sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Os ex-colegas, essa pedra no sapato

Foto Tarrenego!
O problema dos ex-colegas. Não é brincadeira. Para um gajo com mais de sessenta anos de idade embora em estado praticamente novo, o problema dos ex-colegas é uma chatice quase tão grande como os calhamaços do José Rodrigues dos Santos se eu os lesse. Imaginem-me: com ex-colegas da minha rua e da escola primária, os melhores de todos, com ex-colegas do seminário, já lá irei, com ex-colegas do liceu que foram para doutores e foi um ar que se lhes deu, com ex-colegas dos Comandos que acham que são muito mama sumae! e eu não sou, com ex-colegas da fábrica de quem tenho tantas saudades, com ex-colegas dos jornais e da rádio que têm lá as suas vidinhas, vejo-me fodido para os aturar a todos, mesmo quando eles não querem saber de mim, o que é regra geral. E quando querem saber de mim, então ainda é pior. O caso do seminário, e eu disse que vinha cá, é absolutamente paradigmático. Para quê? Digmático. Ninguém me mandou para o seminário, fui porque quis, porque queria ser padre, e às vezes ainda quero. A minha mulher sabe disso. No ano em que lá cheguei, éramos 136 crianças, havia um documento de acção psicológica (isto anda tudo ligado) que rezava assim: "Começar é fácil. Recomeçar é de muitos. Chegar ao fim é de heróis. Nesta marcha ascensional é nosso dever caminhar! A empresa é difícil, mas fascinante O Ideal!"...
E há umas certas e determinadas pessoas que acreditam nisto, os supra-sumos que chegaram ao "O Ideal!". Se tivessem ido para os Comandos, esses supra-sumos, sumos sacerdotes, andariam agora por aí de boina vermelha e crachá, eventualmente de G3 a tiracolo se os deixassem, e em vez de melancólicos ego te absolvo diriam esfuziantes mama sumae! Estes rapazes tiveram os melhores mestres do mundo, o padre Fonseca e o padre João Aguiar, para não irmos mais longe, e afinal não aprenderam nada com eles, não perceberam nada da vida.
Porque. Reencontrei-me ultimamente com ex-colegas do seminário que deram em padres. E até gostei, a princípio. Há aquela festa propedêutica, "ó pá, há que tempos, és mesmo tu, estás mais gordo, estás mais magro, está igualzinho, dá cá esses ossos, dá cá essa febras!", como pessoas normais, e depois os meus ex-colegas enfiam no cu um daqueles feijõezinhos milagrosos que lhes dão aquela voz sacrista e falseta, e, magníficos, condescendentes e compassivos, com a superioridade moral dos eleitos, dos exclusivos de Deus, perguntam sempre lá do alto, como se estivessem combinados uns com os outros, "e então, o que é que tens feito?"...
Fico fodido. Fico à rasca. Começo a suar, a gaguejar, não sei o que hei-de dizer em minha defesa. Afinal estou perante um dos que chegaram ao topo do Kilimanjaro e eu nem sequer passei do sopé do Bom Jesus do Monte, onde o Secónego tinha uma casa. Conto o melhor que consigo: "ó pá, tenho sido sobretudo jornalista mas também trabalhei numa fábrica, sou casado há quarenta anos, sempre com a mesma mulher, o que é miserável no meu ofício, porém continuo apaixonado, tenho um filho que é uma jóia e o meu maior orgulho, temos a casa e o carro pagos, damos umas voltinhas para arejar, eu não sei conduzir mas cozinho muito bem, tenho quatro amigos, pendurei a carreira profissional para tomar conta primeiro do meu sogro e depois da minha sogra, e não me lembro se já disse que sou jornalista"...
Mas não chega. Eu sei que não chega! E continuo fodido e à rasca, gago e suado. Eu até acho que a classe dos ex-colegas está muito sobrevalorizada. Parece-me que a maioria das pessoas passa distraidamente ao lado do negativismo, da carga pejorativa que a própria expressão em si encerra. Ex-colega, ex-colegas. Se, por analogia, as pessoas pensarem no que pensam quando pensam em ex-amigo, em ex-amigos, certamente compreenderão o que eu quero dizer. Mas não adianta. Isso não me salva. Os ex-colegas aparecem-me, realizadíssimos da vida, e eu, que sei que sou a merda que sou, só me apetece fugir...

Era assim. Mas aqui atrasado fui a Fafe a um funeral e mudei de táctica. Fui a Fafe, dizia, e esbarrei com um dos meus que deu em padre e que, ainda por cima, estava encarregado do serviço. Conversámos na sacristia da Igreja Matriz, intermediados pelo meu sobrinho Geno. Como de costume, inquirido sacramentalmente "e então, o que é que tens feito?", confessei na mesma o "ó pá..." do parágrafo ali de cima, o "ó pá..." completo, porque tenho este defeito de informar, mas depois acrescentei perguntando também, para livração da minha alma:
- E tu? Nunca fizeste nada, pois não? Quer-se dizer, és padre, não é?...

Em todo o caso e nos tempos que correm: como diria a minha mãe, que é sábia mas também queria um filho padre, "mais vale não fazer nada do que fazer asneiras"...

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