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segunda-feira, 8 de setembro de 2025

A peita

Os ausentes
Sim, ele gostava muito de presentes. Mas os ausentes falam-lhe mais ao coração...

Peita. Dádiva ou promessa com o fim de subornar, suborno, antigo tributo pago pelos que não eram fidalgos - é o que dizem os dicionários. E peitar, seguindo esta linha de raciocínio, será, então, subornar com peitas, corromper, aliciar com dádivas e promessas. Talvez. Mas a peita, naquele tempo, ao menos em Fafe, era mais que um simples suborno e muito menos que um simples suborno. Até podia ser pagamento de favores, reais ou imaginários, simulacro de cunha, mas ia para além e ficava aquém disso. Não era corrupção tal como hoje a entendemos e usamos, era, isso sim, uma manifestação quase folclórica de uma certa subalternidade social mansamente aceite e assumida pelo pé-descalço, resquícios decerto medievais do tal imposto popular, numa gratidão imensa e sem sentido pelos de cima. Enfim, sabujice e lambe-botismo em todo o seu esplendor, os pobres davam aos ricos, não sei explicar de outra maneira, e assim funcionava o regime.
O meu avô, por exemplo. O meu avô da Bomba gostava muito de ser doente e adorava ir ao Porto "ao especialista". Era uma coisa constada. Íamos "ao especialista" como se fosse uma romaria, uma excursão familiar na catrel de três velocidades do meu padrinho Américo. Íamos, mas todos com a perfeita noção da solenidade do momento e da compostura que se exige numa ida "ao especialista" e ainda por cima ao Porto. Era um cardiologista na Rua de Sá da Bandeira, que por acaso também era médico do poeta Pedro Homem de Mello, que nós conhecíamos da televisão a preto e branco, e eu ficava muito emocionado por estar ali à beira daquela grande figura, na sala de espera, a cores, mas evidentemente sem abrir o bico, para não destoar e às tantas até "incomodar" o meu avô. O meu avô da Bomba, e este era um ponto de que toda a família estava avisada e o resto de Fafe também, "incomodava-se do coração".
Quando ia "ao especialista", o Bô da Bomba levava-lhe sempre um bom quilinho da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Sr. Abreu do Talho, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Era a peita, o regalo, é claro que o meu avô não podia ir ao Porto com consulta marcada e aparecer "ao especialista" de mãos a abanar...
As peitas aos médicos eram, aliás, aparentemente consensuais e obrigatórias, e creio saber que hoje em dia ainda há quem por aí as pratique. E não se pense que se tratava de um pagamento de consulta em géneros. Não. Era um pagamento em cima do pagamento em dinheiro vivo, pagas e não bufas, um extra, uma gratificação, uma gorjeta de mãos largas, sei lá bem por que carga de água. Em Fafe havia um médico muito famoso por receber peitas, tantas e tantas, material de luxo, belas peças de caça, dúzias de ovos caseiros, salpicões, presuntos, cabos de cebolas, rasas de milho ou feijão, frangos, capões, coelhos, cabritos, mortos e vivos, e não sei se também porcos, peitas, tantas e tantas, dizia eu, que o senhor doutor aceitava alegremente e depois vendia, inclusive aos açougueiros locais, tudo passado a patacos. Isso, o médico rico fazia negócio com as esforçadas oferendas dos seus doentes pobres, tinha até uma "criada" destinada quase exclusivamente a esse ofício. Toda a gente sabia do cambalacho, na vila e nos arredores. Alguém de bolsos mais abonados andava com desejos de uma perdiz de escabeche, precisava de um coelho-bravo para dar ao patrão, queria um pato à moda antiga para uma tainada das tais, não tinha nada que enganar, era só ir ao médico...

A peita, para ser considerada e aceite como tal, deveria ser praticada de chapéu na mão e espinha vergada, balbuciando-se no acto da entrega, reverente e agradecido, muitos "obrigados!", diversos "desculpe por ser pouquinho!", um singelo e envergonhado "semos probes!", e já à porta, sempre andando às arrecuas, um derradeiro e definitiva "desculpe"...

O Natal era uma época especialmente porreira para as peitas. Consoada não é só o banquete de Natal, a reunião da família à mesa, na noite de 24 para 25 de Dezembro. Consoada é também a prenda que se dá a alguém pelo Natal, dias antes, e esse uso da palavra era então muito comum em Fafe.
Nas férias de Natal, era costume os meninos da escola primária levarem a consoada, isto é, a peita, a casa das professoras ou professores. Uma oferta simples, chocolates, rebuçados, alguma mercearia essencial, como se fosse para o Banco Alimentar, um gesto bonito, dir-se-ia, se não estivesse desde logo ferido de uma profunda injustiça social. Havia aqui, no exercício da peita escolar, qualquer coisa de insensato, algo de paradoxal, uma gritante subversão de valores - afinal, os miúdos éramos sobretudo filhos de operários, caixeiros de baixo salário, pequenos lavradores aflitos, tarefeiros incertos, proletários de uma forma geral, e os professores, apesar do infinito desprezo de Salazar, eram professores, quer-se dizer.
Havia professoras ou professores que levavam a mal e tomavam de ponta os alunos que não lhes dessem nada. Havia professoras ou professores que aceitavam simpaticamente o mimo e entregavam às crianças uns docinhos para a troca. Havia professoras ou professores que agradeciam muito o gesto, mas pediam aos meninos que voltassem a levar as coisinhas para casa, onde faziam muito mais falta. E havia o meu professor e a esposa do meu professor.
O meu professor, melhor dito, o meu excelentíssimo professor era o Toninho da Cafelândia, o Professor Correia, que morava, se não me engano, na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, ali logo nas redondezas do Jardim do Calvário e do Tribunal. Fui lá uma vez levar a peita. Talvez um quilo de açúcar, do melhor, talvez um quilo de arroz, do melhor, ajeitados não em cartuchos normais, cinzentos, grosseiros, mas nuns cartuchos coloridos, alegres, finos, eventualmente até com fitinhas. A minha mãe caprichou.
Toquei a campainha e fui acolhido pela esposa do meu professor. Perguntou-me quem é que eu era, não precisei de explicar muito, sabia de nós, da nossa situação, a senhora agradeceu sinceramente os meus dois cartuchos, pegou neles com um sorriso, pediu-me para esperar um bocadinho à porta e foi lá dentro. A casa tinha umas escadas. A esposa do meu professor voltou num lampo e, quando voltou, vinha mais carregada do que quando foi. Trazia nas mãos, para me dar, um saquinho com rebuçados e um saco com quatro cartuchos dentro, talvez arroz, talvez açúcar, mas eram outros os cartuchos e a dobrar, para eu entregar à minha mãe e que lhe dissesse muito obrigado e que lhe mandava cumprimentos.
A boa senhora solucionara facilmente o paradoxo. E eu, todo contente, aprendi a lição da gentileza e da generosidade, do respeito pela dignidade do pobre que dá.

Por outro lado, convém não esquecer, o assunto aqui era a peita. A peita, de uma forma geral. A peita, isto é, a mama, a grandessíssima mama.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Alfabetização e Dia Internacional da Literacia.

Os livros estavam em boas mãos

E apeteceu-me dar-lhe um abraço
O homem caminhava vagarosamente ao lado da mulher. Curvado pelo peso de, fiz as contas, setenta e tantos anos, caminhava ainda assim com uma dignidade evidente. O homem velho, de casaco antigo, asseado, pé ante pé até ao café de praia e ao milagre do sol-pôr, levava as mãos atrás das costas. E nas mãos, reparei, um livrinho da Colecção Vampiro, a antiga: "O Imenso Adeus", de Raymond Chandler. Caramba!, és cá dos meus - pensei. E apeteceu-me dar-lhe um abraço.

A mania dos livros apanhei-a em Fafe, mal aprendi a somar letras, na biblioteca que na altura se chamava da Gulbenkian. Lembro-me muito bem da carrinha Citroën cinzenta em chapa canelada, a biblioteca itinerante, que frequentei uma ou duas vezes, estacionada à beira do Manel do Campo, mas o meu sítio já era edifício, do outro lado do Largo, em frente, creio que um primeiro-andar entre a loja do Damião Monteiro e a sapataria da esquina que dava para o beco da Polícia e em cima ou por baixo da Legião Portuguesa, o que certamente justificaria que fosse ali mesmo a meta de partida e de chegada da corrida de jericos dos 16 de Maio. Comecei pelas figuras, evidentemente. Depois procurei-me nos livros. E ia lá quase todos os dias. Em miúdo, ainda em tempo de escola primária, parece-me que sob a orientação rigorosa mas gentil do Senhor Alves, pai, espero não estar a dizer uma asneira muito grande, e depois já em moço, no meu regresso a casa pós-25 de Abril e pós-seminário, beneficiando da cumplicidade generosa e vanguardista do Professor Alberto Alves, que me abriu os olhos para um mundo inteiro que eu não sabia. Foi a minha sorte. Os livros são armas poderosas. E, em Fafe, estavam em boas mãos.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de FafeHoje é Dia Internacional da Literacia e Dia Internacional da Alfabetização.

Concelhos de mãe

Cátia Soraia entrou na universidade e, mal se instalou, mandou uma mensagem à mãe a pedir um concelho. A mãe, que é rica e boa alma, enviou-lhe Freixo de Espada à Cinta.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Literacia. E Dia Internacional da Alfabetização.

Dores artroses

Ele padecia de "dores artroses". E também de evidente analfabetismo.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Literacia. E Dia Internacional da Alfabetização.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Pardentro, pardentro! Já tocou!

Foto Hernâni Von Doellinger

Alegria, alegria a sério era aquilo: chegar à escola e a "empregada" mandar-me embora. Ordenava, porque naquele tempo as "empregadas" é que mandavam nas escolas primárias, repito, ordenava: - Vai já para casa, diz à tua mãe que a senhora professora está doente. E ordenava com o braço estendido e no fim do braço estendido tinha uma mão estendida com um dedo estendido que não admitia discussão e queria dizer "rua!"...

(Também poderia querer dizer "Salazar! Salazar! Salazar!", mas sem dedo. Naquele tempo, insisto, as "empregadas" é que mandavam nas escolas. Mandavam nos alunos, mandavam nos pais e mandavam nos professores. Mas mandavam tanto na escola como na rua - o melhor era fugir-lhes. Lembro-me especialmente de uma "empregada", a Dorzinhas, se não estou em erro, que vim a conhecer na Escola da Feira Velha e que era a verdadeira delegada escolar de Fafe. A seguir ao presidente da Câmara, ao comandante da Legião Portuguesa, ao regedor de pistolete à cinta e eventualmente ao Miguel Cantoneiro, a Dorzinhas era a autoridade local. Parece que a estou a ver, estatura meã, seca de carnes, morena, cabelo curto, despachada de pernas e de boca, severa, especialista em orelhas e cachaços, com todo o ar de solteirona, e se calhar não, e às tantas nem se chamaria Dorzinhas e era uma excelente pessoa.)

Mas então, rua! O coração rebentava-me pela boca mal saía o portão, aos gritos e aos saltos - Não há escola!, não há escola!, não há escola!, Rua Montenegro fora, enervando desnecessariamente o pobre Baptista do Asilo, que desatava às cabeçadas contra o gradeamento carcerário, e eu festejando efusivamente a dor de barriga da professorinha, dando a boa nova aos colegas retardatários, que vinham ao contrário e faziam logo ali meia-volta-volver e também saltavam e gritavam - Não há escola!, não há escola!, não há escola!...
(Alegria ingénua, pura, intensa, física. Era evidentemente uma manifestação de profunda catarse, embora eu na ocasião não o soubesse, porque ainda não tínhamos chegado a essa palavra, catarse. "Não há escola!, não há escola!, não há escola!..." era de certeza a antítese do "Pardentro, pardentro! Já tocou!" que gritávamos, em dias menos afortunados, desgostosos mas sempre aos saltos, em anticlímax, mal a sineta anunciava o fim do recreio e a hora de voltar à sala, antítese, estou em crer, mas eu também não fazia ideia, também ainda não tínhamos chegado a essoutra palavra, nem tão-pouco a anticlímax, que me lembre, mas foi para aqui que me deu hoje...)
Não há escola! Para trás, que se faz tarde! Virávamos costas ao casarão da sopa, passávamos a Casa de Santa Zita, que caducou, a Cafelândia, que é um banco, a Rosindinha Catequista, que desapareceu, o Largo, que estreitou, a Loja Nova, que morreu de velha, o Peludo, que acabou, o Cinema, que é outra coisa, a Aurorinha Maia, que era um vulcão e mudou de ares, a Padaria, que se foi, a Quiterinha, que é só memória, as Grilas, que Deus tem, o Funileiro, que já não há, quer-se dizer, alarmávamos a vila inteira - Não há escola!, não há escola!, não há escola!, eu chegava a casa, no Santo Velho, esbaforido e feliz, e a minha mãe, por tradição, enfiava-me logo à entrada duas ou três galhetas derivado àquele "espectáculo todo" e "para aprender". A nossa mãe era, como agora se diz, uma mãe muito táctil.

Aqui que a criançada não nos ouve, a verdade é esta: melhor do que ter escola (porque, agora a sério, escola é bom!), só mesmo não ter escola. Ao longo da minha vida aconteceram-me outros momentos extraordinários, episódios marcantes, memoráveis, como, por exemplo, o nascimento do meu primeiro pentelho ou a descoberta do tesão, mas, palavra de honra: nada se compara com aqueles dias gloriosos em que chegava à Escola Conde Ferreira e me mandavam para trás. Nada. E quem mos dera outra vez, esses dias de antigamente, embora Fafe já lá não esteja...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Educação.

sábado, 5 de outubro de 2024

Sou esbraguilhado e não sabia

Esbraguilhado, de acordo com a definição dicionária, é o tipo que "tem a braguilha desabotoada". As braguilhas há que anos não são de botões, mas não posso negar que umas quantas vezes já saí de casa com a ferramenta a arejar, esquecido completamente de puxar o fecho-éclair para cima, por pressa ou por idade - ainda não consegui chegar a uma conclusão que me convença. No entanto, foram acasos, excepções, eu morra aqui se não é verdade. Nesse sentido, portanto, não me vejo como um genuíno esbraguilhado.
Porém. Esbraguilhado também quer dizer o tipo que anda "com fralda da camisa saída". E aqui sou eu, todo e completo: esbraguilhado de corpo inteiro, que não meto as fraldas para dentro há mais de quarenta anos, nem nos dias raros e cerimoniosos de uso de casaco. Jamais.

Bela palavra, esbraguilhado. Nunca lhe tinha posto a vista em cima até há coisa de oito anos e por acaso, apesar de a língua portuguesa ser uma paixão e o meu ofício. O amor e o respeito pela nossa língua foram-me ensinados primeiro pela minha mãe - analfabeta por culpa da vida, e sábia graças a Deus. A minha mãe corrigia-me a leitura, emendava-me as palavras, eu de cabeça enfiada nos livrinhos fascistas da primária, na mesa da nossa sala que era também o quarto dos meus pais logo à entrada da casinha do Santo Velho, e a minha mãe a ensinar-me Português. Ela não sabia ler nem escrever, e eu achava aquilo extraordinário. Ainda hoje acho aquilo extraordinário. Um milagre.
Depois tive a sorte de me calhar o professor Correia (Toninho da Cafelândia, se não me engano), que me levou da segunda à quarta classe na Escola Conde Ferreira, tive os extraordinários mestres do seminário, o professor Alberto Alves, que me ensinava livros na Biblioteca Gulbenkian de Fafe, o velho professor Horácio, meu chefe e amigo na revisão do Janeiro. Todos me ensinaram. A tabuada dos nove, a Linha da Beira Alta, os reis da 1.ª Dinastia, semânticas e hermenêuticas, mas sobretudo ensinaram-me a pedir licença e a tratar com carinho a língua portuguesa. Puxaram pelo melhor de mim, sem estragarem o que a minha mãe tinha feito. Aprendi.

Aprendi, por exemplo, a ter dúvidas quando escrevo. Quem não tem dúvidas, tende a escrever asneiras. Hoje em dia escreve-se muito de ouvido. E escrever de ouvido não tem nada a ver com literatura oral, é mas é sinónimo de preguiça, ignorância. As palavras nem sempre se escrevem como soam, e muitas vezes são mal ditas. Mal ditas, mal escritas, mal interpretadas, e assim normalizadas. O erro passa a ser a norma, a patacoada alcança dignidade gramatical. Pela parte que me toca, eu, confesso, não sei escrever sem o dicionário, o livro, ao lado; não sei escrever sem a enciclopédia, os livros, ao lado. Molho o dedo, gesto antigo, vou lá ver se é com ésse ou com zê, se a palavra que escolhi quer dizer exactamente aquilo que eu quero dizer - e ainda assim asneio.
Foi num destes exercícios que descobri a palavra esbraguilhado e gostei dela. Assumi-a. E, à falta de melhor assunto, veio-me a memória. Ou então sou só eu a dar uso às palavras. Estimo-as, protejo-as, mas elas precisam de arejar.

P.S. - Publicado originalmente no dia 8 de Setembro de 2022. Hoje é Dia Mundial do Professor. Repito-me, em homenagem.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...