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terça-feira, 22 de abril de 2025
António Rebordão quê?...
Uma vez, há catorze ou quinze anos, eu tive a sorte de almoçar com o escritor António Rebordão Navarro. Eu e mais três amigos e velhos camaradas de ofício, dos jornais, num acidental e feliz reencontro à beira-Douro, lá na Ribeira de Gaia. Falámos sobretudo de banalidades risíveis, como convém à mesa, mas era fatal chegarmos aos livros. Meti conversa, como quem não quer a coisa:
- Sabe que fomos praticamente vizinhos durante alguns anos? O senhor doutor ainda mora lá para a nossa Foz?...
O senhor doutor era para mim senhor doutor porque Rebordão Navarro era formado em Direito e chegou a exercer de advogado e de delegado do Ministério Público, antes de se entregar de corpo e alma à escrita, como ficcionista, poeta e editor. Já quanto à resposta, às respostas que eu, molageiro, lhe pedia, disse-me que não e que sim. Que não sabia que fôramos vizinhos, que aliás não me conhecia de lado nenhum nem isso lhe fazia falta, mas que realmente continuava pela Foz, embora já não na Praça de Liège.
Porém era ali que eu queria chegar. Com esta minha notável capacidade para fazer figuras tristes, que já então se manifestava exuberantemente, eu estava mortinho por demonstrar mais uma vez quão sólido é o cuspo com que argamasso os meus pindéricos alicerces culturais. E acrescentei, todo vaidoso:
- Sabe, eu tenho o livro, tenho "A Praça de Liège". Se soubesse que me ia encontrar com o senhor doutor, até o tinha trazido para que me fizesse o favor de uns sarrabiscos, de um autógrafo. Tenho o livro, está lá em casa...
- Ai tem o livro? Mas eu escrevi mais livros, escrevi para aí uns catorze... - cortou Rebordão Navarro, sem disfarçar o sorriso malandro como o arrozinho de feijão e legumes que lhe acompanhava os bolinhos de bacalhau com que se deliciava.
A minha primeira reacção foi largar o meu habitual "Eu sei!" com que tento sair das enrascadas em que por mania me meto, e recitar ali mesmo, de cor e salteado, da trás para a frente e da frente para trás, por ordem alfabética e depois por ordem cronológica, os outros treze títulos do reputado autor que tinha à minha frente de faca em punho, mas a verdade é esta: eu só conhecia "A Praça de Liège". Optei, portanto, por tornar pública a minha segunda reacção, que também me saiu uma boa merda e que foi "Pois faço ideia, mas lamentavelmente não tenho acompanhado a carreira do senhor doutor"...
"A Praça de Liège" foi um sucesso tremendo aquando da sua publicação, em 1988. Era o livro da moda (pois se até eu o comprei!) e ganhou o Prémio Literário Círculo de Leitores. Na altura em que me encontrei com o autor, contou-me o próprio, no Círculo de Leitores já não sabiam quem ele era, quem era o escritor António Rebordão Navarro. Alguém do Círculo contactou a irmã do escritor por uma razão qualquer, a senhora falou do irmão e do famigerado prémio e obteve como resposta um lamentável
- Quem? Rebordão quê? Não conheço...
Pois é: a memória! As empresas enxotam quem sabe da poda, despedem os funcionários pelas mãos dos quais passaram os factos e as pessoas, preferem juniores renováveis e analfabetos, verdes como os recibos, fiam-se no Google e na inteligência artificial mas não vão lá. E depois ninguém sabe nada de nada, por manifesta estupidez natural.
Há anos que está a acontecer o mesmo nas redacções dos jornais portugueses e até se contam algumas saborosas anedotas a esse respeito. São de rir tanto, as anedotas, que às tantas até são verdade.
No que me diz respeito, e como penitência pela minha ignorância àquela data quanto à dimensão da obra literária de António Rebordão Navarro, que afinal era qualquer coisinha mais do que catorze títulos, aqui deixo o registo essencial, com sinceros votos de que faça também bom proveito à rapaziada do Círculo de Leitores: poesia - "Longínquas Romãs e Alguns Animais Humildes", 2005; "A Condição Reflexa", 1989; "27 Poemas", 1988; "Aqui e Agora", 1961; teatro - "Sonho, Paixão, Mistério do Infante D. Henrique", 1995; "O Ser Sepulto", 1972; crónica - "Estados Gerais", 1991; ensaio - "Juro Que Sou Suspeito", 2007; conto "Dante Exilado em Ravena", 1989; romance - "As Ruas Presas às Rodas", 2011; "A Cama do Gato", 2010; "Romance com o Teu Nome", 2004; "Todos os Tons da Penumbra", 2000; "Amêndoas, Doces, Venenos", 1998; "A Parábola do Passeio Alegre", 1995; "As Portas do Cerco", 1992; "Mesopotâmia", 1984; "A Praça de Liège", 1988; "O Parque dos Lagartos", 1981; "O Discurso da Desordem", 1972; "Um Infinito Silêncio", 1970; "Romagem a Creta", 1964.
P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego! O escritor e editor António Rebordão Navarro morreu no dia 22 de Abril de 2015, aos 82 anos. E Portugal adormecido parece que já não sabe quem é que ele foi, quem é que ele é, o que significa. Actualmente, acho isso mal. Para ignorante, bastava eu.
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quinta-feira, 27 de abril de 2023
O Magalhães da Circunvalação
E parece que foi ontem. No dia 21 de Outubro de 1520, mais de um ano após o início da primeira viagem de circum-navegação da Terra, o navegador português Fernão de Magalhães descobriu na ponta da América do Sul um estreito de passagem entre os oceanos Atlântico e Pacífico. O estreito passou a chamar-se de Magalhães, para não se confundir com o estreito do Antunes, que realmente parece um pau de virar tripas. Na cidade do Porto, em homenagem a tamanho cometimento, foi mandado construir uma avenida que ligasse o Campo 24 de Agosto ao falecido Estádio das Antas, a qual viria a revelar-se de uma paradigmática utilidade domingueira de quinze em quinze dias.
Mas, parecendo ter sido ontem, já foi há muito tempo. Quinhentos anos praticamente mais três. E hoje em dia vivemos tempos de profunda ignorância e vaidosa estupidez. Entre o Porto e Matosinhos, à porta dos liceus e das faculdades, nas galerias de arte, nos cafés, nas esquinas, nos autocarros, no metro e até nas trotinetas partilhadas, ouve-se apenas uma pergunta, que são três: - Mas afinal o que é que fez o Fernando Magalhães? Inventou a Circunvalação? E chama-se Viagem da Circunvalação porquê?...
Pois. O navegador Fernão de Magalhães, nascido provavelmente em Ponte da Barca, Alto Minho, em 1480, morreu em combate nas ilhas de São Lázaro, Filipinas, no dia 27 de Abril de 1521. Entre uma coisa e outra, descobriu, com efeito, a Circunvalação, numa longa viagem de fim de curso organizada entre 1519 e 1522 e que ele infelizmente não pôde concluir. Em todo o caso, meus senhores, a Circunvalação é realmente um mundo.
Mas, parecendo ter sido ontem, já foi há muito tempo. Quinhentos anos praticamente mais três. E hoje em dia vivemos tempos de profunda ignorância e vaidosa estupidez. Entre o Porto e Matosinhos, à porta dos liceus e das faculdades, nas galerias de arte, nos cafés, nas esquinas, nos autocarros, no metro e até nas trotinetas partilhadas, ouve-se apenas uma pergunta, que são três: - Mas afinal o que é que fez o Fernando Magalhães? Inventou a Circunvalação? E chama-se Viagem da Circunvalação porquê?...
Pois. O navegador Fernão de Magalhães, nascido provavelmente em Ponte da Barca, Alto Minho, em 1480, morreu em combate nas ilhas de São Lázaro, Filipinas, no dia 27 de Abril de 1521. Entre uma coisa e outra, descobriu, com efeito, a Circunvalação, numa longa viagem de fim de curso organizada entre 1519 e 1522 e que ele infelizmente não pôde concluir. Em todo o caso, meus senhores, a Circunvalação é realmente um mundo.
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