De braços teatralmente abertos, com a mão direita segurando a chávena do café e a esquerda agarrada ao pires, abanando compenetradamente a cabeça, em movimentos curtos, ritmados, de cima para baixo ou vice-versa a partir de uma certa altura, confirmando em absoluto a profundez da mensagem supra, Quitério fixava, inquiridor, num silêncio eloquente, uma estranha Luisinha que o olhava de boca aberta. Cansado de estar calado e de abanar a cabeça, Quitério perguntou finalmente: - Percebeu? - Olhe que não sei bem... - defendeu-se Luisinha, mais confusa era impossível. - Pois aí tem, exactamente a esse ponto é que eu queria chegar - sentenciou Quitério, dando por encerrada a sessão.
As máquinas de flippers chegaram a Fafe creio que pelos finais da década de 70 do século passado e assentaram arraiais na exígua sala de bilhares do velho café Peludo, onde Serafim d'Eiteiro debitada pérolas filosóficas para jogadores momentaneamente ensandecidos. Fafe daquele tempo, sobretudo Fafe fora de horas, era uma terra de jogo, havia muito vício, muita batota. O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo exactamente. Jogavam maus meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. (Para entrar era preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava.) Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao pau e à bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e feio. A tudo. E até se jogava ao pilas, como oportunamente contarei.
Os flippers chegaram a Fafe e foi uma febre medonha. Medonha, como a tempestade da história, da parábola. Eram sempre os mesmos, os do póquer, que eram os do bilhar, que eram os do dominó, que eram os das copas, agora apanhados pelo pinball, e apostava-se ali à rica e sempre com o dinheiro na mão. Os recordes, sucessivamente batidos, valiam belas maquias. Eram autênticos agarrados, constavam-se lares praticamente desfeitos. Era preciso marcar vez, havia quem pagasse por uma vaga, havia quem se esquecesse de ir trabalhar à tarde, só para não largar a máquina, deixando-a à mercê da concorrência. Não havia vida para além dos flippers, morava-se ali, ao som daquelas campainhas mágicas, sem mulheres, sem filhos, e ao fim da noite talvez também sem um tostão no bolso. Depois as máquinas foram embora, foi a sorte, ou então milagre, e os jogadores tornaram a casa, às mulheres e aos filhos, à vida real. Até que chegaram os telemóveis...
P.S.- Hoje é Dia Internacional do Contador de Histórias, modéstia à parte.
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