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sábado, 21 de junho de 2025

O boleto e a merenda

Nos grandes concertos sinfónicos, o maestro sai sempre no final de cada peça para ir à casinha mudar a água às azeitonas. Depois volta para as palmas, para as vénias e para as flores, sorridente e aliviado. E os músicos? Os músicos protestam batendo nas estantes e continuam em palco de perninhas apertadas e, quem sabe, a urinarem-se por elas abaixo...

O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto, que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número nas procissões e outras arruadas, mas "ainda não ganhavam". Funcionava, em todo o caso, como um prémio, um extra. Uma espécie de consoada recebida a prestações.
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Beethoven, por exemplo, muito dado a repentinas modificações de humor, compôs algumas dezenas dessas miniaturas para piano, verdadeiras jóias, autênticas obras-primas, a mais famosa das quais será certamente "Für Elise", que toda a gente conhece. Tornando, porém, ao boleto: se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito, na vez da outra banda tocar.
Posso ter inventado esta memória, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E que se segue? Não sei porquê, mas desconfio, a minha cabeça começou então a associar boleto a merenda, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango abusivamente churrascado, moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em vinho até ao nariz.

Vinho, como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para disfarçar o pique a vinagre. Mas bebia-se. Porque beber fazia parte da arte, tinha o seu próprio solfejo. Como eu costumo dizer, e não me canso de repetir, a diferença entre uma colcheia e uma colmeia está na medida. Isto é: uma colmeia corresponde exactamente a uma semicolcheia. E deve servir-se de preferência numa seminfusa. Bem fresca...

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Europeu da Música.

sábado, 14 de setembro de 2024

Maestro Ilídio Costa homenageado

Foto Meloteca
O maestro e compositor Ilídio Costa vai ser homenageado em Vila Nova de Cerveira, no próximo dia 22 de Setembro, no arranque do XVII Festival de Bandas de Música. É de amanhã a oito dias, no centro histórico de Cerveira, com cinco bandas convidadas. Ilídio Costa foi maestro da Banda de Revelhe, de Fafe, durante 31 anos.

domingo, 19 de maio de 2024

Os apaixonantes

Foto Tarrenego!
Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com gestos semibreves de deleite e aprovação, procurando com um sorriso de conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E pedem chiu!, semiconfusos e comovidos até às lágrimas, à espera dos ribombos do grand finale, para então se desfazerem em aplausos. Eles estão a ouvir a melhor banda do mundo, a sua banda, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham bom ouvido. Não precisam dos ouvidos sequer. Eles ouvem a música com o coração. Eles são os apaixonantes.
Regra geral, são homens, reformados e musicalmente analfabetos. Mas também são sábios, quando conseguem reduzir a sublime arte que tanto os apaixona à sua simplicidade essencial. "Perceber de música é gostar do que se ouve", dizem. Eles, sim, são os verdadeiros filarmónicos, fazendo jus à explicação da origem grega da palavra: phílos = amigo + harmonikós = de harmonia. Exactamente: eles são os amigos da música.
Eles vão ouvir os ensaios, da parte de fora, na rua, por respeito. Trazem na carteira o calendário dos concertos para o Verão inteiro. Seguem a banda para todo o lado, se possível de boleia na camioneta que transporta o material e os músicos. É verdade, como eles apreciam a proximidade e o convívio com os seus artistas! Oferecem mais um copo a troco de dois dedos de paleio, discutindo clarinetes e bombardinos, marchas e fantasias, com demonstrativos e desafinados terululi-fá-dó-mi-rol-fé-poropopó-trró-pum! pelo meio. Pedem "mais peso", querem "peças pesadas" para afogar sem misericórdia a banda do outro coreto no emocionante despique que apenas intervala. Entusiasmados, metem na conversa o Tchaikovsky e o Giménez, num tu cá, tu lá mais próprio de quem evoca uma famosa dupla de defesas centrais. Se eles sabem do que falam? Talvez não. E isso interessa?
Na terra onde eu nasci há duas bandas de música. E dois grupos rivais de apaixonantes, simetricamente filarmónicos e copofónicos. Qualquer observador independente dirá que, objectivamente, uma banda é melhor do que a outra. Mas isso aqui também não interessa para nada. Para os apaixonantes, a qualidade absoluta é um valor irrelevante. A nossa banda é que é sempre a melhor. O ouvido dos apaixonantes, para além de geralmente duro, é um ouvido selectivo, faccioso: surdo às fífias da casa e inventor de desafinações na concorrência. "Eles estão fraquinhos este ano"...
Portugal deve ser o único país do mundo que tem apaixonantes. E os apaixonantes são uma raça em vias de extinção. Há-os em Fafe. Alguns dos poucos sobreviventes podem ainda ser avistados numa festa ou romaria perto de si, em grupos de dois ou três, encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, como lhe contei. Se por caso os vir, respeite-os, admire-os, mime-os, ajude à preservação da espécie.
Porque os apaixonantes e as bandas de música são como aqueles casais antigos, fiéis e mansos, doces, em que um não vive sem o outro. Ela morre e ele vai logo atrás. Ele morre e ela vai logo atrás. É. No dia em que desaparecer o último apaixonante, enterrem-se também as filarmónicas. E que permaneçam juntos, para toda a eternidade.

P.S. - Publicado aqui originalmente no dia 18 de Agosto de 2022. Como combinado, estamos a recordar alguns dos meus textos alusivos ou de certa forma ligados aos nossos 16 de Maio, isto é, às Feiras Francas de Fafe, à nossa ruralidade antiga e irrevogável. E já agora: as nossas bandas tocam esta tarde na Arcada.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Viva a Banda de Golães! Viva a Banda de Revelhe!

Hoje é Dia Nacional das Bandas Filarmónicas. O glorioso dia das nossas bandas. Sendo Fafe a terra musical que é, de certeza que o município celebrará a efeméride com todas as fanfarras e muitas fotografias ao senhor presidente da Câmara e ao meu primo Bertinho, que agora, não sei o que é que lhe deu, aparece sempre nos retratos. Ou então não vai acontecer nada, a data passa como se nada fosse, e por causa das coisas festejo-a já eu aqui no Fafismos, republicando alguns dos meus textos sobre o assunto. E portanto é o que se segue. Desliguem os telemóveis. Silêncio, por favor...

Seminfusas bem colcheias

A diferença entre uma colcheia e uma colmeia está na medida. Isto é: uma colmeia corresponde exactamente a uma semicolcheia. E deve servir-se de preferência numa seminfusa. Bem fresca...

Molhando a palheta

Vamos então ao boleto. O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos, uma espécie de gratificação, provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número na procissão mas "ainda não ganhavam".
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito.
Posso ter inventado esta memória que se segue, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E o que acontece? Não sei porquê (sei, sei!), a minha cabeça começou então a associar boleto a merenda, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango abusivamente churrascado, moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em vinho até ao nariz.

Vinho, que é como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para lhe disfarçar o pique a vinagre. Mas bebia-se. Porque beber fazia parte da arte, e tinha o seu próprio solfejo, um tempo de aprendizagem...

sábado, 20 de agosto de 2022

Sempre atrás do solidó

Foto Hernâni Von Doellinger
Eu não posso andar na rua e ver bandas de música ou grupos de zés-pereiras, que me perco. Vou atrás, sigo-lhes os passos, esqueço-me da vida, já não sei que recado ia fazer. Eram quatro ou cinco pães? Ou seriam bananas? Ou era para dar a contagem da luz? Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, comovem-me. Queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro" cantado de mansinho mas bem picada de tasco em tasco. Queria pedir desculpa por ignorantemente lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E da saudade.

O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João Massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do seu tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo manso e exacto que ele gostava de explicar, maestro, como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante, por correspondência. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Os apaixonantes

Foto Hernâni Von Doellinger
Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com gestos semibreves de deleite e aprovação, procurando com um sorriso de conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E pedem chiu!, semiconfusos e comovidos até às lágrimas, à espera dos ribombos do grand finale, para então se desfazerem em aplausos. Eles estão a ouvir a melhor banda do mundo, a sua banda, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham bom ouvido. Não precisam dos ouvidos sequer. Eles ouvem a música com o coração. Eles são os apaixonantes.
Regra geral, são homens, reformados e musicalmente analfabetos. Mas também são sábios, quando conseguem reduzir a sublime arte que tanto os apaixona à sua simplicidade essencial. "Perceber de música é gostar do que se ouve", dizem. Eles, sim, são os verdadeiros filarmónicos, fazendo jus à explicação da origem grega da palavra: phílos = amigo + harmonikós = de harmonia. Exactamente: eles são os amigos da música.
Eles vão ouvir os ensaios, da parte de fora, na rua, por respeito. Trazem na carteira o calendário dos concertos. Seguem a banda para todo o lado, se possível de boleia na camioneta que transporta o material e os músicos. É verdade, como eles apreciam a proximidade e o convívio com os seus artistas! Oferecem mais um copo a troco de dois dedos de paleio, discutindo clarinetes e bombardinos, marchas e fantasias, com demonstrativos e desafinados terululi-fá-dó-mi-rol-fé-poropopó-trró-pum! pelo meio. Pedem "mais peso", querem "peças pesadas" para afogar sem misericórdia a banda do outro coreto no emocionante despique que apenas intervala. Entusiasmados, metem na conversa o Tchaikovsky e o Giménez, num tu cá, tu lá mais próprio de quem evoca uma famosa dupla de defesas centrais. Se eles sabem do que falam? Talvez não. E isso interessa?
Na terra onde eu nasci há duas bandas de música. E dois grupos rivais de apaixonantes, simetricamente filarmónicos e copofónicos. Qualquer observador independente dirá que, objectivamente, uma banda é melhor do que a outra. Mas isso aqui também não interessa para nada. Para os apaixonantes, a qualidade absoluta é um valor irrelevante. A nossa banda é que é sempre a melhor. O ouvido dos apaixonantes, para além de geralmente duro, é um ouvido selectivo, faccioso: surdo às fífias da casa e inventor de desafinações na concorrência. "Estão fraquinhos este ano"...
Portugal deve ser o único país do mundo que tem apaixonantes. E os apaixonantes são uma raça em vias de extinção. Há-os em Fafe. Alguns dos poucos sobreviventes podem ainda ser avistados numa festa ou romaria perto de si, em grupos de dois ou três, encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, como lhe contei. Se por caso os vir, respeite-os, admire-os, mime-os, ajude à preservação da espécie.
Porque os apaixonantes e as bandas de música são como aqueles casais antigos, fiéis e mansos, doces, em que um não vive sem o outro. Ela morre e ele vai logo atrás. Ele morre e ela vai logo atrás. É. No dia em que desaparecer o último apaixonante, enterrem-se também as filarmónicas. E que permaneçam juntos, para toda a eternidade.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...