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domingo, 29 de junho de 2025

O homem e o cão (e vice-versa)

O melhor amigo do cão
Havia um cão que tinha um dono muito bem mandado. Um dono obediente, brincalhão, carinhoso, esperto - só lhe faltava ladrar.

Todas as manhãs o homem e o cão passeiam pela praia, naquela incerta linha de sobe e desce onde o mar enrola na areia e acaba Portugal. Par pândego, havíeis de ver. O homem atira a velha bola de ténis e o cão, dez-réis de cão, rasteirinho e de raça incerta, corre e salta, como uma bala, como uma mola, abocanhando-a, à bola gasta e sebenta, ainda no ar. Cão danado para a brincadeira. E habilidoso. "Bem, muito bem, espectáculo!", diz o homem. E o cão regressa e larga a bola, e corre e salta à volta do homem, e ladra no verdadeiro ladrar que não morde, e abana o rabo, abana, que quer dizer "Obrigado, estou muito contente, mais, quero mais!...", e põe a língua de fora, que quer dizer "Ainda havemos de fazer isto mas ao contrário".
Um quadro enternecedor. Homem e cão, numa simbiose perfeita. O amigo dos animais e o melhor amigo do homem. Fossem eles polícias, o homem e o cão da bola de ténis, matinais frequentadores de oceanos, e estaríamos na presença de um binómio exemplar e definitivo. Decerto já vistes nas notícias: binómio é um polícia e um cão que são colegas de trabalho. Já um carteiro e um cão, se coincidirem, são um perónio. Um perónio partido e o fundilho das calças esgaçado.

(Lembro-me agora. Aquilo de passear o canídeo à beira-mar, eu bem o tentara em Fafe, nos meus vinte anos, com o Buck, o nosso cão na Rua do Assento. A beira-mar que tínhamos mesmo à mão, e por acaso bem jeitosa, se não fossem as silvas e outro restolho jurássico, eram as bordas do rio de Pardelhas, quando levava água, mas o Buck nunca me deu hipótese. O cão era quase do meu tamanho, muito mais forte do que eu e completamente dono do seu nariz. Saímos apenas uma vez. No seu habitat natural, o Buck era manso para as pessoas de dentro e sobretudo para as crianças. Sim, era lerdinho, porém destrambelhado. Gostava muito de brincar com gatos e galinhas, às vezes matava dois ou três frangos, mas era sem querer, diga-se em abono da verdade, fruto da loucura do momento, no descontrolo e afã da brincadeira. Íamos então passear, eu e o cão. Coloquei-lhe a poderosíssima trela, feita por encomenda e medida, própria para bisontes e elefantes, custou uma fortuna, dei-lhe calmamente a primazia, pus o pé fora de porta, todo lampeiro, e, como um raio ou talvez uma enorme marretada, num safanão sem preliminares nem precedentes, fui imediatamente arrastado de cangalhas para o empedrado, levantei-me como e quando pude, sempre de zorra, o Buck galopava a seu bel-prazer, sem parar sequer para cheirar ou alçar a perna, e eu atrás, agarrado à trela como quem se agarra à vida, aos solavancos, aos repelões, aos trambolhões, contra esquinas, árvores de pequeno e médio porte, tabuletas de trânsito e demais mobiliário urbano, o caralho do cão andou a exibir-me e a enxovalhar-me por onde lhe apeteceu, a vila inteira à janela a rir-se de mim, a fazer pouco do moço tolo, o filho da viúva da Bomba, tornei a casa feito num oito, num cristo, quando sua excelência achou que já chegava, e portanto nunca mais.)

Todas as manhãs, dizia, tornando à praia atlântica. Eu também por ali ando comigo pela trela e por isso é que sei o que estava a contar, mas ninguém me atira a bola, e antes assim. Ontem desatei a rir com o raio do cão, que realmente tem jeito, parece do circo o lingrinhas, um autêntico brinca-na-areia. Entre uma acrobacia e outra, o cão tendia a enfiar-se na água, coisa de cão certamente, e o homem dizia "Sai daí, Rex, anda cá, Rex, já vais levar, Rex!...", nem de propósito Rex, eu seja cão se estou a inventar. O cão chamava-se mesmo Rex, como o cão actor, o cão artista da televisão, e, sem terem nada a ver um como o outro, por acaso até vinha a propósito. O homem, que tomara nota do meu riso, decidiu pôr-me ao corrente, quisesse eu ou não: "É todos os dias isto, a mesma merda, ele gosta, o filhadaputa do cão mete-se no mar e eu depois é que me fodo a dar-lhe banho, secar e escovar, olha, lá vai ele outra vez, ó corno!, ó boi!, não adianta, fode-me sempre..."

O cão resolveu apanhar a última, mas sem boca. Estava-se a armar para mim, eu dei fé, creio que lhe percebi até um certo piscar de olho. Dominou a bola com o peito e, sem deixar cair, rematou em grande estilo e foi golo, palavra de honra que foi golo. Depois colocou o açaime ao homem e levou-o para casa.

P.S. - Versão corrigida e (bastante) aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

No meu peito bateria...

Foto Hernâni Von Doellinger

Faltou-nos o breakdance

Nasci no Santo Velho, em Fafe. Na minha rua, que era um largo de liberdade e agora é dois cruzamentos com semáforos, saltávamos à corda e a fogueira, jogávamos ao espeto, ao pião, à macaca, ao mamã-dá-licença, ao esconde-esconde, à cabra-cega, às sameiras, ao moche, à coiada e ao tene. Infelizmente não jogávamos ao breaking, senão ainda tínhamos ido aos Jogos Olímpicos de Paris, havíeis de ver.

P.S. - Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional do Brincar.

A concha

Perguntam-me: mas afinal o que é a concha? E eu respondo: concha pode ser colher para servir sopa, prato de balança, parte das chaves de instrumentos musicais de sopro, peça de lagar, espécie de puxador de gavetas, pavilhão auricular, couraça, invólucro calcário que protege o corpo de moluscos e braquiópodes, isto é, conchinha do mar. Concha pode ser uma jovem cantora portuguesa que se chamava Maria da Conceição e debutou no Festival da RTP de 1979. E o conjunto Os Conchas, que era um duo, gravou, em 1960, o primeiro disco de rock em língua portuguesa. Mas não. Concha era tampa metálica das garrafas de cerveja e refrigerantes, era cápsula, sameira, carica, chapinha como se diz no Brasil. E era brinquedo de menino pobre. Em Fafe, evidentemente.

P.S. - Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional do Brincar.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

De fanico para a Lagoa

Foto Município de Fafe

Fanico. Isto é, migalha, pedaço muito pequeno, lucros insignificantes, ganhos mínimos e obtidos a custo. Ou por outra, chilique, desmaio, perda momentânea dos sentidos, ataque nervoso. E ainda, prostituição.
Fanicar: andar ao fanico, andar em busca de pequenos lucros, andar na má vida, fazer da prostituição modo de vida, biscatar, perder os sentidos, desmaiar, entrar em cri kise, por assim dizer, histérica.
Fanicar ou fazer em fanicos era também lascar, esbotenar, partir em bocados, pôr em fanicos, cá está. No jogo do pião, havia o pião das nicas, sem real utilidade desportiva, diga-se, porque já velho e eventualmente mutilado, mas era o que servia para apanhar as penalizações da ordem, dadas geralmente com uns piões gigantes, gorilas, com bico grosso ou bico de lança. Eram fanicos aquelas pancadas, porque o pião sofredor ficava nicado, ferido, picado, quer dizer, fanicado. Era o desgraçado de serviço. Em sentido figurado, humanizado, o pião das nicas é o indivíduo em quem todos mandam e a quem todos responsabilizam, o chamado bode expiatório - e assim explicado é fácil perceber porquê.

Ora bem. Por alturas da Lagoa, quero dizer, da romaria da Senhora das Neves, na última sexta-feira de Agosto, o povo de Fafe subia à serra para pôr a santa na cabeça e tirar o diabo, está lá um funcionário com essa incumbência. Do centro de Fafe ao santuário da Lagoa são pouco mais de 12 quilómetros, pelo Passadouro. O povo é tolo, mas não ia a pé. Os automóveis ainda eram um luxo em Fafe e portanto ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento, do outro lado do então posto da GNR e de umas bombas de gasolina, que também lhe pertenciam, à garagem. Nessa enorme garagem, lá para os seus fundos e talvez anexos, construíram-se gloriosos carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era periclitante e cinzenta a carreira, camionetas velhas, asmáticas e malcheirosas que, no dia da festa, faziam fanico para a Lagoa e vice-versa.
Isso, andavam ao fanico, faziam fanico, era assim que se dizia, e estamos de volta ao que nos interessa. Fazer fanico, para os autocarros, significava trabalhar sem horário avisado ou pré-estabelecido. As camionetas arrancavam, numa ou na outra direcção, quando estivessem cheias, a esbordar sempre que possível. Saíam da "Empresa" carregadas de gente mais ou menos sóbria, largavam a carga na Lagoa, esperavam pelo enchimento seguinte num terreiro aparelhado à pressão no meio do monte, à torreira impiedosa do sol, e regressavam a Fafe quando calhasse e a rebentar de gente regularmente bêbada da cabeça aos pés.
Era um ramerrame combinado. Iam e vinham, iam e vinham, os autocarros. Iam e vinho, iam e vinho, os passageiros.
Ao fim do dia, no desmanchar da feira, com o sol a pôr-se lá para os lados de Guimarães, o descampado enchia-se de pancadaria da grossa, famílias inteiras umas contra as outras, na batalha sanguinolenta pela entrada na camioneta prestes a sair para Fafe, às vezes a última, a derradeira sem apelo nem agravo, e depois era mesmo só a pé.
Atacava-se com tudo o que se tivesse à mão. Navalhas e saca-rolhas, pedras, chibatas, bengalas, muletas, colheres de pau, joelhos, tachos e panelas, socos e galochas, melões e melancias, garrafões vazios, açafates, quadros do anjo da guarda comprados apenas há minutos, concertinas desengonçadas, reco-recos, bombos e ferrinhos, num desconcerto sem dó nem piedade, e lá no meio, aproveitando a abençoada confusão, feliz da vida, o meu avô de Basto, que por acaso até ia a pé para Passos, via Várzea Cova, com a minha avó atrás, e não precisava da camioneta para nada, o meu querido avô de Basto, estava a dizer, varria o ambiente com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, tenteando o vinho para não cair de cangalhas e lançando aos céus o seu famoso grito de guerra - Olraitecamoniésse!

Ó meus amigos! Taylor Swift, que eu na verdade não sei muito bem em que é que consiste, há-de ser certamente uma coisa importante, mas a nossa Lagoa, juro-vos, também era uma festa muito bonita. E, ainda por cima, ia-se ao fanico...

P.S. - Publicado originalmente no dia 26 de Maio de 2024, Taylor Swift ainda estava fresca em Portugal. Hoje é Dia de Nossa Senhora das Neves, festa religiosa, assinalada na Lagoa com missa solene, sermão e procissão. O arraial pagão aguarda pelo final do mês.

terça-feira, 28 de maio de 2024

No meu tempo havia respeito

As crianças hoje em dia só aprendem porcarias. É a televisão, é o computador, é a internet, é o face, é o tablet, é o android, é o ipod tudo. Mas só aprendem porcarias, é uma pouca-vergonha. Não há educação, não há respeito, não há tabuada, não há catequese nem mocidade portuguesa. No meu tempo era outra louça, vinho de outra pipa: jogávamos à macaca, ao moche e ao mamã-dá-licença, brincávamos ao esconde-esconde e aos médicos, íamos às uvas, matávamos pardais, corríamos à coiada os moços das outras ruas, íamos para a porta do hospital ver chegar a ambulância, levávamos umas reguadas, rezávamos padre-nossos, cantávamos os reis de porta em porta, os mais velhos ensinavam-nos coisas bonitas, apresentáveis, lengalengas e versinhos didácticos, alguns até com música, para ficarem no ouvido, e ficaram. Lembro-me, por exemplo:

- Preta, mulata, nariz de batata, rouba galinhas e mete prà saca.
- Ruço de mau pêlo, quer casar, não tem cabelo.
- Viva quem tem pêlos na barriga, e quem os abaixo tem que viva também.
- Enganei-te, enganei-te, com uma pinga de leite, à porta da missa, a comer uma chouriça.
- Três vezes nove, vinte e sete, quem morreu foi o valete, enterrado na retrete.
- Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu, encontrei um burro morto a cagar e a mijar prò primeiro que falar.
- Pipa nova, pipa velha, foi ao mar, não afogou, com licença, meus senhores, aqui está quem se cagou.
- O Manel e a Maria foram ambos passear, o Manel deu um peido e mandou a Maria ao ar.
- Vinho na pipa, couves na horta, se não nos der nada, cagamos na porta.
- Cagarim, cagarou-se, há dois modos de cagar, se o cagalhoto foi grosso, fica o cu o fumegar.
- Ó Mila, o teu pai tem pila; se não fosse a pila, não havia a Mila.
- Sanica o cu, sanica a gaita; sanica o cu e a serigaita.
- Afina a guitarra, a viola toca, afina a guitarra e também a piroca.
- Quem te fosse ao cu e não te pagasse.
- Sexta-feira, sexta-feira, tararam tararam, sexta-feira da paixão, tararam tararam, foram dar com os padres todos, tararam tararam, a ir ao cu ao sacristão. Tararam tararam. Eram sete matulões, tararam tararam, com bigodes no colhões. Tararam tararam. Pontapés e bofetadas, tararam tararam, nas parrecas das criadas. Tararam tararam.
- A puta da minha amiga não tinha que pôr na mesa, cortou as beiças da cona, fez cozido à portuguesa.

Isto, sim, é cultura. É tradição. Antigamente é que era. Era tudo muito bonito. Pérolas como as supracitadas deviam ser aprendidas pelos novos fafenses desde os bancos da escola, para que não se percam. Deviam constar de um mais ou menos opúsculo a disponibilizar gratuitamente aos mais velhos e aos forasteiros de todas as idades no Posto de Turismo, na Casa da Cultura, na Biblioteca Municipal e em todos os balcões da especialidade, mas quê, a Câmara não quer saber...
Ai que saudades, rapaziada! No meu tempo havia respeito, instrução. Brincavam-se brincadeiras educativas, respeitosas e saudáveis. Quer-se dizer: brincava-se A Bem da Nação e conforme manda a Santa Madre Igreja.

P.S. - Publicado originalmente no dia 27 de Setembro de 2022. Hoje é Dia Internacional ou Mundial do Brincar.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...