quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Ia-se ao Largo ver os retratos

Houve um tempo em que as fotografias eram tiradas por fotógrafos. Fotógrafos profissionais, competentes, conhecedores, eficazes regra geral, artistas às vezes. Por outro lado, nesse tempo ainda não havia telemóveis e portanto, quando era preciso falar com alguém que não estivesse presente, ligava-se da máquina fotográfica, nada mais simples. Os antigos sabiam tudo e antigamente é que era, estou farto de dizer. Naquele tempo tínhamos dois fotógrafos e nevava em Fafe. Não era preciso ir mais longe. Em Fafe, mesmo no centro da vila. Não era necessário alongar vistas para os cumes da Lameira ou da Lagoa e sonhar modestas aventuras impossíveis. Era ali nas nossas mãos, aos nossos pés, a realidade. O nosso Santo Velho pintava-se de branco, contavam-se os centímetros de altura do "nevão", faziam-se bonecos, pelo menos boneco, com nariz de cenoura e tudo, declaravam-se guerras de bolas de neve, ensaiavam-se trambolhões de criar bicho, chorar era proibido, ou levávamos no focinho.
Os campos nas traseiras da nossa casa, onde hoje está o Pavilhão Municipal, encontravam-se de vago e enchiam-se de moçarada brincalhona e apressada, porque a neve era efémera e sabia-se lá quantos anos depois estaríamos outra vez à espera que ela tornasse. Lembro-me de uma ocasião, um acontecimento: o Foto Victor com os filhos a fazerem uma festa tremenda, e o Foto Victor a tirar retratos atrás de retratos, fotografias sorrateiramente alpinas que depois expôs, algumas, nas montras da loja em frente aos Correios. Foi um sucesso.
Fafe também tinha disto, nomes assim, esdrúxulos. O Sr. Victor era fotógrafo com porta aberta e o estabelecimento chamava-se Foto Victor. Portanto o Sr. Victor passou a chamar-se Foto Victor. Aliás, como o Foto Jóia, mas este no Largo, à beira do Talho, do Romeu e do Fernando da Sede. Foto Jóia era simultaneamente o nome do "estúdio" e do seu proprietário. "Vem aí o Foto Jóia!", dizia-se, e era a coisa mais natural do mundo.
Curiosamente, nunca apanhei o Foto Jóia no meio da neve, mas lembro-me de que foi ele quem me fez as fotografias para o meu primeiro bilhete de identidade, que era preciso para irmos para França ter com o nosso pai, mas acabámos por não ir, porque o nosso pai morreu no Natal antes da viagem programada e a minha vida deu então esta volta que é assim.
Fafe era uma terra compacta e tudo acontecia no Largo. A feira semanal, a feira das cebolas, os 16 de Maio, a Senhora de Antime, a Volta a Portugal, cortejos alegóricos, corsos de carnaval, batalhas de flores, circos de manga curta, robertos, gincanas automóveis, corridas de patins, corridas de jericos, corridas de São Silvestre, passagens de ano, dias dos combatentes, desfiles da Mocidade e da Legião Portuguesa, partidas para a guerra. Era tudo ali. O Largo era o centro, o Largo era Fafe. Nas ruas e nos lugares das redondezas dizia-se "Vou a Fafe", querendo dizer que se ia ao Largo.
As lojas dos dois fotógrafos, os seus escaparates, eram locais sagrados de peregrinação na vila de antanho. Aos finais de tarde ou no fim-de-semana, era à pinha. Era famoso o átrio do Foto Jóia. Ali se ficava a saber quem casou, os padrinhos e convidados, quem baptizou, os padrinhos e convidados, quem tirou retrato novo mais ou menos atiradiço sabe-se lá com que fim, amiúde para mandar para a guerra. Ali se revelavam namoros a estrear, paulnewmans de trazer por casa, misses que nunca seriam. As bodas de ouro, as juras de amor, o fato feito por medida, o carro na rodagem, a filha recém-doutora, a vida dos outros ali escarrapachada atrás do vidro impenetrável, na arte exigente e discreta do preto e branco ou no exagero quase pornográfico da cor, novidade em folha. A vida retocada à mão, porque o photoshop ainda não tinha sido inventado. Era. Ainda faltavam muitos anos para a javardice dos reality shows e para os despudores de todos os facebooks, mas não estávamos mal servidos...
Havia uma certa rivalidade entre o Foto Victor e o Foto Jóia, e, estranhamente, também entre as respectivas clientelas, coisa sem sentido, nós éramos Foto Jóia!, mas Fafe tinha essa mania de ser terra de antagonismos pascácios, com os dois grupos de futebol - o Sporting Clube de Fafe e o Futebol Clube de Fafe -, que já não são do meu tempo, com as duas bandas de música - Revelhe e Golães -, que persistem, com a Escola Industrial e o Colégio, com o PS de Fafe pim e o PS de Fafe pam e o PS de Fafe pum, isso para além da Rua de Baixo e da Ponte de Ranha, que de vez em quando também faziam faísca e, noblesse oblige, andavam à coiada. Uma coisa é certa, porém: Foto Jóia e Foto Victor frequentavam ambos o Nacor, o que, já agora, só lhes abona a respeito, e não me consta que haja notícia de confrontos ou baixas a registar.

P.S. - Publicado originalmente no dia 19 de Agosto de 2023. Hoje é Dia Mundial do Fotógrafo, que há quem diga que é mais propriamente na próxima segunda-feira, chamando-se-lhe então Dia Mundial da Fotografia.

4 comentários:

  1. Não são só ás viagens no tempo que as tuas palavras me levam, mas é essa escrita belíssima rasca que me empolga. Gente e lugares são revisitados com uma clareza ímpar. Obrigado, Nane.

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  2. Obrigado por mencionar o nome da nossa loja Foto Jóia nessas palavras sábias. Obnrigado

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