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quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Quando o cancro era pecado

Foto Hernâni Von Doellinger
Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita. Evidentemente eu não posso dizer se Fafe era uma terra mais ou menos hipócrita do que as outras terras, porque eu só conhecia Fafe, mas que Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita, disso tenho a certeza absoluta, porque eu estava lá e não sou parvo. Provavelmente Portugal completo era um país um bocadinho hipócrita, se calhar inteiramente hipócrita, mas disso eu não sabia ainda, não fazia sequer ideia, porque, é como digo, eu estava em Fafe, e em Fafe desconhecia-se o mundo abaixo de Arões, sobretudo derivado àquilo de que Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita. Mas, verdade seja dita, éramos razoavelmente felizes e saudáveis.
Em Fafe, por exemplo, ninguém padecia de cancro. Porque em Fafe não existia a palavra cancro. Cancro. A palavra cancro não se dizia. O cancro era crime e castigo. Pecado e culpa. Vergonha, tabu. O cancro estava proibido. Dizia-se que Fulano ou Sicrana tinham - aqui baixando a voz ao nível do sussurro, do segredo ao ouvido, do cochicho maledicente, da coscuvilhice beata - um psdtrff. Um psdtrff, com sinal da cruz e tudo. Sim, estava no hospital, no Porto, com um psdtrff, muito malzinha ou malzinho, consoante fosse Sicrana ou Sicrano, Deus lhe perdoe. Muitos fafenses morreram, naquele tempo, com psdtrff, mas nunca ninguém morreu com cancro. E não havia Sicranes.
E mamas? Mamas, dizia-se. Havia mama e havia mamas em Fafe, embora não fosse geral, como já aqui informei com todo o rigor. Tanto quanto me lembro, predominava um certo convencimento de que as raparigas e mulheres de Fafe possuíam realmente mamas, porém nem todas queriam que isso se soubesse. Mas cancro e mamas ou mama é que nunca poderiam coincidir numa mesma frase: cancro da mama, vamos um supor, seria impossível, desde logo porque é obsceno, e a pornografia constava que era só em Guimarães, e, em todo o caso, como se viu, a palavra cancro não existia em Fafe. Psdtrff da mama, com todo o respeito, até admito que possa ter havia, mas eu nunca ouvi dizer, devo confessar.
E depois do cancro, a sida, a mesma hipocrisia, a mesma pequena hipocrisia, a mesma enorme ignorância. Ignorância e indizível maldade. Naquele tempo, o cancro esteve para a sida como João Baptista serviu para Jesus Cristo, mas não adiantou, ninguém acreditou, essa parte não vinha no catecismo de sacristia, rançoso e cruel, e bondade e compaixão eram apenas palavras da boca para fora. Como psdtrff ou, deixemo-nos de merdas, "doença prolongada"...
Assim eram as coisas nos bons velhos tempos, e eu limito-me a contá-las tal qual as sei. Fafe está aqui como mero pretexto, mais nada. Fafe é hoje uma terra completamente diferente e absolutamente igual. Porque Fafe, sendo talvez às vezes uma terra um bocadinho hipócrita, é com certeza e sempre uma terra do caralho. Quero dizer, do c******.

P.S. - Hoje é Dia Nacional de Prevenção do Cancro da Mama.

O cancro, entre "vencedores" e "vencidos"

Um dos títulos mais useiramente infelizes na nossa comunicação social são dois: "Fulano venceu o cancro" e "Sicrano derrotado pelo cancro". Os heróis e os falhados. Ultrapassa-se o cancro simplesmente porque se faz muita força, morre-se de cancro por indecente e má figura.
Ora, a realidade lá fora dos teclados e da tabela de vendas não é assim. Sobreviver ao cancro está muito pouco nas mãos de quem o padece. Depende de tantas e tantas variáveis exteriores ao doente e à "coragem" do doente, que só vou citar duas, dinheiro e médicos, e nada é garantido, e tudo se resume, no final, a tempo, sorte ou azar. Não há fortes e fracos, competentes e incompetentes, lutadores e cobardes. Não há vencedores nem vencidos nisto do cancro, assunto sério. É a vida.

Imagine-se o ridículo que seria levar o jargão jornalístico até às últimas consequências e, em casos de atropelamento, escrevermos, elogiando os sobreviventes, "Fulano venceu a motorizada", aos pontos obviamente, ou, injustiçando os mortos, "Sicrano derrotado pelo motociclo". Horrível, não é? Pois com o cancro também.

P.S. - Hoje é Dia Nacional de Prevenção do Cancro da Mama. Escrevi e publiquei este textinho de protesto no dia 10 de Maio de 2014, no meu blogue Tarrenego! Não é a primeira nem posso garantir que seja a última vez que o republico. É a minha luta contra a estupidez. E outra coisa: eu não alinho nessa moda nova de que o cancro é uma revelação, uma epifania, uma experiência transcendental, "o melhor que me aconteceu na vida". Não, perdoem-me a curteza de vistas, mas eu continuo a achar que o cancro é uma merda.

Bruxedos e outros medos

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