uma metrópole de vanguarda moral, uma inapagável Las Vegas do vale do Ave com barragem e tudo, encravada entre a Póvoa de Lanhoso e Felgueiras, a zona de Basto, Vieira do Minho e Guimarães, consoante o lado por onde se lhe entre. E fiquei contente, claro que fiquei contente!
No caso da prostituição, o nosso apartamento, quero dizer, o de Fafe, funcionaria em estreita ligação com um outro apartamento localizado na Póvoa de Varzim, o que se compreende perfeitamente, uma vez que, como toda a gente sabe, e eu já expliquei, a Póvoa de Varzim é Fafe no Verão. Já a conexão a um terceiro apartamento, em Viana do Castelo, poderá de alguma forma estar relacionada com as excursões que o meu avô da Bomba organizava antigamente a Fátima e, lá está, ao Alto Minho, com pernoita obrigatória em Viana. Prometo averiguar.
Quanto ao jogo ilegal, é a cara chapada de Fafe. Do pilas do Serafim Lamelas às madrugadas no Club Fafense ou no Fernando da Sede, do bilhar aos flippers no Peludo, em Fafe jogava-se a tudo, apostava-se por tudo e por nada. E sempre a dinheiro. E por isso daqui envio a minha mais compungida solidariedade aos catorze maduros, catorze magníficos, fafenses à antiga, que foram apanhados em Arões com as calças na mão, por assim dizer.
Foi um rude golpe. Juntamente com os jogadores propriamente ditos, dos 27 aos 83 anos, a GNR deteve também duas mesas e dezanove cadeiras consideradas perigosas, para além de um baralho de cartas há muito procurado pelas autoridades. Um rombo no negócio, um tiro no porta-aviões. Mas todos juntos haveremos de reerguer-nos. Bem hajam!

P.S. - Este texto, publicado originalmente no dia 20 de Junho, foi o sexto mais lido no Fafismos durante o ano de 2023.

Quando o Zé Cão de Fafe derrotou o boxevista do Porto

Foto Hernâni Von Doellinger
Guardo gratíssimas recordações de São Clemente de Silvares. No Ademar, tasco praticamente gourmet e tão caro quanto excelente, com a ramadinha à porta e lá dentro o vinho de categoria a refrescar no poço, eu costumava encontrar o Zé Cão, que tinha trabalhado com o meu pai na Fábrica do Ferro e era o homem mais alto do mundo. Pelo menos era o homem mais alto de Fafe e arredores, e não há mundo melhor do que aquele. O Zé Cão, sentado, os joelhos batiam-lhe nos queixos. Era altíssimo, pele e osso, vagaroso, comovido, desengonçado, gentil, decilitrado, só, pobre, criança em corpo descomunal, com uns sapatões de palhaço e sempre agarrado à caneca de verde tinto, que naquelas mãozonas mingava até parecer uma xícara de casinha de brincar. Mãos hirsutas, nodosas e honestas. O Zé Cão era um homem com zê grande.
O Valença, uma das glórias do futebol local, gostava de se meter com o Zé Cão. Na verdade, o Valença gosta de se meter com toda a gente, mas o que aqui interessa é o Zé Cão. E o Valença, quando o apanhava a jeito, obrigava o Zé Cão a contar vezes sem conta as suas idas ao Porto, ao Royal e ao Derby, velhos cafés de putas na Rua Chã, quase em frente um do outro, e o bom do Zé ia lá para aliviar o tesão a preço combinado, e uma famosa ocasião teve mesmo de se haver com um "boxevista", um "boxevista" a sério, na parte de cima da Ponte de Luís I, ali ao pé, discutindo exactamente por causa das senhoras. E o Zé Cão ganhou. Ganhou, evidentemente, nem podia ser de outra maneira. E a piada a espremer era tão-só fazer o Zé Cão dizer "boxevista", isto é, "bocsvista" ou "boquessevista". A mando do Valença, o Zé Cão dizia, e tornava ao combate, e fazia os gestos como foi, e disparava ganchos e uppercuts, cruzados e directos, e era um campeão sem sair do seu canto, desajeitado, quase caindo, a lutar por merecer mais um quartilho que uma alma caridosa lhe pagasse...
Lembro-me tão bem. O Zé Cão de São Clemente, o nosso gigante bom. E acabo de pensar que nem é nada Zé Cão: para os devidos e legais efeitos, passa doravante a ser Zecão, de Zeca grande, tão grande como o seu imenso coração.

P.S. - Hoje é Boxing Day e eu lembrei-me deste velho texto a propósito do nosso Zé Cão e do grande Valença. É verdade que não tem nada a ver com o assunto, mas, e aqui ninguém me pode desmentir, estes são dois fafenses que valem sempre a pena, e essa é que é essa.

É triste o fim do Natal

O fim do Natal é muito triste. Terminasse o Natal em m, Natam, terminasse o Natal em x, Natax, terminasse o Natal em y, Natay, terminasse o Natal em z, Nataz, e, quer-se dizer, o fim do Natal até teria alguma piada. Agora, terminar em l, Natal, um esquelético tracinho ao alto, um pauzinho desamparado armado em guarda-redes, é realmente uma tristeza muito grande, um fim que ninguém merece.

Já fostes!...

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 24 de dezembro de 2023

sábado, 23 de dezembro de 2023

O Padre João Aguiar


O Padre João Aguiar celebraria hoje 74 anos se não tivesse falecido no passado dia 27 de Abril. E pelo menos sorriria ao ler esta abertura assim tão idiota. João Aguiar Campos, a quem fizeram a desfeita de fazer cónego, foi um dos mestres da minha vida, e eu disse-lho em tempo útil, portanto não vou falar disso agora. Trago é aqui uns versinhos que são dele e que eu guardo há 50 anos. Mandei-lhos em fotografia pelo Natal de 2017, ficou admirado, não sabia deles, e constou-me que então os publicou nas suas redes sociais. O original continua comigo.
Os versos escreveu-os o Padre João Aguiar propositadamente para serem lidos na abertura de um concerto de Natal que o orfeão do Seminário de Filosofia gravou com meses de antecedência para a então Emissora Nacional no auditório do Conservatório de Braga derivado à acústica, sob a supervisão técnica e embebecida do maestro Silva Pereira, se não me engano. O ensaiador e regente do orfeão era o cónego José Sousa Marques, isto é, o famoso Galinhola, disso tenho a certeza. Eu e o Salomão lemos o poema, ao jeito de jograis, ora agora digo eu, ora agora dizes tu. Foi por alturas de 1974, depois meteu-se graças a Deus o 25 de Abril, e o concerto, tanto quanto sei, nunca foi emitido.
Sem mais delongas, o poema do Padre João Aguiar é assim:

Vieram de longe abraços amigos
trazendo o calor de muitas fogueiras.
Escorreram melodias
nos dedos das ruas,
abriram-se risos
nos rostos das montras.

Natal...

Correram as crianças,
falaram avós
dos tempos que foram
e não voltarão

Natal.

Desfilaram no musgo
soldados de chumbo,
presença involuntária
das guerras reais.

Natal.

Mas
porque perdemos nas mesas
as fomes alheias
e na corrida ao passado
as lágrimas de hoje?!

porque falamos de Deus
e esquecemos Seu nome,
olhamos a estrela
e destruímos a terra?!

porque mentimos cantando?

Filho de Deus,
tem piedade de nós!

Em Fafe, o céu pode esperar

Foto Tarrenego!
Foi hoje anunciado. Um helicóptero da Força Aérea vai sobrevoar a região do Minho na tarde de amanhã, véspera de Natal, "de forma a estreitar laços com a comunidade". O aparelho "começará a sobrevoar Guimarães a partir das 15h45, vindo da zona do Porto, passando por cima de Braga cerca de 15 minutos depois (16h00), prosseguindo depois por Ponte de Lima até Viana do Castelo, onde é estimado que passe às 16h25, regressando depois abaixo no mapa, rumo a Vila do Conde."
Vila do Conde, Viana, Ponte de Lima, Braga, Guimarães, ainda por cima Guimarães. Quanto a Fafe, nada! Nem helicóptero, nem laços, nem comunidade, nem estreitar, nem nada! E estava o Natal fafense tão bem organizado, que ainda ontem lá passei no Largo, mas voando baixinho, e a Força Aérea faz-nos esta desfeita. Espero que a autarquia tome a devida posição, nomeadamente mandando erigir o mais tardar ainda hoje um imponente pirete junto ao pinheiro electrónico e à Justiça de Fafe, um pirete gigante apontado ao céu com faróis e tudo, para que eles vejam bem lá de cima se por distracção violarem amanhã à tarde o nosso espaço aéreo, espero que as antiaéreas de Arões estejam prontas e de mira calibrada.
De acordo com o jornal O Minho, onde colhi a infausta notícia, esta "saudação de Natal" é utilizada também pela Força Aérea como "um voo de treino de manutenção de capacidades dos seus militares para reforçar o compromisso de salvaguarda da integridade de todo o território nacional, pelo cumprimento de missões de Vigilância, Policiamento e Defesa Aérea", assim como maiúsculas, como se isso valorizasse ainda mais a coisa. O próximo treino da Força Aérea Portuguesa já está marcado para a tarde do dia 24 de Dezembro de 2024, uma terça-feira.

Bacalhau com natas (à moda de Fafe)

Gosto muito. Bacalhau com natas. Bacalhau recheado, da parte da asa, feito por quem sabe, isto é, por mim, conversado a par e passo com um verde branco honesto e fresco. E depois, antes do café por recomendação médica, uma natinha do Lidl, a 39 cêntimos cada, para escorropichar a garrafa. Foi o que eu disse. Bacalhau com natas.

Ou por outra. Um bom minhoto, um fafense como deve ser, sabe muito bem que bacalhau recheado não é bacalhau recheado. Ou seja, o bacalhau não tem recheio nenhum. É bacalhau frito de cebolada, bacalhau delgado, as badanas ou aparas, rabos ou laterais, e nem é frito frito, mas admitamos que frito quase refogado, com umas voltinhas que são próprias cá de cima. É o bacalhau recheado à nossa moda, recomendadíssimo sobretudo para o tempo de calor e férias, comido se possível com família e amigos à sombra de uma ramada, e o vinho a refrescar no poço. E também concordo que a coisa ficaria muito melhor rematada com dois ou três dos também nossos doces de gema, de Arões ou Fornelos, mas, quer-se dizer, assim já não seria bacalhau com natas...

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O segredo da Albertininha da Lameira

Foto Hernâni Von Doellinger
Os melhores bolinhos de bacalhau do mundo eram os da Albertininha da Lameira, em Fafe. Contava a lenda que estes maravilhosos bolinhos eram moldados no sovaco da prendada cozinheira, o que lhes emprestaria aquele gosto tão peculiar. A vila antiga dava-se muito a estas lendas: dizia-se também, por exemplo, que os tremoços da Marrequinha da Recta eram a especialidade que eram porque a boa senhora lhes mijava na demolha.
A verdade é esta: ainda cheguei a ver a Albertininha, numa tarde de sábado, a fazer a massa dos famosos bolinhos, de alguidar entre as pernas, junto ao fogo da lareira, na cozinha asseada e sombria, mas a história do sovaco enformador afinal era uma treta - isso posso jurar, e tive pena.
Os bolinhos do Manel do Campo também eram de se lhes tirar o chapéu. E, de um modo geral, as pensões e os tascos de Fafe faziam gala de confeccionar e servir um produto, como agora se diz, fiel às origens e de altíssima qualidade. Esta tradição local creio que se mantém, em sítios como, veio-me agora a ideia à boca, o Fernando da Sede (Adega Popular). Os bolinhos de bacalhau com salada de feijão-fradinho e arroz do Fernando surpreendiam e encantavam os visitantes, e, para os da terra, eram uma esplêndida entrada para a vitelinha que haveria de vir. Mas isso, nos dias que correm, seria já refeição a pedir uma segunda hipoteca da casa.
É. Os bolinhos "de morrer por mais" são no Minho - bem o sabia mestre Aquilino. Em Fafe, é claro, mas também no Manuel Padeiro e no Gaio, em Ponte de Lima e em dias sim, ou no desaparecido Conselheiro, em Paredes de Coura, no tempo do saudoso amigo Vilaça Pinto, sempre. Em sítios assim, que os havia bons e tantos, e cá em casa também nos ajeitamos, mas não servimos para fora...

Os piores bolinhos de bacalhau do mundo eram em Penafiel, num pequeno café cujo nome não interessa. Três mesas, dois jornais, um balcão sumário e a simpatia imensa do dono. Os bolinhos eram tão maus, tão esplendidamente maus, que eu nunca falhava quando por lá passava a horas de aperitivar. Metia o pé no degrau da entrada, ao baixo, e saía logo meia dúzia de pedras de gelo directamente da arca frigorífica para a fritadeira de óleo cansado, que é "Para o senhor, para serem fresquinhos". Eu agradecia a deferência e reservava-me. Cinco minutos, não mais. As pedras de gelo vinham para a mesa a ferver e a pingar, agora em forma aparentada com a dos verdadeiros bolinhos de bacalhau, queimavam-me a boca e antes assim, que enganavam o paladar. Não sabiam ao bacalhau que não tinham, mas também não sabiam à batata que eram só. Escangalhavam-se ao toque. Eram extraordinariamente intragáveis e eu comia-os. Já disse: o patrão era gente boa e tinha três mesas e dois jornais diários no estabelecimento. Sei dar valor às coisas verdadeiramente importantes. Para apagar o incêndio, bebia uma taça de um obscuro vinho branco de cápsula que sabia a remédio mas não me fazia bem.
A minha mulher e eu descobrimos o cafezinho por acaso e levei lá três ou quatro amigos. Para provarem "os piores bolinhos de bacalhau do mundo", era o que lhes prometia, e os amigos depois concordavam comigo. Aqueles bolinhos nunca me deixaram ficar mal. Mereciam um prémio.
Até porque nos abriam horizontes. A seguir, íamos à Pita Arisca, em Lousada, comer talvez o melhor cabrito assado do mundo...

Os de Lisboa, lisboetas de gema ou simpatizantes, têm a mania de chamar "pastéis de bacalhau" aos bolinhos de bacalhau. Néscios! É como os pândegos dos franceses chamarem "fromage" a uma coisa que toda a gente sabe que é queijo e foi inventada em Ponte do Lima. Aqui atrasado, o Miguel Esteves Cardoso escreveu sobre bolinhos de bacalhau no jornal Público. O bom do Miguel nasceu na capital, estudou em Inglaterra e confessa que só muito recentemente é que descobriu a sério o Minho. Também ele chama "pastéis de bacalhau" aos bolinhos do mesmo, mas é o Miguel, está desculpado.
O jornal é que não. Lembro-me de uma vez em que o periódico da Sonae reuniu "dois painéis de jornalistas" da casa e "especialistas em gastronomia", um painel em Lisboa e outro painel no Porto, para provarem bolinhos de bacalhau comprados fresquinhos "em diferentes pastelarias nas duas cidades". A notícia dizia que o resultado foi uma desilusão completa: as amostras recolhidas revelaram-se todas incompetentes.
Mas de que é que estariam à espera os ilustres paineleiros? Bolinhos de bacalhau em Lisboa e no Porto? E em pastelarias e cafés, percebi bem? Panikes e croissants com chocolate, isso é que os dois comités de sábios deviam ter provado. Pedissem eles arroz de grelos, pastelões de petinga, pataniscas ou caldo de nabos, e seria o mesmo desastre. Os cafés e as pastelarias do Porto e de Lisboa não são para esses preparos. Vá lá, o caldo de nabos... talvez.

As barbas de molho

Até que um dia, de tanto ouvir falar naquilo, ele pôs as barbas de molho. Mas nunca soube para quê. Se ainda fosse bacalhau! Ou, vá lá, pelo menos uns tremoços...

P.S. - Vamos falar de bacalhau, por estes dias. São repetições para distraídos, não vá o Natal passar-lhes ao lado...

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

A orgia e o seu princípio

No meio da confusão, alguém disse: temos de ser uns para os outros. Ou talvez: faz ao teu próximo o que gostarias que te fizessem a ti. E assim começou a orgia.

Uns para os outros

José deu uma facada a António. António deu um tiro a José. É a vida. Temos de ser uns para os outros.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Solidariedade Humana.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

O circo sem lentejoulas

Foto Hernâni Von Doellinger
Havia uns circos muito jeitosos, pequeninos, descapotáveis, que andavam de terra em terra. Eram circos de rua, de esquina, próprios para terras de remediada dimensão. Nada de tendas, rulotes, camiões, jaulas, luzes, altifalantes, cartazes, grandes trupes, nomes extraordinários, antes pelo contrário. Eram circos de bolso, anónimos, amiúde unifamiliares - uma velha carripana, o homem, a mulher, duas ou três crianças, todos artistas, e o cão, magro como um faquir, mas não praticava. A fome devia ser muita. E o guarda-roupa deixava demasiado a desejar. A carripana era transporte, armazém, camarim e casa.
Em Fafe, na então orgulhosa vila de Fafe, abancavam no Largo, que era onde tudo acontecia, até a feira e a Volta a Portugal. Ali no ângulo da Rua 31 de Janeiro com a Praça 25 de Abril, num pedaço de passeio mais espaçoso onde hoje encosta, se não me engano, a Fafetur, era esse o sítio. O verdadeiro salão nobre da terra, com licença do Jardim do Calvário.
Eram circos sazonais e breves. Precisavam apenas de um cantinho, vinham num pé e iam noutro. Chegavam numa tarde de Verão, estendiam uma lona no chão, chamavam o povo ali à volta e iniciavam a função. Sempre a toque de caixa. Umas palhaçadas, umas cabriolas, sucintos números de malabarismo, equilibrismo e contorcionismo, às vezes até uma amostra de funambulismo ainda que curta e a baixa altitude, mas sim, porque circo que é circo obviamente trabalha no arame. Meia hora, se tanto, e estava feito. No final da apresentação e dos merecidos aplausos, uma das crianças, geralmente menina, passava pela roda do excelentíssimo público com um chapéu ou um prato na mão, recolhendo o dinheiro que cada um resolvesse dar de paga, e havia quem atirasse moedas de agradecimento para a lona coçada e rota. Assim, uma ou duas matinés, três no máximo, se a plateia o justificasse ou o dinheiro em caixa ainda não chegasse para a sopa, depois as crianças desvestiam-se do circo, os pais arrumavam os tarecos, a lona era recolhida, e toca a entrar na carripana, partiam todos, ainda de dia, decerto por causa da imensidão da viagem e aparentemente em direcção a Guimarães, que, no meu ponto de vista, naquele tempo, era em direcção ao mundo. E eu ficava como a noite.
Estes circos de porta a porta, estes extraordinários espectáculos, ando capaz de dizer que seriam os sucessores ou, pelo menos, uma derivação directa dos "Saltimbancos" que itineravam o Portugal mais profundo durante as décadas de cinquenta e sessenta do século passado, apresentando o famoso show da cabra ou "cabrinha", outro assombro dos antigos. Uma cabra, ou cabrito, vá lá, que fazia equilibrismos em cima, por exemplo, do gargalo de uma garrafa de cerveja, ela própria, a garrafa, colocada, por sua vez, em cima de um banco de madeira, dos de cozinha. Uma coisa realmente de pasmar!
A cabra, ou cabrito, vá lá, às vezes era um cão ou um gato, mais raro um macaquito marca sagui ou, também acontecia, um burro. Mas eu não me lembro de ver, nem essa parte me interessava por aí além. Não tinha, naquela idade, qualquer posição estruturada sobre a problemática da exploração de animais domésticos em sede de circo de pé-rapado, mas sabia, sempre soube, que de burros já estava Fafe bem servido. Basta pensar na burra do Reigrilo, e não é preciso ir mais longe...

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Ora batatas

Antigamente as batatas eram batatas, e isso chegava. Pelo menos em Fafe era assim. Batatas. Eram batatas para todo o serviço. Batatas unidas, iguais perante a lei, indiscriminadas, batatas universais. Actualmente as batatas são apartadas, rotuladas, segregadas, apontadas a dedo - nos minis, nos supers, nos hipers, nos macros e nos falsos pomares de esquina: embora não consigam acertar, chamam-lhes batatas para fritar, chamam-lhes batatas para cozer, chamam-lhes batatas para assar. E até faz jeito agora pelo Natal: olho para o saco, vejo "para cozer", e sei logo que são para fritar...

domingo, 17 de dezembro de 2023

Um conto de Natal

Um conto de Natal era geralmente uma seca. Já um conto de réis eram mil escudos. Uma pipa de massa naquele tempo, é preciso que se note.

As Bicicletas de Toronto


"As Bicicletas de Toronto", livro de crónicas de Aida Baptista, será apresentado na próxima quarta-feira, dia 20 de Dezembro, pelas 18 horas, no Salão Nobre do Teatro-Cinema de Fafe. A entrada é livre.
A quem não puder participar presencialmente, o Museu das Migrações e das Comunidades, promotor do evento, esclarece que será possível fazê-lo online.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Quantos eram os três reis magos?

Os três reis magos eram não se sabe quantos, e na verdade nem eram reis nem eram magos. Provavelmente inexistiram. Ou então seriam moët & chandon. Mas isso não interessa. O certo é que, depois de terem adorado o Menino Jesus, em Belém, e de lhe terem oferecido ouro, incenso, mirra, um tambor, uma playstation e um carrinho de bombeiros, dedicaram-se à bola: Gaspar brilhou no Rio Ave, Baltasar fez seis épocas no Sporting e Belchior jogou na selecção de futebol de praia.

Por outro lado, que raio de ideia foi aquela de oferecer mirra a alguém? Mirra!? Mas isso é algum presente?...

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Olhei para o céu, estava estrelado

Foto Hernâni Von Doellinger
O Minho cheira a Natal, sabiam? O Alentejo e Trás-os-Montes decerto também cheiram, as Beiras e o Ribatejo lá terão os seus aromas, mas a mim o que me interessa é o meu Minho e quanto mais alto melhor. E por estes dias o Minho começa a cheirar a Natal. Ao Natal antigo, já posso dizê-lo. Os últimos lavradores do Minho fazem fogueiras nos campos como fizeram os seus pais e os pais dos seus pais, queimando folhas secas e gravetos velhos, emprestando ao ar um perfume doce de lareira. De lar. Dá uma vontade tola de abrir a janela do carro, largar a cabeça ao frio e fechar os olhos. E eu abro e largo e fecho. A janela, a cabeça, os olhos. Sou pendura graças a Deus, não sei conduzir, vamos em segurança.
A memória também vem ao cheiro: a querida avó de Basto, pequerricha, resmungona e bondosa, aquecendo o vinho na infusa fanada que tem dentro uma maçã acabadinha de assar no borralho. O fumo das giestas molhadas e que, apesar, ajudam a espertar o braseiro. Os malabarismos a toque de caixa do testo da velha chocolateira desbordante de café que não passava de cevada. A garrafa da aguardente do avô que bastava aliviar-lhe a rolha para logo sarar constipações e até unhas encravadas. A luz bailarina da candeia fazendo filmes mudos e de terror nas paredes da cozinha, negras de fumo e do luto da vida. E a canela. Sim, as queimadas agrícolas de Novembro e Dezembro, no Minho, são temperadas com canela. Quem disser o contrário, está muito mal informado.
De novo na estrada de um carro só, o fumo, os fumos, aqui, ali, mais adiante, novelos que sobem letra a letra inventando palavras de faz de conta. São os índios a mandar recados, gosto de pensar, e rio-me outra vez moço. Fafe, Moreira, Várzea Cova, Passos, devagar se vai ao longe. O fumo acinzenta o verde que cresce ao abandono e as leiras lavradas e cada vez mais raras. Acinzenta a paisagem mas limpa a alma. Este fumo aconchega-nos, abraça-nos, obriga-nos a abraçarmo-nos. Por causa do fumo, o céu é mais baixo, estamos mais perto do Céu, estamos mais perto uns dos outros, e apetece-me inspirar a plenos pulmões a ver se consigo guardar este fumo e este cheiro, esta paz, para o resto do ano, para o resto da vida. Quem me dera aqui à noite, toda as noites, com este cheiro, com este céu. Este céu cheio de estrelas, que eu bem as sei. Acredito cada vez mais que devia ser proibido morrer sem se ter um céu assim para olhar e depois ir. E eu já ando à procura do meu.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Chegou a vez deles, e é chatice...

Foto Hernâni Von Doellinger
Começava o ano de 2009 e o grupo Controlinveste, de Joaquim Oliveira, perpetrou o despedimento colectivo de 122 trabalhadores, mais de 50 dos quais eram jornalistas. A Controlinveste era dona do Diário de Notícias (DN), do Jornal de Notícias (JN), do 24horas e do desportivo O Jogo, além da rádio TSF, da revista Volta ao Mundo e dos canais televisivos SportTV. Desde os anos oitenta que não acontecia uma razia assim em Portugal, quando fecharam títulos como O Diário, o Diário Popular e o Diário de Lisboa.
Em Janeiro de 2009 eu era jornalista do 24horas no Porto e o 24horas no Porto acabou. O DN no Porto ficou reduzido ao osso e o JN passou mais ou menos incólume pelos pingos da chuva, fora o azar de uns poucos que decerto tinham a mania de desagradar às chefias, as quais, nestas coisas do salve-se quem puder, geralmente são piores do que os patrões.
Fez-se greve. Uma greve coitadinha, isto é, fizeram greve os que iam morrer, e poucos mais, embora tenha sido tentada uma coisa em grande, testicular, greve geral do grupo, num plenário que foi uma desgraça. Os jornalistas do JN, sobretudo os promissores jornalistas do JN, evidentemente na rampa de lançamento para voos que afinal nunca alcançaram, avisaram logo que não, que era preciso ver o quadro completo, não vamos agora prejudicar uns por causa dos outros, que já estão condenados e estão, as coisas são como são, sejamos realistas, é uma chatice, isso é, pá, acontece, solidariedade, sim, obviamente, para isso cá estamos, força!, mas uma palmadinha nas costas também já chega.
Eu disse: "para palermas não estais nada mal, meus refinados filhosdeputa, e ainda me vou rir quando chegar a vossa vez", e vim-me embora a meio da coisa. Vim-me mesmo embora. Literalmente. Definitivamente. Tiveram de me procurar, se quiseram "despedir-me"...
Termina o ano de 2023. A Controlinveste, de Joaquim de Oliveira, chama-se agora Global Media Group (GMG), detém os títulos JN, DN, TSF, O Jogo, Dinheiro Vivo, Notícias Magazine, Delas, N-TV, Motor24, Men's Health, Women's Health e Açoriano Oriental, e vai desempregar mais 150 trabalhadores, parece que 40 só na redacção do JN. Ó caralho! Aqui-d'el-rei, que isto agora é connosco, gritou-se ali para os lados do Monte dos Burgos, que a Torre foi vendida para hotel, o JN fez mesmo greve, e logo dois dias, viva o luxo!, não saiu à rua "pela primeira vez em 35 anos" e foi um sucesso.
Ou por outra, chegou a vez dos palermas de 2009 e eu, devo confessar, afinal não acho piada nenhuma...

P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego! As direcções da TSF, do JN e de O Jogo, entretanto, demitiram-se.)

Hidráulico e exótico

Ele andava com um macaco no carro. Hidráulico, para mudança de pneus. Mas foi apanhado pela GNR numa operação stop à entrada de Fafe, quem vem de Felgueiras. A autoridade procedeu à competente identificação, tendo sido elaborado o respectivo auto de contraordenação por violação da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção, também conhecida como Convenção de Washington ou CITES.

P.S. - Hoje é Dia do Macaco.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Classe, meus senhores, era isto!

Foto enviada por Adelino Teixeira, ex-jogador da AD Fafe
Esta fotografia, esta extraordinária fotografia que o Adelino Teixeira fez o favor de enviar-me, vai dar-nos pano para mangas. Voltará aqui certamente mais vezes para ser dissecada até à exaustão, porque ela bem o merece, mas por hoje foco-me apenas na primeira coisa racional que me veio à cabeça logo que me passou a emoção de a ter recebido. "Olha-me estes tipos! Olha-me que categoria! Que classe!", pensei, sem me ter apercebido de que tinha falado alto, e a minha mulher acudiu aflita a ver o que era e concordou logo comigo, que nem é a sua especialidade.
Este é um documento de 1966 e apresenta a comitiva da AD Fafe posando nas escadarias de Santa Luzia certamente antes de um jogo contra o Vianense que acabaríamos por perder por 5-0, mas esta última parte não interessa para nada. O Adelino, que consta no retrato, atrás do Gil Lobo e do Costa, quis que eu tivesse finalmente um registo do Nelinho, como era meu desejo antigo, fez-me a gentileza e o grande Nelinho cá está na primeira fila, com o Dr. Marques Mendes, o Barrinhos e o Zeca Barros.
No pólo oposto, lá em cima, ainda dá para reconhecer o menino Berto Dantas na galhofa com o João Americano, realmente um pândego que se ouvia a quilómetros, tanto que até foi para o Riopele. E o Toneca. O Toneca, com quem tive a honra de acamaradar anos mais tarde numas belas saltadas à Pica para despacharmos numa fervurinha dois ou três quartilhos de tinto. O Toneca tomava conta da piscina e eu, moço de 21 ou 22, fazia a secretaria do Fafe. Fechávamos portas e lá íamos de motorizada com aqueles capacetes de plástico cómicos e irrelevantes enfiados na cabeça, o velho Toneca à frente e eu atrás, agarrado a ele. Era ir num pé e vir no outro. Mas isso já é outra história e por acaso dá-me saudades...
A fotografia, que é o que aqui interessa. A fotografia e os jogadores de futebol. Que conjunto perfeito! Um grupo onde nem faltam o motorista da Mondinense nem, espero estar a ver bem, o bom do Silvino, todo tirone. Num tempo em que não havia "fatos oficiais", em que os jogadores corriam por gosto, num amadorismo quase perfeito, assim se apresentavam, asseados por conta própria, os formidáveis representantes da AD Fafe, da vila e do concelho de Fafe, em última instância, por esse país fora. Não me lembrava disto assim, juro. Reparem na magnífica planta destes jovens! Que aprumo! Que pinta! Todos eles, a equipa completa, sem excepção, mas permitam-me que volte ao Costa, porque sobressai. O Costa, que toda a vida foi um homem elegante, em todos os sentidos, olhem bem para ele, é o primeiro da direita de quem vê na segunda fila, façam o favor de notar a presença, apreciem a pose - parece um modelo de catálogo, um artista de cinema. Tomaram muitos...

P.S. - Publicado originalmente, aqui no Fafismos, no dia 23 de Agosto de 2023. Hoje é Dia de Santa Luzia, e pareceu-me bem a repetição. Por outro lado, o actual reitor do popular santuário vianense é o meu querido amigo e mestre de vida Padre Fonseca, que fez anos por estes dias e também não era tosco a jogar a bola, e assim com um coelho mato duas cajadadas.

Very, very typical

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

O galo do presépio

Este ano metemos o galo no presépio. Todos os anos experimentamos um melhoramento natalício, há muito que andávamos com o galo debaixo de olho, e foi este ano. Agora lá está ele, altaneiro e bico calado, mas imaginamo-lo todo kikirikiki como o Jerónimo do reclame da Compal, a anunciar o nascimento do Menino Jesus exactamente às 7h30, conforme muito bem podia constar da Bíblia.
O nosso galo do presépio é um galo de Barcelos, mas, atenção, não é o Galo de Barcelos. Nada de parolices, valha-nos Deus! É um galo de capoeira, obra de mestre barcelense, isso sim, 6x4 centímetros, a obra, um euro e meio, o preço. É arte.
Só presépios temos oito, para além de mais meia dúzia de Meninos Jesus avulsos, e nem as casas de banho escapam ao nosso Natal. Pusemos o galo novo no presépio principal, evidentemente. O nosso é um presépio inclusivo, ao contrário do presépio do falecido papa Bento XVI, que em 2012 resolveu expulsar a vaca e o burro, porque, sentenciou, no local do nascimento de Jesus "não havia animais". Portanto, concluí eu, também não havia ovelhinhas, o que quer dizer que também não houve pastorinhos do deserto. Sobravam, inequivocamente, os três reis magos. Gente fina, vinho de outra pipa. Reis. E magos (porque o champanhe ainda não tinha sido inventado). Esses, é certo, estiverem lá, em representação de toda a humanidade - segundo Ratzinger. Estiveram os reis magos e os anjos cantadores. Os anjos também estiveram.
Que se segue? Eu por acaso até era mais dado a acreditar no burro e na vaca do que na mirabolante história de Gaspar, Melchior e Baltasar, uma boa linha média para quem jogue em 4-3-3, mas que se há-de fazer? Na verdade, eu por acaso até sou capaz de acreditar mais no burro e na vaca do que nos anjos e no presépio completo, a começar pelo dogma da virgindade de Maria tal como está estabelecido. Mas quê? Mais de dois mil anos a aquecerem o Menino com os respectivos bafos, e foi este o pagamento que o burrinho e a vaquinha receberam.
Cá em casa, não. No nosso presépio entram todos. Sem excepção. Pastores, trolhas, cabrinhas, escafandristas, empregados de mesa, com e sem-abrigo, prostitutas, levandiscas, lambe-botas, grilos, reis magos e outros artistas de circo, polícias municipais, cães e gatos, sapos e ciganos, evidentemente o burro e a vaca, que se lixe o Vaticano!, e agora o galo, se calhar para o ano um porco e depois uma avestruz, o Ben-Hur, se também quiser, o He-Man, o Super-Homem, o homem-estátua, a Justiça de Fafe, a Barbie, o Nenuco, a Popota, a Irmã Lúcia, o Padre Cruz, o Zé Povinho e o Fradinho das Caldas, o Tutankhamon, Marcelo Rebelo de Sousa e até Bento XVI se entretanto sair em boneco.
Deus é grande, e o nosso presépio está cada vez maior.

Intervenção siderúrgica

Submetido de urgência a uma intervenção siderúrgica, não sobreviveu, derivado a ferimentos e queimaduras de altíssimos e variegados graus. Quer-se dizer: a língua portuguesa é deveras traiçoeira...

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Heavy Metal.

A zartes

Top mesmo top? Nas artes plásticas, certamente a Tupperware, que uma vez estabeleceu igreja por baixo cá de casa mas já se foi embora. Nas artes metálicas, os Metallica propriamente ditos, ou então o meu sobrinho Jorge, que é mestre soldador.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Por una cabeza

Foto Hernâni Von Doellinger
"Por una cabeza" é talvez o velho tango mais conhecido dos tempos modernos. A sua versão instrumental é tocada a torto e a direito nas séries de televisão e no cinema, não só pela sua indiscutível beleza e porque entretanto caducaram os respectivos direitos autorais, mas sobretudo depois de ter sido utilizada com o sucesso que se viu no filme "Perfume de Mulher", de 1992, que valeu a Al Pacino o Óscar de melhor actor. A autoria deste tango é muitas vezes erradamente atribuída a Astor Piazzolla. Na verdade, o tango "Por una cabeza" foi composto em 1935 com música de Carlos Gardel, o mais famoso dos cantores de tango da história, e letra de Aldredo Le Pera.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Tango.

A montanha pariu um rato

A montanha pariu um rato. Pfff... Que miséria, realmente. Se ainda ao menos parisse um elefante! Ou dois - que incomodam muito mais...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Montanha.

Diplomacia paralela

Foto Tarrenego!
A diferença entre um embaixador da Unicef e um embaixador da Unicer é da ordem dos 5,2% vol.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Unicef.

domingo, 10 de dezembro de 2023

Brincando com o trabalho infantil

O trabalho infantil é uma tragédia, uma vergonha, sobretudo se a criança ajudar no campo os pais pobres e lerdos para haver alguma comida à mesa. Pão, por exemplo. E era assim em Fafe antigamente.
O trabalho infantil é muito bem, um orgulho, principalmente se a criança entrar numa telenovela ou se for modelo de moda ou se for imitador de cantores adultos e der na televisão (esta parte da televisão é importantíssima!), enriquecendo os pais remediados e vaidosos.
Depois há ainda as crianças, estas são do piorio, que, órfãs de tudo e até de tecto, fazem sapatilhas de marca para os pés das entrevistadoras e dos entrevistadores da televisão que entrevistam as crianças que entram nas telenovelas e nas passarelas e nas cantigas e para os babados pais, que no fim pedem recibo de viagem e presença para descontar no IRS.
Parece que a diferença está nisto, segundo percebi uma vez no programa Sociedade Recreativa da RTP: os miúdos das telenovelas e da moda e do cançonetismo têm "agente". Os moncosos do campo, das fábricas, da rua, não.

E sabem que mais? Portugal aprovou o primeiro regulamento do trabalho de menores em estabelecimentos fabris no dia 14 de Abril de 1891. Sim, do trabalho de crianças nas fábricas. E acredito que tenha sido um grande avanço civilizacional...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Criança na Rádio e Televisão. E também é, nem de propósito, Dia Internacional dos Direitos Humanos.

sábado, 9 de dezembro de 2023

Reservado o direito de admissão

Foi má ideia aquele letreiro à porta do consultório - "Proibida a entrada de animais". Era um veterinário...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Medicina Veterinária. Pelo menos no Brasil.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

A invenção do pecado original

Era o baptizado de uma querida sobrinha, bebé, na Igreja Nova, em Fafe, já lá irão três décadas. Não sei porquê, o padre estava realmente endiabrado, embora ainda fosse manhã, e à beira da pia, logo quem entrava, no lado esquerdo, rodeado por nós todos, padrinhos e família, resolveu embirrar com a criança de meses, coitadinha, acusando-a de ser uma perigosa pecadora derivado ao princípio da Bíblia, mas que ali ficaria de folha limpa, graças a ele e sorte a dela, e inferno acima e inferno abaixo e pecado original acima e pecado original abaixo. Isso, no pecado original é que o raio do padre batia e tornava a bater, como se batesse no ceguinho.
Olhei fixamente para o padre, varei-o com os olhos, fiz-lhe cara feia, abanei que não e que não com a cabeça, ele percebeu que eu lhe estava a dizer "és parvo ou quê?, com pecado esta criancinha, este anjinho recém-nascido, mas alguém nasce já com pecado?, que raio de deus é o teu, pá, ainda a treta do inferno e do pecado original?, e se fosses mas é à merda?!", percebeu e mudou de assunto.

Anselmo Borges, padre e professor de Filosofia, escreveu um interessante artigo de opinião no DN do passado dia 2 de Dezembro. Para mim, as opiniões de Anselmo Borges são sempre interessantes e amiúde inspiradoras, e o artigo em questão, cuja leitura na íntegra recomendo, chama-se "A Imaculada Conceição, o pecado original e o sexo".
Deixemos a virgindade de Maria, o casamento e o sexo para segundas núpcias e centremo-nos no meu ponto. Ora bem. Eu não lhe encomendei o sermão, mas o mestre da Universidade de Coimbra ensina, a dado passo do seu texto: "Hoje, o pecado original é inconcebível, concretamente, por causa da evolução: o ser humano aparece no quadro da evolução, o que implica então a seguinte pergunta: quem foram os "primeiros pais", colocados no mundo sem pecado e que depois pecaram, transmitindo esse pecado a todos, de tal modo que todos nascem em pecado de que só o baptismo os pode libertar? Ainda conheci mães que viveram verdadeiros dramas interiores porque os seus bebés tinham morrido sem o baptismo. Mas não. Todo o ser humano é concebido sem pecado".
O baptismo, afirma Anselmo Borges, "não é para apagar o pecado original, que não há; os pais baptizam os seus filhos, porque, desejando o melhor para eles, querem que eles entrem na Igreja, comprometendo-se a educá-los na fé como discípulos de Jesus."
É fácil de perceber, parece-me. Porque, se "toda a criatura recém-nascida vem de Deus", ainda seguindo o raciocínio do padre-filósofo, e eu acredito que vem, como pode alguém nascer com pecado, com defeito? E pronto, já somos pelo menos dois a pensar assim.

O senhor da câmara

Foto Hernâni Von Doellinger

No tempo dos codaques

A câmara Kodak foi registada pelo americano George Eastman no dia 4 de Dezembro de 1888, fez agora 135 anos. E alcançou tamanho sucesso que a marca rapidamente se transformou em sinónimo do próprio produto, em substantivo comum. Codaque passou a significar máquina fotográfica. Ainda hoje, para os mais antigos como eu, os fafenses do tempo da admirável rivalidade Foto Victor-Foto Jóia, um codaque é uma máquina fotográfica, seja de que marca for, e uma máquina fotográfica, seja de que marca for, é um codaque.
Exactamente como se passou com o sumol, o panique, a gilete, a chiclete, o cotonete, o jipe, o caterpiler, o cimbalino, o jacuzi, o taparuer, a vaselina, o velcro, o quispo, a lambreta, a mobilete, a solarine, o botox, a licra, o post-it, o rímel e as crocas, só por exemplo e para dar uma ideia, socorrendo-me apenas do português do lado de cá.
Hoje em dia os telemóveis também são codaques, e fazem o serviço praticamente sozinhos.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

O Febras levava tudo à frente


O Febras, o Armando Febras de Fafe, guiava um velho camião geralmente cheio de areia e era a única pessoa que eu conhecia que "fez a guerra" em Timor, se não me engano. Diga-se, para princípio de conversa, que o Febras era um tipo porreiro, bom amigo, e tinha uma grande pancada naquele tempo. Uma vez falhou a gasolina em Fafe e no resto do País, segundo as notícias, e os carros faziam longas filas que davam duas ou três voltas ao Largo para abastecer. Os condutores desligavam os carros, saíam e empurravam a respectiva viatura consoante a fila ia avançando a conta-gotas. O Febras tinha o camião apontado àquelas bombas muito bem estabelecidas ali entre o Monumento e o Martins da Avenida e não largava o volante, até porque lhe faltava disposição para descer e levar o veículo pelas orelhas. Aquilo era preciso madrugar para garantir um bom lugar na fila, havia até quem fosse para lá de véspera, portanto é bom de ver que pelo meio da manhã já estava tudo com os nervos em frangalhos. E o que é que acontece? Assim que tal, a fila anda um bocadinho, metro, metro e meio, mas o carro imediatamente à frente do Febras nem se mexe. O Febras buzina. E o carro, nada. O Febras torna a buzinar. E o condutor do carro faz aquele sinal internacional descrito no código da estrada como "passa por cima". E o Febras arranca. Evidentemente não passa por cima do carro, isso só ocorre nos filmes americanos, mas leva-o à frente, empurra-o de zorra, um metro, metro e meio. O Febras sai então do camião, disposto à pancadaria, a polícia, que rondava por ali, faz de conta que intervém para evitar males maiores, mas nem toma conta da ocorrência, e fica tudo em águas de bacalhau, porque, lá está, era o Febras, e o que é que se havia de fazer?...

Curiosamente, anos mais tarde, o Armando Febras viria a ser agente da autoridade local e parece que ainda emigrou para a América, onde não sei se realmente chegou a passar por cima de automóveis. Mas antes disso, em Abril de 1977, ele fez parte de um extravagante grupo de fafenses que foi a Lisboa de camioneta para apoiar a AD Fafe no famoso jogo com a CUF para a Taça de Portugal. Desse bando, que viveu uma noite maluca pelas ruas do Bairro Alto, com a polícia atrás e tudo, constavam também, entre outros, o meu irmão Pimenta, que certamente organizara a excursão, o Machadinho e o Manel Caixeiro maila sua inseparável pistola. Eu não podia faltar, mas era o mais novo e inocente de todos, posso talvez dizê-lo. Esta parte da história fica, porém, para outra vez.
Quero contar é do amigo do Febras que veio ter connosco ao Campo das Cebolas, que era o sítio onde as camionetas das excursões pernoitavam. Um velho camarada de armas do Armando e a segunda pessoa que eu conheci que "fez a guerra" em Timor, se não estou em erro. Falava com cerrado sotaque lisboeta, alfacinha, malandro, gingão, "gajas" acima, "gajas" abaixo, tinha ouro ao pescoço, anéis, camisa havaiana, botas de cobói, navalha de ponta e mola e um suspeitíssimo Ford Capri que fazia piões de porta aberta.
Isso. Piões de porta aberta. Tantos, tão apertados e a tal velocidade, que no decurso de um deles o indivíduo saiu disparado do automóvel, caiu violentamente no chão, bateu com a cabeça, levantou-se de imediato como uma mola, num improvável pulo de kung fu, soltou um grito de guerra, sacudiu o pó da roupa, entrou no carro, que continuava a andar em círculo, fechou a porta e arrancou a todo o gás em direcção ao sol poente.
E eu passei a compreender muito melhor o Armando Febras.

P.S. - Hoje é Dia de Timor-Leste ou, mais propriamente dito, Dia dos Heróis Nacionais.

Jingle bells 2

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Uma cunha ao Pai Natal

Aviso com tempo. No Natal de 2022 ofereceram-me catorze livros. Está certo: gosto muito de ler e parece que toda a gente que gosta de mim sabe que eu gosto muito de ler. Mas, valha-me Deus, eu também preciso de peúgas, cuecas e pijamas, como as outras pessoas...

Hoje é Dia de São Nicolau, que dizem que é o Pai Natal, mas não é. Porque São Nicolau, isto é, São Nicolau de Mira também conhecido como São Nicolau de Bari, existiu mesmo no século III, foi bispo e é padroeiro da Rússia, da Grécia, da Noruega e de Beit Jala, na Palestina. É patrono dos guardas-nocturnos na Arménia e dos ajudantes de missa na cidade italiana de Bari. E é também padroeiro dos estudantes, como muito bem se aprende em Guimarães, mas nunca trabalhou para a Coca-Cola. Já quanto ao Pai Natal, não quero com isto escangalhar certas e determinadas crenças infanto-comerciais, mas eu prefiro o Menino Jesus!

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Obviamente ninja

Foto Hernâni Von Doellinger

Quando Ben-Hur foi impedido de entrar no Presépio

Ben-Hur queria entrar no Presépio. Chamou o grupinho do costume - Spartacus, Maximus, Maciste, Hércules, Sansão, Demétrio, Ursus, Nuno Salvação Barreto, o Homem Mais Forte do Mundo e o Custódio Ardegão -, não fosse a coisa dar para o torto. E lá foram. O Pescador do Laguinho, que sabia kung fu e era segurança de discoteca em part-time, impediu-lhes terminantemente o acesso: - Noite temática, meus senhores, hoje é só anjos, pastores e reis magos. Ordens de cima. Apareçam pela Páscoa...

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Ninja.

Eu seja ceguinho, disse o invisual

Havia um cego que tinha olho. Era de fora, o cego, não me lembro de onde é que vinha nem quem o trazia, mas ele fazia a feira de Fafe, todas...