domingo, 21 de agosto de 2022

Passem a bola ao Aníbal!

Foto Hernâni Von Doellinger
Sou do tempo em que havia respeito. No meu tempo havia educação, havia tabuada, havia reguadas e havia catequese, levávamos no focinho em casa, na escola e na sacristia, mas demos todos em homens, incluindo as que, por razões de força maior, deram em mulheres. E hoje em dia?
Hoje em dia não há respeito por nada, nem pelos velhos, nem pelos novos, nem pelos entremeados, nem pelos pais, nem pelos filhos, nem pela missa, nem pelos professores, nem pelo sagrado futebol - e daqui não vamos mais longe. As pessoas pagam fortunas para entrarem no estádio e depois não vêem o jogo, espreitam-no pelo ecrã do telemóvel, "filmam", "fotografam", viram as costas ao campo, telefonam-se, vão ao YouTube, lançam tochas, fazem selfies, mandam sms umas às outras, cadeira ao lado, revelam a emoção do momento no Facebook ou no Instagram, mas não ligam à bola, não sabem o resultado, não sabem sequer quem são "os nossos", querem ver se aparecem na televisão, nem um palavrãozinho ao árbitro, nem um vai à merda! ao defesa-esquerdo que é uma nódoa, nem um uiiii! ao tiro a rasar poste. Como se o futebol sem caralhadas ainda fosse futebol. Que grande falta de respeito pelos intervenientes, que ausência de presença, que ignorância da tradição...
No meu tempo sabíamos como nos devíamos comportar. O futebol à antiga tinha a sua própria gramática. Da bancada (e, aqui, bancada é uma mera força de expressão), tínhamos uma palavra a dizer em campo. Havia um léxico muito concreto e rigoroso que nos era ensinado desde tenra idade, por exemplo:
- Olha a hora!...
- Está a sentar!...
- Já não chove!...
- Não jogas nada!...
- Anjinho de merda!...
- És um arrocho!...
- Abre-me esses olhos, ó cego!..
- Ó bandeirinha, estás fodido comigo!...
- Ó gatuno!...
- Vais levar poucas, vais!...
- Aperta com ele!...
- Dá-lhe!...
- Parte-lhe uma perna!...
- Ó filhadaputa, ó boi!...
- És muito corno!...
- Força prà frente, caralho, pá!...
- Chuta, que o guarda-redes é anão!...
- Chuta, caralho!...
- Corta, caralho!...
- Desce, caralho!...
- Sobe, caralho!...
- Corre, caralho!..
- Tira o gajo, caralho!...
- Mete outro, caralho!...
Pelo menos em Fafe era assim, primeiro no Campo da Granja e depois no "Estádio". A interacção era tão próxima, tão intensa, que, às vezes, mortinhos por fazerem parte, os próprios jogadores tomavam a iniciativa de mandar foder os adeptos, num eloquente gesto largo ou num simples chocalhar de colhões, como quem diz e diziam "ide para o caralho, caralho, correi vós, caralho"...

Na verdade, o vocativo caralho era sacramental. Dissesse-se o que se dissesse, nem que fosse "as horas?", e se, no final, se lhe enfiasse o caralho como se fosse um sufixo, estávamos obviamente a falar de futebol. Do futebol puro, do tempo em que havia educação e respeito pelo jogo. Sobretudo respeito e indesmentível educação. Até durante o intervalo, no bar, mandando vir "seis cervejas, caralho" ou "quatro malgas do novo, caralho"...

Destoava o Aníbal Carriço, isto também é verdade. O bom e querido amigo Aníbal Rodrigues, porém Carriço, que, tantas vezes farto da engonha de falsos habilidosos, algum brinca-na-areia de trazer por casa, gritava de cá de fora com voz pausada e grave, solenemente, de mãos na boca em altifalante: "Passa a bola! PA-SSA A BO-LA!! PA-SSA A BOO-LAA!!!..."
O grande Aníbal Carriço, meu ilustre camarada de jornais e empolgado parceiro de charlas tasqueiras, foi um dos mais promissores jovens jogadores da AD Fafe da sua geração, mas a Guerra Colonial e uma série de balázios no lombo impediram-lhe o futuro. Salvou-se-lhe felizmente a tonitruância.
De acordo com os dados recolhidos pela estação sísmica da Gavieira, em Viana do Castelo, o "PA-SSA A BOO-LAA!!!..." do Aníbal dito no estádio do Fafe ouvia-se (e eu quero tanto que ainda se ouça!), consoante para onde o vento estivesse virado, de Guimarães até Felgueiras, da Póvoa de Lanhoso até Vieira do Minho e de Cabeceiras de Basto até Celorico do mesmo. Isto, se não estou em erro.
A dialéctica e a exegese futebolísticas estão modernamente aos cuidados de especialistas televisivos, de paineleiros. Mas, palavra de honra, por mais paineleiros que os paineleiros sejam: ver a bola simplesmente, desabafar umas litúrgicas caralhadas, ouvir o Aníbal, e depois ir merendar ao tasco - ainda não descobri melhor maneira de passar uma boa tarde de domingo...

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