segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Fafe era o fim do mundo

Foto Município de Fafe
Houve um tempo em que Fafe era o fim do mundo. Tenho testemunhas. Gente que se metia no comboio em Ouagadougou ou em Anchorage, vamos um supor, às tantas desprecatava-se, passava pelas brasas e quando acordava já estava em Fafe, porque não havia volta a dar, o mundo acabava ali, numa parede à frente do nariz, rés-do-chão da Rua do Retiro. Era também o fim da linha da CP. Ou o princípio, consoante o ponto de vista. Mas, chegando a Fafe, saía-se do comboio e da estação, subia-se a rampa até ao Zé da Menina, respirava-se fundo, olhava-se para o Largo e fazia-se vida. Se forem num instante à minha terra, que agora sabe outra vez muito de comboios, ainda vão encontrar quem conte como conseguiu. Perguntem ao Gino, que se fez fafense assim. 
De Fafe, ia-se para a guerra de comboio. A Fafe, chegava-se da França de comboio. Fafe e o comboio eram unha com carne. A Estação, assim com maiúscula, era a nossa praça de despedidas e reencontros, o nosso vale de lágrimas.
Passou-se. Depois, sem mais nem menos, os fafenses foram todos para os carros a duzentos à hora, pelo menos três carros em cada família, e a automotora começou a madrugar só para mim, para me trazer ao namoro no Porto e tornar-me a casa à noite, eu sozinho como passageiro, às vezes no Inverno lá à frente na cabina, gentilmente convidado, junto com o maquinista e o revisor, para aproveitar o aquecimento. Fafe desistiu do comboio, mas em grande estilo, coupé, mandou-o dar uma curva e queixou-se muito quando lho "tiraram". Hoje em dia faz-lhe festas.
E que se segue? Hoje o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas de discoteca, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria - ao ar livre, com couves, tomates, cheiro a alfádega e só saúde, espraiando-se pelos quintais e campos de Sá. Ainda por cima, o nosso fim do mundo era feminino: dizia-se em Fafe, não sei explicar porquê, "a" fim do mundo - muito à frente em termos de género, sexo e similares.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Este aperto mundial, de mais a mais num tempo em que os bons vão caindo como tordos, daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, trocássemos olás de boca, para que nos abraçássemos se fosse o caso com abraços de carne o osso, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas ou figurinhas de arrastar com os dedos. E depois levamos com pandemias a fazerem-nos ilhas, parece que estamos definitivamente condenados, proibidos uns dos outros.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.

(Apontamento publicado originalmente no dia 23 de Dezembro de 2013, no meu blogue Tarrenego!, e depois aqui, onde diz mais respeito. E creio que vem a propósito repeti-lo.)

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