domingo, 31 de março de 2024

O compasso

Foto Hernâni Von Doellinger

O compasso divide a música em intervalos de tempo iguais. Muitos estilos musicais tradicionais já presumem um determinado compasso: a valsa, por exemplo, usa o compasso três por quatro (ou ternário simples), enquanto o rock se serve por norma do quatro por quatro (quaternário simples), do doze por oito (quaternário composto) ou também do velho três por quatro da valsa. O compasso faz arcos de circunferência mas não de violino, é uma modesta constelação de estrelas praticamente apagadas no hemisfério sul e, aqui que ninguém nos ouve, tem qualquer coisa de maçónico. O compasso costumava sair à rua no Domingo de Páscoa.

Em Fafe de boa memória, era na Casa do Santo Velho que se reuniam todas as cruzes no fim tardeiro do compasso, seguindo depois para a Igreja Nova, em galhofeira procissão de sinetas exaustas e descompassadas, nas últimas. Rebentavam foguetes com uma violência desnecessária, desproporcional, moucando-me os ouvidos e estremecendo-me as entranhas, e a mim parecia-me que a ressurreição do Senhor podia muito bem ser melhor festejada com bichas-de-rabiar, não desfazendo, mas ninguém me ligava...

Uma questão de compasso

- Une valse à mille temps... - disse ela, prometedora e coquete, fazendo rodar a saia plissada. - Eu não! - disse ele, apressado e javardo, arriando calças e cuecas...

Amor e duas cadeiras

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 30 de março de 2024

quinta-feira, 28 de março de 2024

Fafe no centro da História

Se me dão licença, eu creio que não está devidamente estudado o papel de Fafe e dos fafenses ou protofafenses na fundação da nacionalidade. E esta é uma lacuna particularmente repreensível numa terra que exabunda de historiadores e simpatizantes, amiúde galardoados.
Entendamo-nos. A mim nem me passa pela cabeça que Portugal tenha nascido em Guimarães, aqui a menos de três léguas ou, vá lá, digamos a quatrocentos tiros de besta, em qualquer caso perto e bom caminho, e quase sempre a descer depois de Paçô Vieira, nem me passa pela cabeça, dizia, que Portugal tenha nascido em Guimarães, que é do que eles se gabam, e que em Fafe, ao mesmo tempo, não tenha acontecido nada, eles lá em baixo à batatada, à grandessíssima trolha, um vasqueiro desgraçado, e nós aqui como se nada fosse, a vermos a Gabriela na televisão a preto e branco. É impossível. Portugal de certeza que nasceu também em Fafe, nem que tenha sido só um bocadinho, mas os historiadores - são, infelizmente, os historiadores que temos - ainda não deram fé. Esta é a minha ideia.
Eu lembro-me muito bem, e posso testemunhar, em tribunal se for preciso, que, enquanto jovens e antes do futebol e outras vidairadas, os manos Pimenta Machado, ilustres fidalgos vimaranenses, passavam a vida em Fafe. Ora, se os Pimenta Machado, que eram quem eram, uma ínclita geração praticamente, e, para além de outros cabedais, possuíam um considerável estabelecimento em frente às camionetas do João Carlos Soares, cujo escritório ficava praticamente ao lado do Café do Franquelim que é o Café Vitória, na parte de fora do mercado de Guimarães, se os Pimenta Machado, enfatizo, não nos desamparavam a loja, o mais certo é que, antes deles, o próprio Afonso Henriques desse também as suas voltas pelos nossos lados, nem que fosse só para desenfastiar ou beber um copo no Nacor, nada mais natural.

Afonso Henriques, esse gabiru de estilo motoqueiro que gostava de vestir saias e há quem diga que batia na mãe, tinha uma espada que pesava toneladas e não cabia no guarda-vestidos e nem sequer existiu. O espadalhão, quero eu dizer. Já o jovem Afonso ficou na história da moda por ter sido o criador da maxissaia. Morava geralmente no austero Castelo de Guimarães e tinha um anexo charmoso chamado Paço dos Duques onde dava as suas festas que eram sobremaneira constadas. No dia 24 de Junho de 1128, tomai nota, depois de uma dessas iglantónicas farras, noitada de São João ainda por cima, Afonsinho do Condado acordou digamos maldisposto, bebeu um copo de água da mina com bicarbonato, mandou chamar o pessoal e os cavalos e derrotou a progenitora, Dona Teresa de Leão, mailo seu amante galego, Fernão Peres de Trava, na Batalha de São Mamede, levada a efeito ali mesmo nos arredores, para evitar deslocações e despesas, que o País ainda estava a começar.

Acontece que a Batalha de São Mamede, aviso já, nunca me convenceu. Custa-me a aceitar que sítios como Creixomil ou Cano (Cáno, como dizem os locais) possam ser mais importantes no que nos é contado como sendo a História de Portugal do que, por exemplo, e não vamos mais longe, Arões ou Cepães, ali mesmo ao pé, mas do lado de Fafe, do nosso lado. Duvido, de resto, que Guimarães tivesse naquele tempo equipamentos, nomeadamente hoteleiros, para acomodar aquela espanholada toda e ainda por cima recinto preparado e certificado para a pancadaria. É que, parecendo que não, um evento desta natureza, uma batalha com cavalos e tudo, implica muita logística. Olhem só a confusão que são hoje em dia as chamadas feiras medievais! Por outro lado, o Multiusos funciona apenas desde 2001 e o Estádio só ficou uma coisa em condições para o Euro 2004.

Eu cuido que Fafe teria recebido muito mais condignamente a Batalha de São Mamede. Não é por acaso que chamamos a nós próprios, embora sem razão que se perceba, Sala de Visitas do Minho. Olho para a zona de Rilhadas, vamos um supor, e vejo a batalha ali. Vejo claramente vista. Uma zona devidamente infra-estruturada e onde sobejam as condições e comodidades para a organização de uma batalha com todos os matadores e que certamente não envergonharia ninguém.
As pistas estão aí. Há que repor a verdade dos factos. Fafe não pode continuar à porta, nas bordas da História. De uma vez por todas, Fafe deve ocupar o lugar a que tem direito. Se São Mamede foi em Rilhadas, isto é, se a Batalha de São Mamede foi de facto levada a efeito em Rilhadas? Não sei. Esse é o desafio que eu deixo de borla aos historiadores encartados, particularmente aos intrépidos historiadores fafenses, se a tanto os ajudar o engenho e arte. E não me venham dizer que, a esse respeito, a História é omissa. Omissa? Homessa!

P.S. - Desculpem voltar à carga, mas hoje tinha mesmo de ser. É que hoje é Dia Nacional dos Centros Históricos, e Fafe tem de constar. Em nome do rigor histórico, refira-se que, regra geral, os vimaranenses de bom beber e satisfatório comer vinham muito a Fafe e chamavam Toninho dos Canários ao tasco do Nacor. E o Nacor era em Portugal. E Portugal era em Fafe, como já aqui contei. Quer-se dizer, centro histórico mais centro histórico é praticamente impossível!

Com vista para Portugal

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 27 de março de 2024

Noé faleceu aos 950 anos, inesperadamente

Noé, como todos os homens especialmente abençoados por Deus, era um incorrigível optimista. De hora a hora, dia após dia, durante quarenta dias, espreitava à janela da Arca, desviando a cortininha de chita estampada em degradê, e dizia à mulher: "É só um aguaceiro"...

O melhor actor do mundo

Voltando à vaca fria. A conversa já tem barbas e foi à porta fechada. Ao balcão, de ambos os lados, o dono do café insone, o empregado do turno da madrugada e alguns clientes seleccionados e especialistas em boates, pancadaria e artes cénicas bebem finos e discutem animadamente sobre uma questão fundamental: quem é o melhor actor do mundo - Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger ou Jean-Claude Van Damme? As opiniões dividem-se, ameaçam-se, quase chegam a vias de facto. E eu, na mesa do canto, só, mas também já com a minha conta, penso na injustiça: evidentemente esqueceram-se do Steven Seagal e do Chuck Norris...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Teatro. No Parlamento, vai uma comédia...

terça-feira, 26 de março de 2024

As deputadas de Fafe em Lisboa

Pois lá tomaram posse as nossas duas deputadas. Duas fafenses na Assembleia da República, pelo menos para já: Vanessa Barata, do Chega, em estreia absoluta, e a social-democrata Clara Marques Mendes, de quem se diz que pode sair para ministra, pelo menos secretária de Estado, digo eu. Só foi peninha o despedimento de Pompeu Martins, que ia outra vez escondido nas listas do PS, e digo peninha não porque me tenha constado que ele fez alguma coisa digna de registo enquanto lá esteve, antes pelo contrário, disso parece que não pode ser acusado, tanto quanto sei, mas porque era assim que se dizia em Fafe antigamente, peninha, acentuando também o "é", pelo menos da boca para fora, e três sempre é melhor do que dois, quer-se dizer, do que duas, para além de que sou um profundo defensor da igualdade de género, e um homem, mesmo que só um para amostra, creio que compunha melhor o ramalhete...

Parcídio Summavielle homenageado


Parcídio Summavielle será homenageado amanhã, numa iniciativa da Comissão Promotora de Homenagem aos Democratas de Braga e da Comissão Executiva das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril em Fafe, com a colaboração do Município. A sessão decorrerá no salão nobre do Teatro-Cinema de Fafe, a partir das 18 horas. De entre as diversas intervenções previstas, faço questão de destacar a de Ricardo Gonçalves, orador convidado.
Parcídio Summavielle, resistente antifascista, democrata, ex-presidente da Câmara de Fafe e indiscutível fafense excelentíssimo, é a figura-tema das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril em Fafe. A homenagem de amanhã coincide com o aniversário natalício do homenageado. Como já aqui expliquei, com pelo menos um ano de avanço, amanhã é que é, com toda a propriedade, o Dia do Pi.

P.S. - Mais informação, aqui e aqui.

Palavra do senhor

Foto Hernâni Von Doellinger
A senhora sentada à minha frente faz croché - que raro! Eu leio um livro. O resto do metro espreita o telemóvel, fala para o telemóvel, escreve no telemóvel, joga no telemóvel, tira selfies com o telemóvel, põe o telemóvel entre pernas, aconchegadíssimo às intimidades, em alarmante modo de vibração. O metro inteiro é um telemóvel amarelo de duas carruagens, dois refractários e razoáveis orgasmos. Como quem não quer a coisa, a senhora sentada ao lado da senhora sentada à minha frente que faz croché desvia um olho do telemóvel e procura-me a capa do livro. Chega lá. Abana a cabeça, sentenciosa, faz cara de caso, deita-me uns olhos, ambos, num misto de decepção e de censura. Percebo-a: não leio José Rodrigues dos Santos. Leio "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill, calhamaço como os do outro, mas calhamaço sem culpa de autor, calhamaço que dá gosto. Folheio-o com o respeito e o cuidado de quem folheia uma bíblia. E é. Vou naquela parte em que O'Neill me diz "A estouvaca": deitada atravessada / na estrada / a malhada / vai ser atropelada / foi. Palavra do senhor.

Escritor e tudo

Ele é um autor impaciente e impulsivo. Publicou o seu primeiro livro sem sequer o ter escrito, e a obra revelou-se o sucesso que se vê: vai na décima sétima edição e já ganhou quatro prémios literários - um, internacional. E continua a surpreender o mercado, à média de três novos livros por ano. Para além disso, é também pintor, performer, crítico de cinema, prefaciador, antiquário, amigo n.º 1 de Manuel António Pina, forcado amador, talhador de trasorelhos, apresentador de variedades e prepara-se para lançar o seu segundo disco de originais.

Kafka no metro

Entro no metro. Viagem curta, de Matosinhos Sul até à Senhora da Hora, apenas quinze minutos e mudança de linha para Vila do Conde. Sento-me num daqueles bancos frente com frente, éramos quatro, dois de cada lado e, se fosse futebol, a bola seria redonda. Ninguém conhecia ninguém. Os dois rapazes e a rapariga, os três mais para os trinta do que para os vinte, cabeças para baixo e graves, rapam dos bolsos os respectivos telemóveis como se se conhecessem de outras encarnações e estivessem combinados, e jogam, ela, e mensajam, eles, automaticamente, ignorantes uns dos outros, numa simbiose perfeita. Eu vou à mochila e tiro o livro. "Kafka à Beira-Mar", de Haruki Murakami. Pensei: é o que diz a minha mãe - sempre a destoar, eu.

O livro português

O que distingue um livro português de um livro estrangeiro, assim por alto, é que o livro português é geralmente escrito em brasileiro.

P.S. - Hoje é Dia do Livro Português. No Brasil é Dia do Cacau.

Biblioteca pública

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 25 de março de 2024

domingo, 24 de março de 2024

Os Calvários de Fafe

Seminário de Braga. Lembro-me de uma Páscoa e a memória até é fácil - foi em 1974 e no sábado do Domingo de Ramos havia Festival da Eurovisão em Brighton, Reino Unido. Era a grande noite, a verdadeira, tempos outros. Os nossos "superiores", como impunham que lhes chamássemos, deixaram-nos ir para a sala da televisão: muito compostos, bico calado, ouvimos as cantigas a preto e branco. Paulo de Carvalho cantou "E Depois do Adeus". Esteve bem, muito bem, Paulo de Carvalho nunca soube cantar mal. Para mim, Portugal ia ganhar. Sem espinhas. Preparei-me para o melhor.
Só que. Já disse: era seminário, Braga e Semana Santa, véspera à noite do Domingo de Ramos. Portanto: só que, na hora da votação, a parte mais emocionante, os do orfeão, à inapelável voz de comando, tocados como gado, desatámos a descer por umas escadas de que nem sabíamos e, num lampo, chegámos à rua. Ia passar a procissão. O Paulo de Carvalho que nos desculpasse, mas era a nossa vez de cantar. O estrado com degraus estava montado logo ao pé da porta, no cantinho do Largo de Santiago, defronte do Governo Civil. Cantámos o "Miserere", como mandava a tradição. E era digno de ser ouvido, minhas senhoras e meus senhores: nós cantávamos a cores.
Cantámos numa fervurinha mas como querubins, como querubins apressados, a procissão parou e passou, em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo amém, e toca a galgar a escadaria (que já não era secreta) com o coração aos saltos, quem é que ganhou, quem é que ganhou, mas afinal quem é que ganhou? Foi o Paulo de Carvalho? Foi Portugal? Evidentemente que foi Portugal. Ganhámos, de certeza que ganhámos...

(Ao contrário do que alguém possa ainda pensar, por causa da história das senhas radiofónicas do 25 de Abril, "E Depois do Adeus" é apenas uma notável balada de dor de corno, sem qualquer submensagem política. Muito bem cantada, isso sim, letra de José Niza e com uma orquestração - do maestro José Calvário, também autor da excelentíssima música - do melhor que alguma vez se fez ou virá a fazer no nosso país.)

Mas não. Não ganhámos. Portugal não ganhou e Paulo de Carvalho também não. Ganharam os Abba, com "Waterloo". A nossa canção, "E Depois do Adeus", desenrascou apenas três pontos e ficou em último lugar, empatada com a Alemanha, a Suíça e a Noruega. E vá lá, que a companhia podia ser pior...

Que se segue? Há quase cinquenta anos que ando com esta Páscoa no ouvido. E não por causa dos Abba nem pela bela canção do Paulo de Carvalho. É o "Miserere". O "Miserere" ensinado e dirigido pelo bom padre José Sousa Marques, se não erro no nome, chamado entre nós o Galinhola por causa dos seus meneios e ademanes. O "Miserere" que ainda sei de cor aos retalhos e com o qual, volta e meia, puxando pelo lamentável baixo-barítono que sobrevive dentro de mim, atazano o orelhame do pessoal cá de casa.
As saudades fizeram-me isto: lancei-me à procura do meu "Miserere" no YouTube e não o encontrei. Quem sou eu para desgostar do sublime "Miserere" de Allegri, que está em todo o lado como Deus Nosso Senhor e a CMTV, mas - deu-me para aqui -, de momento o "Miserere" bracarense, completo, integral, pungente, é que me convinha. E não sei dele.

E que mais? O maestro José Calvário, que morreu em 2009, com apenas 58 anos. Extraordinária figura, conhecido sobretudo da televisão, cheguei a vê-lo algumas vezes em Fafe, o que me enchia de orgulho e emoção. Eu era fã, sabia-o de cor. Sabia das suas gravações com a London Philharmonic Orchestra, com a London Symphony Orchestra, com a Orquestra Sinfónica do Estado Húngaro. Eu sabia do jazz, dos Psico, de Adriano Correia de Oliveira, de António Gedeão, de Carlos Mendes, de Fernando Tordo, de Tonicha, da sua pluralidade e excelência musical. Via-o a passar de carro, sem parar e evidentemente sem me reparar, mas para mim bastava. A família - "os Calvários", que creio que eram do Porto - tinha uma fábrica em Fafe, na Recta, actual Avenida de São Jorge, um pouco depois da Parefa, como quem vai para Armil sem cruzamentos rotundos e semáforos preguiçosos. Eu ligava aquela gente, não sei dizer porquê, ao nosso Jardim do Calvário, e por isso achava que eles, apesar de ricos, famosos, distantes e inacessíveis, também eram nossa gente, embora todas as noites fossem dormir a casa, pelo menos nunca se me constou o contrário nem lhes sei de filhos suplementares e fafenses. A fábrica chamava-se Coral, Malhas Coral, e mandou uma equipa ao primeiro torneio de futebol de salão de Fafe, em 1977, organizado pelo Grupo Nun'Álvares. E a equipa deu nas vistas vestindo camisola e calção numa cor nova e inusitada para o tempo, algo entre o vermelho, o laranja e o rosa, certamente coral como o próprio nome indica, espero não estar a dizer asneira, ou então sonhei isto tudo.

Domingo do Ramos

O Ramos tem um domingo por ano. É hoje.

Eles sabem o que fazem!

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 23 de março de 2024

O que é que eles dão?

- Para a semana eles dão chuva.
- E que se coma, nada?...

Weather report

- Isto é que tem estado!...
- Realmente...
- E então hoje!...
- Lá isso...
- O que é que eles dão para amanhã?
- Eu...
- Pois. Então até logo, vizinho.
- Vá pela sombra, vizinha.
É, o elevador aproxima muito as pessoas. O elevador e o boletim meteorológico.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Meteorologia.

Descalça vai

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 22 de março de 2024

Era fresca e doce...

No Verão da minha terra, no Verão antigo, umas abençoadas senhoras andavam pela caloraça das feiras e romarias vendendo copos de água de mina adoçada com açúcar amarelo e um remoto gosto a limão. Não era limonada, atenção, era exactamente o que eu digo: água fresca com duas ou três colheres de açúcar e talvez uma casca ou rodela de limão. E não havia gelo. Na vila, às quartas-feiras, dia de mercado semanal, pelos 16 de Maio ou pela Senhora de Antime, a "mina" era a bica da poça do Santo, do meu Santo Velho, que ficava ali à beira e era só comodidade. Em cima da cabeça, as despachadas senhoras, equilibristas que remédio, levavam uma rodilha e por cima da rodilha, consoante o uso dos sítios, uma bilha de barro ou um cântaro de lata revestido a cortiça, para conservar a frescura natural. Anunciavam "Fresca e doce!", a água, e desatavam a fugir, de socos na mão e pés descalços, mal se precatavam da presença, ainda que distante e distraída, do perigosíssimo fiscal da Câmara. E o povo, coitadinho, morria ali à sede. Ou então metia-se no vinho, que era o mais certo.
Fafe funcionava assim. Eu, que nunca provei pirolito, por falta de coragem para assaltar o Banco, que era apenas m e por isso se dizia com letra maiúscula entalado entre o Martins Relojoeiro e o Nelo da Electra, eu, que só sabia dos gelados nas mãos dos outros, bebi uma ou duas vezes um daqueles copinhos, evidentemente mais em conta e decerto prenda extraordinária já não sei de quem nem porquê. E quereis saber? Era realmente fresca e doce, a água, como dizia a publicidade popular, e, palavra de honra, soube-me pela vida!

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Água.

A gota de água

- Agora é que foi a gota de água - disse o brincalhão, pousando desajeitadamente o copo vazio do seu décimo terceiro uísque. Posto isto, vomitou com assinalável pertinácia em cima da restante clientela.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Era o tempo do jornalismo em cuecas

Imagem retirada dos Arquivos RTP
Uma vez eu fui a Roma comprar um Pinóquio para o meu filho, que era pequenino, coitadinho. E aproveitei para acompanhar a visita de Cavaco Silva ao Vaticano e a Itália, creio que assim nos entendemos. Isto foi em Outubro de 1987, Cavaco era primeiro-ministro de Portugal, mas eu não. Eu trabalhava no Primeiro de Janeiro e o jornal é que me mandou atrás do outro. Lembro-me muito bem do mês e até de um dia em especial, porque eu fazia anos, certos e determinados, e o padre António Rego, que ia pela Rádio Renascença, se não me engano, pôs a comitiva de jornalistas portugueses a cantar-me os "Parabéns!" ao jantar.
A imagem ali de cima é exactamente desse dia de festa, cantam as nossas almas, numa conferência de imprensa dada por Cavaco Silva nos jardins da Embaixada de Portugal junto da Santa Sé. No retrato só couberam pessoas importantes. O João Pacheco de Miranda, da RTP, televisão única, a fazer perguntas sem se rir, o nosso "primeiro" e o embaixador respectivo muito atentos, ou a fazerem de conta, e eu, não sei como é que fui ali parar, altaneiro e barbado, dominando a cena e fiscalizando as obras, até parece que faço parte da súcia. Reparem-me na airosidade, na categoria da minha pessoa, não é para me gabar, na classe da meiinha branca, no requinte do sapatinho dirópito. O casaco a estrear tinha cotoveleiras de camurça. E a gravata? A gravata evidentemente era azul e branca, como a cor única do meu coração, em delicado degradê. Gostava muito daquela gravata, acho que ainda a tenho, mas não faço ideia para quê. Eu não uso gravata, eu nem sequer uso colarinho ou casaco, eu há anos que não uso sapatos, valha-me Deus!...
Cavaco Silva foi a Roma e viu o Papa. Era João Paulo II, que agora dizem que é santo. O primeiro-ministro português levava-lhe o delicado e doloroso dossiê Timor-Leste. E eu levava umas palas de sol polaroid em cima dos óculos de ver. Umas palas de levantar ou baixar, consoante a sombra ou a luz, It is I, Leclerc, o que de repente descompôs um par de guardas suíços, que se partiram a rir, eu seja ceguinho.

Era uma das minhas primeiras saídas em serviço ao estrangeiro. E eu levava muito a sério a encomenda de enviado-especial. O meu chefe - o grande Costa Carvalho - exigia-me pelo menos uma página por dia, e uma página por dia, naquele tempo, se querem saber, era obra desenganada. Instalaram-me no Collonna Palace Hotel, na Piazza di Monte Citorio, e era do quarto com vista para a praça e pornografia na televisão que eu, ao fim do dia, antes do jantar, preparava e enviava o serviço. Por telefone. 
Eram duas ou três horas de alta tensão. Conferir apontamentos, seleccionar e hierarquizar assuntos, escrever tema principal e caixas, escolher títulos, pedir a ligação para o Porto, esperar, esperar, esperar, ditar para o gravador o material todo de uma ponta à outra. No Porto, o camarada da secretaria de redacção ouvia a cassete com travão, marcha-atrás e acelerador, como os pilotos de rali ou os pivôs de telejornal, batia os textos a todo o vapor e no final ligava-me de volta, para uma releitura que pudesse servir de emenda a eventuais lapsos de transmissão, que eram praticamente palavra sim, palavra não. E esperar, esperar, esperar. Eram muitos nervos, muita ansiedade, muito ruído e interferências na linha, muita chamada a ir abaixo, muita pomba assassinada, muito aperto na garganta, muito coração nas mãos.
Eu suava em bica, quero dizer, em espresso. Portanto trabalhava em cuecas. Isso mesmo, em cuecas. Um pobre jornalista em cuecas, era o que eu era, com uma toalha a cobrir a cadeira, outra enrolada no pescoço e um lenço tabaqueiro atado à volta da cabeça. Um homem de família, pai de filho, respeitado em dois ou três sítios de Fafe e pelos menos numa freguesia de Cabeceiras de Basto, um ex-seminarista de créditos firmados, um intrépido frequentador dos Comandos da Amadora, e ali naqueles preparos, a trabalhar em cuecas. Que triste figura! Que ridículo! Que vergonha! Em cuecas!
Para disfarçar, eu imaginava que era nadador-salvador...

Entretanto o Kiko cresceu e uma vez foi a Itália e trouxe-me dois Pinóquios. Eu nunca mais fui a Roma e, é claro, sinto-me em dívida...

Pinóquio mentia por prazer

Foto Hernâni Von Doellinger
"Pinocar ou pinoquiar?", perguntou o jovem mestrando em Carpintaria & Outras Artes Sexuais. "Depende", respondeu o velho professor de nariz adunco e face testicular.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Marioneta.

Caracol

Ca... ra... col... ... ... ...

Riminha

O caracol
leva a casa
a tiracol.

Sete mares mais um

Mar Asmo
Mar Telo
Mar Celo

Mar Mita
Mar Mota
Mar Sapo
Mar Fim

Mar Ibela e Seu Rola-Rola.

O peso da poesia

- Era dois poemas de trinta gramas, se faz favor!
- Os dois?
- Cada.
- Sessenta gramas de poesia, quer dizer...
- Mas em doses separadas.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Poesia e Dia Europeu da Criatividade Artística. De Caracol para baixo, foi o meu modesto contributo.

Traz uma árvore também

Era uma localidade um bocadinho estranha, naturalmente austera porém exuberantemente moderna e cosmopolita. Nas suas principais entradas, a autarquia colocara frondosas tabuletas que avisavam os forasteiros: "Se quiser sombra, traga a sua própria árvore".

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Árvore e Dia Internacional das Florestas.

quarta-feira, 20 de março de 2024

E depois diz-me

Foto Hernâni Von Doellinger

A felicidade acaba à meia-noite

Hoje, 20 de Março, é Dia Internacional da Felicidade. Eu sei que é uma chatice, mas são ordens da ONU.

O caminho da Felicidade

É fácil, facilíssimo. Sempre em frente até ao largo da igreja, vira à direita pela rua com árvores, passa pelo campo da bola e pela sede, torna à esquerda e logo na esquina, encostada ao café e depois do funileiro, há uma casa pequenina com porta vermelha e vasinhos floridos na janela: é aí que ela mora. Ela e os dois filhos. Cuidado com o cão!

Dia da Felicidade e assim sucessivamente

Hoje é Dia da Felicidade. E também da Clementina, da Adelaide, da Iracema, da Adosinda, da Felisberta, da Miquelina, da Leocádia, da Emerenciana, da Umbelina, da Hortênsia, da Perpétua e assim sucessivamente. Quando o sol nasce, é para todas...

Ao virar da esquina

A Felicidade está sempre ao virar da esquina. E a pensão é logo ao lado...

Alcançando a Glória

Uma recuperação verdadeiramente sensacional. Alcançou a Arminda, alcançou a Celeste, alcançou a Mariana, alcançou a Odete e até alcançou a Felicidade. Só lhe faltava alcançar a Glória.

terça-feira, 19 de março de 2024

Era de rir

Foto Tarrenego!

Éramos assim. No nosso pequeno quintal da casinha do Santo Velho, a minha mãe, o meu pai, a minha irmã Nanda, o meu irmão Nelo e eu, que sou o Nane. Falta o meu irmão Lando, porque começa por L e ainda não tinha nascido, mas estão a Mila e a Dulce, que não começam por N nem por L e eram como se fossem da família. Ser-se da minha família era fácil. Bastava andar por ali, bater à porta, que na verdade estava sempre aberta menos à noite. E só era preciso saber rir, gostar de rir, precisar de rir. Éramos pobres, mas com o meu pai ninguém ficava fora do retrato. Ele é que deixou de aparecer, derivado a razão de força maior.

P.S. - Sobre o meu pai, mais para ler, caso interesse, aqui, aqui, aquiaqui, aqui, aqui e aqui. Ou, mais fácil ainda, basta carregar na etiqueta "série O meu pai".

O Carpinteiro Albino e o Albino Carpinteiro

Havia o Carpinteiro Albino. E havia o Albino Carpinteiro. Carpinteiro Albino era de Elvas, corria em automóveis e ganhou o primeiro Rali de Portugal, em 1967. Albino Carpinteiro era nosso, de Fafe e do Fafe, artista de mão cheia, guardião bricoleiro do estádio e faz-tudo municipal.

P.S. - Hoje é Dia do Pai, de São José, do Carpinteiro e do Marceneiro. Há dias assim.

domingo, 17 de março de 2024

Ovnis à saída do café

Foto Hernâni Von Doellinger
Aqui ao lado mas junto ao mar, em Vila do Conde, existe o CIFA, isto é, o Centro de Investigação de Fenómenos Aeroespaciais, que toma conta dos avistamentos de ovnis. O CIFA faz "relatórios anuais estatístico de ocorrências de fenómenos aeroespaciais em Portugal" e acaba de informar, de acordo com o jornal O Minho, que 2003 foi um bom ano, com 33 avistamentos atestados, contra os apenas 31 de 2022 e os modestos 19 de 2021.
"Esta ano há um caso registado no distrito de Braga, mais concretamente na freguesia de Aborim, em Barcelos - escreve o jornal -, quando um homem que ia a sair de um café avistou "várias luzes no céu com arestas nas pontas, de cor verde, amarela, azul e vermelha". A situação aconteceu às 23:20 do dia 10 de maio de 2023.
O CIFA analisou o vídeo e as fotos enviados pelo barcelense e concluiu que se tratavam de "aeronaves teleguiadas em evoluções no espaço de curtas distâncias" com 100% de certeza. Mais concretamente, drones com luzes de múltiplas cores." Fim de citação.
Tomaram atenção ao "quando um homem que ia a sair do café"? Ora bem. Ir ao café ou ao tasco, alapar, conviver, e depois sair do café ou do tasco, no nosso Minho, neste caso em Barcelos, e à saída ver ovnis, que é ver ovni mas a dobrar, e luzinhas de várias cores, lamento mas tenho de dizer que não me parece uma coisa muito científica. Uma informação assim explicada, suspeito que não credibiliza por aí além o dito avistamento. Em Fafe, pelo menos no meu tempo, víamos ovnis todos os dias ao sair do café, quero dizer, todas as noites, e nunca apresentámos queixa. O único problema é que, como se sabe, os avistamentos de ovnis, com o passar dos anos, acabam por fazer mal ao fígado...

sábado, 16 de março de 2024

O das Caldas e a de Fafe

O Levantamento das Caldas, tentativa de golpe militar contra o Estado Novo caetanista, ocorreu no dia 16 de Março de 1974, faz hoje anos, e, apesar de falhado, serviu de rastilho para a Revolução de 25 de Abril. É também chamado Intentona das Caldas, Revolta das Caldas ou Golpe das Caldas - tudo nomes bem menos sugestivos e mais ajuizados. É. Deixem-se de malandrices! Levantamento e Caldas, as duas palavras juntas na mesma expressão, trazem logo à conversa fradinhos malacuecos...

Por outro lado, não me consta que as Caldas da Rainha tenham vergonha dos seus famosos caralhos, como alguns fafenses envernizados têm da nossa Justiça de Fafe - e já tiveram mais. Até o sítio da Câmara Municipal de Fafe pede desculpa pelo incómodo do nosso indesmentível ex-líbris, considerando-o "controverso", e se fossem à merda também não iam nada mal. Pelo contrário, as Caldas orgulham-se dos seus fradinhos arrebitados, erguem bem alto os seus avantajados membros cerâmicos, e disso fazem negócio, turismo, riqueza. Em Fafe, antes pelo contrário. Mas cada qual tem os levantamentos que merece...

P.S. - E, a propósito, isto: segundo as mais recentes informações, parece que o 25 de Abril foi um equívoco. Uma absoluta desnecessidade, cinquenta anos depois.

Provavelmente a melhor vitela assada do mundo

Foto Município de Fafe

Os domingos tinham esse pequeno problema, e quem for de Fafe e antigo sabe do que falo: tripas ou vitela assada? Era a verdadeira questão, o dilema do almoço dominical. Os fafenses, gente de bom comer e satisfatório beber, resolveram facilmente o assunto, há muito, muito tempo: isto é, em vez de tripas "ou" vitela assada, o almocinho de domingo passou a ser tripas "e" vitela assada. Nem Salomão, no seu ancestral e sábio critério, tomaria decisão mais acertada.
A vitelinha guiava-se em casa, com vagar e carinho, com as voltinhas todas, se possível em forno ou fogão de lenha, e as tripas, regra geral, iam-se buscar num tachinho à Esquiça ou à Pacata, consoante a ideia que cada um tinha acerca da sua própria posição social - o que agora até dá para rir, sabendo-se da história e vendo-se assim a coisa à distância...
Começava-se portanto pelas tripas, e a seguir vinha a vitela. O apetite era gerido ao milímetro, mais ou menos um bocadinho daquelas, mais ou menos um bocadinho desta - porque, como determina o princípio da impenetrabilidade da matéria, dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, e as vacas é que têm felizmente quatro estômagos. Ora bem: a malta nova, pouco dada à tripalhada, reservava-se para a chicha com batatinha de ouro e arroz seco e solto. Mas de quando em quando reservava-se mal. Como daquela vez em que o nosso Zé não tocou no feijão. Perguntaram-lhe se estava doente, se tinha fastio, se queria um caldinho branco, se queria meter o termómetro. Que não, que não, que não e que não, respondeu respectivamente, e explicou todo gaiteiro: - Estou a guardar-me para a vitela!
Naquele domingo não havia vitela. E as tripas já tinham saído da mesa...

Agora, muita atenção: onde escrevi "tripas" e "vitela assada", deve falar-se "tripasss" e "bitela assada". À moda de Fafe. A vitela assada à moda de Fafe, quando bem trabalhada, é provavelmente a melhor vitela assada do mundo. A confraria da dita não veio ajudar nada, antes pelo contrário, mas, diga-se já agora em abono da verdade, veste e desfila que é uma categoria.

Ora bem. Ontem, hoje e amanhã, como dizia a cantiga do José Cid, é Fim de Semana Gastronómico em Fafe, um dos diversos Fins de Semana Gastronómicos promovidos pelo Turismo Porto e Norte de Portugal, neste caso integralmente dedicado à nossa vitela assada. "A jóia da coroa gastronómica de Fafe" - informa a Câmara Municipal - poderá ser apreciada nos restaurantes A Cabana, A Desportiva, Adega Popular, Aldeia do Pontido, Casa de Pasto Reis, Desigual, Dom Egas, Feira Velha, Porto Seguro, Quinta das Vinhas e Vice Versa.
Foi também anunciado que estão disponíveis pacotes de oferta turística com alojamentos e experiências incluídas. Isto é, os visitantes têm direito a um desconto de dez por cento em alojamento de duas noites (sexta e sábado) nos seguintes empreendimentos: Aldeia do Pontido, Carvalho Village, Casa de Docim, Casa de Fora, Casa do Gandião, Casas do Ermo, Casa do Vale, Devagar e Devagarinho, Sossego da Lata, Flag Hotel Guimarães-Fafe, Hotel Fafense, Parque de Campismo da Barragem de Queimadela, Quinta do Minhoto e Quinta Lama de Cima.
Quem quiser, ainda vai a tempo, pelo menos em parte. Para quem não sabe ou não conhece, será, posso garantir, uma experiência inolvidável. Fafe e os fafenses, à disposição. Vinho verde, pão-de-ló e doces de gema, tudo do bom e do melhor. Fartura. A famosa vitela assada em forno de lenha, regra geral, os aromas inconfundíveis, nossos, invadindo agora a cidade como antigamente tomavam conta da vila. Digam-me depois se Fafe ainda cheira a sabão amarelo...

P.S. - Estão a ver, lá em cima, o retrato? Batatinhas douradas, vitelinha linda como os amores, tudo ajeitado, no limite, com uma mancheia de azeitonas e dois ou três gaipelos de salsa. Exactamente. Assim é que era dado!

sexta-feira, 15 de março de 2024

A rodela de laranja

Foto Município de Fafe

A propósito do Fim-de-Semana Gastronómico que por estes dias decorre em Fafe, dedicado à vitela assada à nossa moda. Ou melhor, a propósito e em defesa da vitela assada à moda de Fafe. Podem-lhe pôr rodela de laranja, podem. Podem pôr-lhe até rodela de ananás ou rodela de quivi ou fatia de abacate ou, se calhar, morangos com chantili, picles, frutas cristalizadas, farofa, ketchup ou mostarda de Dijon, claro que podem. Ponham! Mas melhor fariam se não pusessem.
Como diziam os antigos: não é dado...

O consumidor

Foi toda a vida um consumidor. Desde que nasceu. Consumiu a mãe e consumiu o pai, consumiu os avós, maternos e paternos, consumiu os irmãos e as irmãs, os tios e as tias, os sobrinhos e as sobrinhas, os primos e as primas, consumiu os filhos, consumiu os netos e os bisnetos, consumiu as meninas do lar até morrer. Era realmente a consumição da família, um verdadeiro consumidor de almas, como se falava em Fafe. Quer-se dizer, há feitios assim.

P.S. - Hoje é Dia Mundial dos Direitos do Consumidor.

O faquir

Homem que é homem, não dorme. Passa pelas brasas. E sem ais nem uis!

O capacete antes de deitar

Sempre gostei de me deitar no chão. Desde pequenino. O Verão em Fafe era um forno, e a nossa mãe punha-nos a dormir a sesta no chão da casa, não no chão estreme mas por cima de um cobertor fininho e fofo, e dormíamos como anjos de barriguinha ao léu. Porque o ar rasteiro é mais fresquinho, está provado cientificamente, e a nossa mãe sabia também disso, embora nunca tivesse ouvido falar de correntes de convecções, fluidos, átomos ou moléculas.
Habituei-me. Sempre que pude na vida, dormi a minha soneca no chão do campo, do monte e até da praia, se pela fresca da manhã. Casei e fui morar para a Foz, no Porto: a casa dos meus sogros tinha um quintal-jardim que era um mimo, e era ali que eu me estendia, no cimento do caminho ou na relva do coradoiro, em tardes e noites de suar em bica. Depois bebia uma ou duas garrafas de espadal bem fresquinho e já estava em condições de ir para a cama...
Agora, moro há mais de trinta anos em Matosinhos, com o mar a passar-me à porta e a enrolar na areia, mas custa-me muito a deitar, ainda por cima no chão, que me fica cada vez mais longe, e preciso de um guindaste para me levantar. Mas não resisto: de quando em quando, dá-me para a toléria - é a idade -, ponho o capacete e, em quatro ou cinco movimentos muito complicados e perigosos, às vezes doze, consigo deitar-me no chão da sala, com muitos ais! e muitos uis! pelo meio, os ossos rangendo, a cabeça a ourar e a televisão ligada só para que o som me faça companhia. Às tantas a minha mulher entra, assusta-se comigo ali esparramado no lamparquet com vinte anos de garantia e grita: - Ai, valha-me Deus, que ele morreu, coitadinho! Que é da motorizada, homem?...
E eu, de olhos fechados e mãos cruzadas sobre o peito, na maior compostura: - Isso querias tu, minha infingida! Chama mas é a polícia, que a culpa foi do outro...

Moral da história: esta chuva toda será do tempo?

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Sono.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Proibições que são convites

Foto Hernâni Von Doellinger

Embora já andassem de Mercedes e/ou BMW, aqui há uns anos os senhores empreiteiros viam-se à rasca para perceberem onde despejar o lixo que faziam nas demolições ou esburacamentos de início de obra. Não havia sítios de lei, largavam-no onde calhava, à noite, e fugiam. Atentas à insustentável situação e superpreocupadas com a defesa do ambiente, as autarquias portuguesas correram a criar uma rede de locais apropriados para o efeito nos montes à roda das vilas e cidades, de norte a sul do País. E Fafe não foi excepção, se bem me lembro. Em cada um desses locais jeitosos, os nossos preclaros autarcas mandaram colocar uma placa que avisava mais ou menos assim: "Proibido lançar entulho neste local - Coima até duzentos contos". E, pronto, os empreiteiros ficaram a saber que era ali mesmo que podiam deitar o lixo.

Agora em Matosinhos. Os meus amigos que batem umas cartas ali em baixo, naquela cantinho abrigado à beira-mar, têm uma preocupação naftalínica que eu compreendo. Arriscar bisca com cheiro a mijo deve ser uma merda. Por isso puseram um letreiro novo, melhoramento infelizmente sem inauguração pela senhora presidenta da Câmara, mas sinalética em material nobre, upgrade como manda a sapatilha, passando do cartão canelado para a esferovite, e com uma mensagem indubitavelmente mais assertiva e acutilante. E no entanto, como na história dos empreiteiros, "Atenção - Não urinar neste local - Obrigado", se formos a ver, só quer dizer, pelo contrário, WC...

Sonhos molhados, uns e outros

Ultimamente dá-me para sonhar com pessoas que já morreram. Pessoas de quem gosto - familiares e amigos, sobretudo amigos, povo do meu antigamente, gente de Fafe. Sou um simples, acho que são saudades. Mas dizem-me que não, que o assunto é muito mais complicado, especialistas em correntes de ar e afins garantem-me que os sonhos querem dizer coisas, significam, e que não enganam. Os sonhos são como o algodão, hidrófilos. Como o algodão do Sonasol. Nos sonhos está lá tudo, e tudo acaba por bater certo. Limpinho.
Sonhar com pessoas amigas que já morreram, falar com elas no sonho, explicam-me que é o melhor que me podia acontecer. É o pré-aviso de que está aí a rebentar-me nas mãos uma fartura de boas notícias, um mar de felicidade e saúde como o aço para mim e para os meus. O que é preciso é estar atento aos recados que os defuntos da corda me querem segredar. Isto é a regra geral, científica, embora possa parecer o horóscopo.
Não sei se esta tão conveniente interpretação dos sonhos com mortos também vale para Portugal e para vivos chamados Hernâni Von Doellinger naturais de Fafe e residentes em Matosinhos-sur-Mer. Pela miséria que me tem saído na rifa nos últimos tempos, suspeito que não, mas cá fico à espera de melhores dias.
Tenho alguma pressa, confesso, porque se uma coisa sei de certeza é que os sonhos padecem de prazo de validade. Um gajo deita-se uma noite moço e convencido de que os sonhos molhados até são um acontecimento, vá lá, engraçaaaaado..., e acorda de manhã ancião e alagado em mijo derivado à incontinência urinária. A vida é tão breve, não foi?
Entretanto, gostaria de aproveitar a oportunidade para comunicar aos meus sonhos que, uma vez que desdenho a Raspadinha, o que me convinha mesmo era o Euromilhões. O jackpot do jackpot, se fazem favor. Agora vou dormir e passo à escuta.

Por falar nisso: sonhar com algodão dizem que é muito bom para a saúde e que traz uma vida cheia de dinheiro e de felicidade. Bem empregue. É preciso ser-se mesmo muito desgraçado para sonhar com algodão. Se ainda fosse com merda...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Incontinência Urinária.

A apoteose dos campeões de Limoges

Foto enviada por José Freitas

José Freitas teve a amabilidade de enviar-me esta extraordinária "lembrança de David", assim lhe chamou, provavelmente na sequência das minhas mais recentes publicações sobre guarda-redes, aqui no Fafismos e no meu blogue generalista, Tarrenego!, onde faço questão de enfatizar a personalidade e os ensinamentos do saudoso David Alves. O David, como já contei, fez a sua formação futebolística nos juniores do FC Porto, pelo menos entre 1964 e 1966, acamaradando com craques da categoria de Pavão, Lázaro, Rendeiro, Sérgio Vilarinho, Arlindo, Ernesto, Belo, Alberto, Alípio, se não estou em erro, e Sousa, com quem dividia a baliza, entre outros. Nesta histórica fotografia, de que desconheço o autor e as circunstâncias, mas que agradeço penhoradamente ao José Freitas, o nosso David é o primeiro à esquerda, obviamente de pé.

Até aqui, já nós sabíamos. O texto acima contei-o há dias, sob o título "Lembrando David Alves". Mas há mais. Mais a dizer sobre esta icónica fotografia, que eterniza a equipa de juniores do FC Porto que venceu o prestigiado Torneiro Internacional de Limoges, França, em Maio de 1966, e que foi oferecida pelo próprio David, com dedicatória, "ao devotado portista e amigo Calvelos", isto é, ao nosso Zeca Calvelos, que é nada mais nada menos que o José Freitas que agora, quase 58 anos depois, teve a feliz ideia de no-la enviar. Ali estão, creio não haver engano, da esquerda para a direita, de pé: David, Orlando, Alberto, Bastos, Almeida, Lourenço e Sousa. E em primeiro plano, no mesmo sentido, de joelhos: Luís Pereira, Ricardo, Zé Carlos, Miranda e Lázaro. O treinador seria certamente, por aquela altura, o mítico Artur Baeta.
O FC Porto sagrou-se campeão da quinta edição do famoso torneio francês após vencer, na final, o FC Barcelona. Foi a primeira grande conquista internacional do clube no futebol de formação, e a cidade recebeu os seus rapazes como heróis. Em autêntica apoteose. Como que adivinhando o que haveria de ser o futuro normal, a Baixa encheu-se de uma multidão de adeptos portistas em delírio.
"No dia do regresso a casa, o triunfo valeu uma grande recepção na Estação de São Bento, um cortejo na Avenida dos Aliados e uma cerimónia na antiga sede do clube, onde hoje se localiza o Axis Porto Club Hotel. Tamanha celebração sublinhou ainda mais a importância da conquista dos jovens futebolistas, a quem a organização da prova complicou bastante a vida", faz notar, actualmente, a informação oficial do FC Porto. A taça arrecadada, que por acaso é um jarro certamente da mais fina porcelana, ou não fosse de Limoges o torneio, é bem bonita e pode ser visitada no museu.

(Publicado originalmente, ontem, no meu blogue Tarrenego!)

quarta-feira, 13 de março de 2024

Artur Jorge, o circunspecto

Foto Lusa

Antigamente não havia Liga Revelação nem equipas B, tínhamos, era, às quartas-feiras à tarde, o campeonato de reservas. Nas reservas jogavam os mais fraquinhos da equipa principal, que raramente entravam em campo ao domingo, duvidosas aquisições à experiência, ex-lesionados em fase final de recuperação e jovens promessas recrutadas aos juniores para fazerem número. Não existia treinador das reservas. A equipa era, por assim dizer, orientada pelo treinador do primeiro time, que geralmente delegava num dos seus adjuntos. Lembro-me vagamente de jogos de reservas em Fafe, ainda no tempo do Campo da Granja, mas sobretudo do FC Porto, quase duas décadas mais tarde, no campo de treinos n.º 1 do Estádio das Antas, entalado entre as costas da "maratona" e a zona de pavilhões e piscina, onde passei tardadas a ensinar portismo ao meu filho recém-nascido. Muitos dos grandes craques azuis e brancos, futuras estrelas mundiais, vi-os ali em início de carreira, ou, em todo o caso, antes da afirmação definitiva, medindo forças desiguais com as poderosíssimas equipas do Senhora da Hora, do Candal, do Infesta ou, vá lá, do Salgueiros, do Leixões ou do Boavista.
Uma vez, Artur Jorge era treinador do FC Porto e foi para o banco num desses jogos de reservas. A certa altura do encontro, resolveu fazer uma substituição e deu ordens a um jogador para aquecer. O jogador, e nem lhe recordo o nome, tirou o blusão para vestir a camisola, colocou as caneleiras com adesivo e tudo, puxou as meias para os joelhos, calçou-se e estava a começar a atar os cordões das chuteiras quando o treinador olhou para trás, estendeu o dedo apontando dali para fora e mandou-o tomar banho, isto é, recolher aos balneários, assim a frio. Alteração táctica na substituição? Nada disso. Apenas castigo. Artur Jorge, que não raras vezes fazia substituições logo nos primeiros minutos de jogo, se pressentia alguém em dia não ou a dormir na forma, queria os seus homens sempre prontos para o que desse e viesse. Preparados e alerta, permanentemente disponíveis para o imediatamente. Mesmo os que ficavam no banco, que era local de trabalho. Isso. O banco de suplentes, com Artur Jorge, não era beira de piscina.


Artur Jorge era homem de poucas falas. Distante, dizia-se. Exigente, duro, mantinha realmente distância em relação aos seus jogadores, que fazia questão de só "conhecer" no emprego, isto é, no balneário e no campo. De resto, nada de convívio, nada de confianças. Cá fora, na vida real, até os cumprimentos só se fossem por telepatia. Era assim nas Antas, onde os vi chegar e sair, treinador e jogadores, tantas e tantas vezes, passando um pelos outros como se nem os visse. Tinha sido assim na sua época de Vitória de Guimarães, como adjunto ou treinador de campo de José Maria Pedroto, por volta de 1980, se não estou em erro. O Vitória vinha regulamente treinar a Fafe, às vezes, na preparação de jogos nocturnos, vinha ao final do dia, daqueles dias curtos e agrestes do antigo Inverno minhoto, acendia-se a iluminação que havia, fraquinha mas de boa vontade, e o Estádio ficava à média-luz, como se fosse casa de fado. Eu por acaso até gostava. Artur Jorge no meio do pelado, voz potente e rara, explicando a jogada, corrigindo posições, dando nas orelhas aos jogadores enregelados, e mestre Pedroto seguindo o treino da bancada, de pé, bem agasalhado, à civil, contando piadas finas para a corte babada à sua volta, palavra de honra. O deus Pedroto. Chamavam-lhe então manager. E eu achava que deviam ir chamar manager a outro...

(Publicado originalmente, ontem, no meu blogue Tarrenego!)

Em torno da mobilidade


Maria Beatriz Rocha-Trindade vem a Fafe apresentar o seu mais recente livro, "Em Torno da Mobilidade - Provérbios, Expressões Idiomáticas e Frases Consagradas". É já amanhã, quinta-feira, dia 14 de Março, pelas 18 horas, no Auditório do Arquivo Municipal de Fafe. E a entrada é livre.
Socióloga, professora catedrática na Universidade Aberta, onde fundou, em 1994, o Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, Maria Beatriz Rocha-Trindade é considerada a introdutora em Portugal do ensino da Sociologia das Migrações.

terça-feira, 12 de março de 2024

Os livros estavam em boas mãos


A mania dos livros apanhei-a em Fafe, mal aprendi a ler, na biblioteca que na altura se chamava da Gulbenkian e lembro-me muito bem da carrinha cinzenta em chapa canelada, a biblioteca itinerante, que frequentei uma ou duas vezes, à beira do Manel do Campo, mas o meu sítio já era edifício, creio que um primeiro-andar entre a loja do Damião Monteiro e a esquina que dava para o beco da Polícia e em cima ou por baixo da Legião Portuguesa, o que certamente justificaria que fosse ali mesmo em frente a meta de partida e de chegada da corrida de jericos dos 16 de Maio. Comecei pelas figuras, evidentemente. Depois procurei-me nos livros. E ia lá quase todos os dias. Em miúdo, nas primeiras letras, parece-me que sob a orientação rigorosa mas gentil do Senhor Alves, pai, espero não estar a dizer uma asneira muito grande, e depois já em moço, no meu regresso a casa pós-25 de Abril e pós-seminário, beneficiando da cumplicidade generosa e vanguardista do Professor Alberto Alves, que me abriu os olhos para um mundo inteiro que eu não sabia. Foi a minha sorte. Os livros, em Fafe, estavam em boas mãos.

P.S. - Hoje é Dia do Bibliotecário. No Brasil. Em Portugal parece que não há...

segunda-feira, 11 de março de 2024

As pancadas de Jean-Baptiste Poquelin

O francês Jean-Baptiste Poquelin inventou as famosas pancadas de Jean-Baptiste Poquelin, as quais, secas e consecutivas, batidas no piso do palco, anunciavam ao público o início de um espectáculo teatral. Alguém alvitrou, no entanto, que chamar pancadas de Jean-Baptiste Poquelin às pancadas de Jean-Baptiste Poquelin não tinha jeito nenhum, até soava mal ao ouvido, e que chamar-lhes, por exemplo, pancadas de Molière seria muito mais engraçado. Tinha razão. As pancadas mudaram então o nome para Molière e Jean-Baptiste Poquelin também. Assim se passaram as coisas.

P.S. - A 11 de Março de 1957, no quarto dia de emissões regulares, a RTP inaugurou a série Tele-Teatro, com a transmissão do "Monólogo do Vaqueiro", de Gil Vicente. Nas salas, e nos tempos que correm, as pancadas de Molière foram entretanto substituídas por apitos ou campainhas e por uma voz de altifalante que manda desligar os telemóveis.

No que respeita à canalização

Hoje é Dia Mundial da Canalização ou World Plumbing Day, como se diz na versão original sem legendas. O Dia Mundial da Canalização é um dia muito importante sobretudo derivado ao canalizador propriamente dito. No que lhe diz respeito, o canalizador é um indivíduo bastante importante para as donas de casa em geral e nomeadamente para o segmento pornográfico da indústria cinematográfica. Fafe nunca teve grande tradição no palpitante nicho dos filmes pornográficos, pelo menos antes da invenção dos telemóveis com vídeo e das redes sociais. No meu tempo, ia-se a Guimarães, ao Jordão. E era para adultos. Pervertidos, mas maiores de idade. E era isto.

Regos do cu, havia necessidade?

A gente chama a casa um técnico da tv cabo, um electricista, um picheleiro, um trolha, e o que é que nos aparece? Um homem que se aninha, que se estica, que se dobra, que se deita e que nos mostra o rego do cu. Insistentemente o rego do cu. Indecentemente o rego do cu. Havia necessidade? Porque é que as respectivas entidades patronais não lhes dão fardas recatadas, por medida, com calças de cinta alta e camisas de fralda comprida? Ou então mandem-me raparigas do sexo feminino, valha-me Deus!...

domingo, 10 de março de 2024

Salão António-Pedro Vasconcelos

Foto FafeTV

Era uma vez, há doze anos, manifestei a minha mais simplória estranheza derivada ao facto de Fafe, a minha terra, ter perfilhado o cineasta portuense Manoel de Oliveira e até lhe ter dado de prenda uma sala de cinema, isto é, ter dado o nome de Manoel de Oliveira à Sala Manoel de Oliveira do Teatro-Cinema de Fafe. Não percebi de onde é que se desencravou a extraordinária ideia, a eventual razão da coisa, que relação haveria ali, e até escrevi na altura: "ainda me hei-de rir quando (e se) conseguir perceber porquê".
Ainda não percebi. Estou há doze anos sem me rir, e tanta seriedade já me faz diferença.
O cineasta António-Pedro Vasconcelos, aliás APV, ali em Cima da Arcada na melhor companhia do mundo, com o Senhor Francisco Oliveira, nasceu em Leiria e viveu geralmente em Lisboa, mas vinha amiúde e em miúdo a Fafe, "onde tinha e tem família", segundo leio e ouço na FafeTV. Em 2015, homenageado na quinta edição do Fafe Film Fest, e a fotografia há-de ser certamente dessa ocasião, APV, o cineasta que queria que as pessoas vissem cinema, fez questão de dizer, coisa linda: "Nasci, acidentalmente, em Leiria, mas considero-me um homem do Norte e, em particular, de Fafe, terra onde vivi parte da minha infância".
Perante tamanho confessamento de fafismo, que eu, verdade seja dita, por acaso até desconhecia, a benemerente Câmara de Fafe, se deu ao outro uma sala, ao outro que não nos pertence, que não nos é nada, a este, ao António-Pedro, que se reclamava nosso, de borla, e por isso é efectivamente nosso, com todo o direito, tem de dar pelo menos um salão. Isso, um salão, nem que seja ao ar livre. Até estou a ver, com luzinhas e estrelinhas a acender e a apagar, no meio do Largo, música de John Williams, passadeira vermelha e holofotes à Hollywood apontando ao céu: "Salão António-Pedro Vasconcelos"...
Ou então que mandem o APV para a bicha, como fizeram com o escritor também nosso João Ubaldo Ribeiro.

P.S. - A sala de cinema do Teatro-Cinema de Fafe devia chamar-se, por exemplo, Sala Dona Laura Summavielle. Mas para saber disso é preciso ser-se de Fafe desde pequenino...

Espelho meu

Ele era careca, completamente careca. Era careca como um ovo. Careca e vaidoso. Careca e sempre na moda. Aliás, penteava-se de risca ao meio.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Peruca.

sábado, 9 de março de 2024

Trazei-me cá o martelo, caralho!

Pardelhas, Fafe. Festa de São Pedro. A Internet ainda estava no cu dos americanos, parece impossível mas não havia Facebook nem Twitter e muito menos X, o telemóvel chamava-se telefone, trabalhava a manivela e só se deslocava da mesinha de cabeceira para a cama, se o fio deixasse, e o e-mail chamava-se telegrama. A comunicação era boca a boca, como a respiração, as conversas seguiam de bicicleta e as mais prementes voavam de motorizada, as redes sociais iam num pé e vinham noutro. Mandavam-se recados, levavam-se "repostas" - assim se dizia na minha terra, e eu gostava. Era ainda a idade das trevas, pelo menos até ao nascer do sol, geralmente por volta das seis da manhã naquele altinho fafense e naquela parte do ano.
Mas havia altifalantes, e urgências são urgências. A meio do "Carrapito da Dona Aurora", que estava a correr tão bem, alguém corta o pio aos do Conjunto António Mafra, sopra asmaticamente no velho microfone Philips, "um, dois, um, dois, experiência", e, desassossegando a aldeia inteira, grita na maior das aflições:
- Atenção, muita atenção! Ó Silva, trazei-me cá o martelo, caralho!...

P.S. - Hoje é Dia Internacional do DJ.

O último pedido

Vinham o padre, o presidente da câmara, o chefe da polícia, o sargento da GNR, o Emplastro, o comandante dos bombeiros, a fanfarra dos escuteiros, uma gaiola com pombas brancas, o André Ventura e o director da prisão. Parecia a procissão da Senhora de Antime parando em frente à Câmara, meu rico menino. O carcereiro, que vinha também, desatarraxou a porta da cela e o director da prisão, pausado e solene, com voz de locutor de rádio, informou o condenado: - Tens direito a um último pedido. O condenado pensou um bocadinho e disse: - Pode ser o "Sete e Pico", do Conjunto António Mafra?...

sexta-feira, 8 de março de 2024

Enquanto o pau vai e vem, descansa o lombo

Não sei se sabem, a comida oficial da política em Portugal (in rima veritas) é o lombo de porco assado, que por acaso é quase sempre apenas estufado, e uma merda. Canja, lombo e musse de chocolate. Assim. Se calhar até em Fafe, terra da melhor vitela assada do mundo. Quem já passou por campanhas eleitorais e comeu todos os dias lombo, ao almoço e ao jantar, sabe muito bem do que é que eu estou a falar (mais uma vez, e peço desculpa, mas a verdade é que sou de verso fácil, pareço o Montenegro, in rima veritas). Depois, quando alcançam o poleiro ansiado e o povo é que paga, os políticos esquecem-se do porco, tão em conta, tão prato do dia, e servem-se entre eles peixinho da alta à lá qualquer coisa, nanja sardinha, faneca ou carapau de pé-descalço.
Olhem por exemplo o Professor Marcelo. Também já comi lombo de porco com ele, diga-se em abono da verdade, mas logo que pulou para Presidente a coisa passou a fiar mais fino. Só outra vez por exemplo: no almoço cerimonial da tomada de posse, foi creme de espargos, robalo a vapor e gelado; e no almoço comemorativo dos 40 anos da Constituição, em 2016, a ementa versava creme de couve-flor, tranches de garoupa e pudim de Estremoz. Também um desconsolo, realmente, mas de alto gabarito.

A mulher, o bronco e as piriscas

Foto Hernâni Von Doellinger
Seria um casal patusco, se não fosse trágico. Desengonçados ambos, cómicos no vestir, feiinhos graças a Deus, testo e panela emparelhados de encomenda. Cirandam pelas ruas de Matosinhos todos os dias, de manhãzinha à noite, de braço dado, num andar de procissão e olhos caídos, passando o chão a pente fino à cata de piriscas reutilizáveis. Mas podia ser em Fafe. Ele, posto que zarolho, tem visão de longo alcance ou então algum radar que eu não sei. Vê a beata e faz um gesto seco com a cabeça. Ela, em obediência canina, dobra-se imeditatamente, apanha a prisca referenciada, entrega-lha e corre a enfiar-lhe novamente o braço, se ele deixar, até à próxima. Ele fuma e ela vai feliz. Os dois são um filme mudo. Isso, uma fita das antigas, num preto-e-branco fatela. Digo, seria um casal patusco, se não fosse trágico: quando lhe apetece, o filhodaputa bate na mulher.

Era assim. Mas há uns meses que o vejo solitário pelas esquinas, desamparado, perdido, praguejante. A franzina senhora desapareceu de cena. De tão sumária e submissa que me parecia, temo, sinceramente temo, que lhe tenha acontecido o pior: que tenha resolvido morrer devagarinho, sozinha e longe, só para não incomodar. O bronco continua por aí, agora desaparelhado e sempre bandalho, sem escrava nem saco de pancada pelo braço, enfim obrigado a vergar a mola se quer matar o vício. O Governo criminalizou as piriscas, a ciência inventou os cigarros electrónicos e a pandemia desbastou cafés, tascos e restaurantes, no chão da porta dos quais ele costumava abastecer-se e rir-se das imbecilidades do Governo e da ciência. Risinhos à parte, que o gajo é tolo, a vida corre-lhe de mal a pior. E é o que eu lhe estimo.

O filhodaputa continua, portanto, às piriscas, no outro dia sem mais nem menos malcriou com a minha mulher, que não lhe liga mas tem medo dele, mais cedo ou mais tarde vou ter de lhe foder o focinho, ao porco, quero dizer, e já não tenho idade para isso. O indivíduo continua às piriscas, que fuma acto contínuo, mas, actualizado com os tempos do apocalipse, às vezes anda de máscara. A máscara padece de evidentes sinais de que foi sacada ao lixo. Mas de máscara, o burgesso. É outra limpeza, outra segurança. E podia ser em Fafe.

O lugar da mulher

Lá vão ligeiros, marido e mulher conversando pela rua, ele à frente e ela um passo atrás, coisa de antigos. Têm uma filha. Casou. Lá vai ela jovem e ligeira conversando pela rua com o marido a estrear, ela atrás, o homem um passo adiante, porque o respeito é muito bonito. Na minha rua, meus vizinhos, palavra de honra, em pleno século XXI.

Foi comprar cigarros e não voltou

Era uma esposa exemplar, uma esposa à moda antiga. Em apenas duas palavras imediatamente seguidas de ponto de admiração: uma esposa! Ou em cinco palavras imediatamente seguidas de três pontos de admiração: uma mulher como deve ser!!! Todos os dias de manhã ela ia comprar tabaco para o marido. Um dia ela foi e não voltou.

As mulheres e eu

Raparigas e mulheres que passam por mim todos os dias, ou quase todos os dias, nas minhas caminhadas matinais. Raparigas bonitas, mulheres interessantes, todas amáveis, que me cumprimentam desembaraçadamente com um "olá!", com um "bom-dia!", com um jovial aceno de mão, com um enorme sorriso, personalizado. E alegram-me a vida. Palavra de honra, fazem-me feliz. Raparigas e mulheres de que nem lhes sei os nomes nem de onde são e param a bicicleta ou a corrida para me explicarem, sem obrigação, que estiveram meio ano a trabalhar na América, que os filhos pequenos mudaram de colégio, que tiveram um pequeno problema de saúde, que agora costumam vir mais tarde ou que agora costumam vir mais cedo, e que por isso não nos temos visto e é pena.
Mulheres e raparigas que, se por acaso me apanham a caminhar com a minha mulher, de mão dada, deitam de antecedência os olhos ao chão, zapam por nós como se não nos vissem, como se não me conhecessem de lado nenhum, como se eu fosse ninguém.
Quer-se dizer: o que é que elas pensam? O que é que elas pensavam? De que é que estavam à espera? Eu sou apenas o velho simpático, porra!

Mulheres

Hoje é Dia da Mulher e é porreiro. A minha vai levar-me a comer fora, para eu não ter de cozinhar. Hoje. Amanhã torno ao fogão. E é a vida.

O sexo forte

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 7 de março de 2024

O Neves foi ver a neve

O Neves pegou na família e foi ver a neve. Não viu. A estrada estava cortada. Por causa da neve.

Não mexam na nossa vitela assada!


Sobre a arte de estragar comida. Comecemos pela lampreia, para terminarmos na vitela assada à moda de Fafe. A lampreia é, para mim, o supra-sumo da gastronomia alto-minhota. Uma gastronomia apurada, robusta, variada, generosa, com personalidade, como eu gosto e como é, no geral, toda a honesta cozinha tradicional portuguesa. Há o arroz de lampreia, há a lampreia à bordalesa. E até admito mais duas ou três bem intencionadas variantes (como a lampreia fumada, a lampreia recheada ou a lampreia assada), mas que, não desmerecendo, já não me são a mesma coisa. Eu fico-me pela arrozada a fugir do prato a todo o vapor e pela bordalesa intensa e substancial - embora, como a maioria dos portugueses, já só coma lampreia de memória.
No Alto Minho, a lampreia é justamente considerada "um prato de excelência" e de tradição. Sim, de tradição. "Para confeccionar um produto de qualidade com paixão e arte, nada melhor que as mãos de afamadas cozinheiras que receberam os testemunhos e segredos de gerações passadas, com raízes na ancestral tradição culinária do Vale do Minho", lia-se num opúsculo editado aqui há uns anos pela Adriminho para chamar visitantes e promover o consumo do apreciado ciclóstomo nos melhores restaurantes dos concelhos de Caminha, Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira.
Não percebi com que segunda intenção, a Adriminho resolveu, naquela ocasião, amaricar a apresentação da sua lampreia, bem à moda de Lisboashire ou Cascais County, colocando na capa do dito prospecto a fotografia de um empratamento aguado e triste, obra certamente de um daqueles famosos jovens chefs da televisão que não cozinham nada mas têm muito jeito para as artes plásticas. Resultou assim uma coisa de snack-bar cantineiro, algures entre Nova Iorque e Bogotá, espécie de nouvelle cuisine pretensiosa e escusada que envergonha a velha lampreia e a tradição gastronómica alto-minhota.
Vede bem o retrato que vos apresento: então aquilo ali em cima agora é que é a lampreia do rio Minho? Que mal é que tinha a outra, a verdadeira?

Derivado a estas e a outras é que eu às vezes temo pelo futuro da nossa vitela assada - a vitela assada à moda de Fafe. A existência da confraria respectiva não me sossega e por acaso até me preocupa. Isto é, não sei se a nossa vitela assada está em boas mãos. O circo chegou à cozinha. Lembro-me das Feiras Francas de 2013 e de uma programação toda modernaça que até meteu workshopping, showcasing e showcooking, e esta parte afligiu-me desde logo. Anunciava-se "a tradição e a inovação de mãos dadas", prometia-se a "elaboração de pratos tradicionais recriando com inovação", e eu, à rasca, só pedia aos Céus: - Com a nossa vitela, não! Senhor, fazei com que eles deixem estar tudo como está, que está tão bem, graças a Deus! São Lourenço, padroeiro dos cozinheiros, segundo uns, rogai por nós! São Benedito, padroeiro dos cozinheiros, segundo outros, rogai por nós! Minha rica Senhora de Antime, livrai-nos dos estragadores e salvai a nossa vitela assada, amém!
É. Eu sou muito religioso, embora amiúde não pareça, e levo a comida muito a sério, mas isso já se sabe. A vitela assada à moda de Fafe até poderá ter os dias contados, porque os comedores de rúcula e outros tofus ainda nos vão proibir o consumo de carne, mas, enquanto não é crime, eu faço questão que a deixem em paz.
E por isso digo e redigo: não mexam na nossa vitela assada! A vitela assada à moda de Fafe é o que é. É à moda mas não há modas. É, sem tirar nem pôr. Não tem variações, não admite inovações, dispensa recriações ou até interpretações. É vitela assada à moda de Fafe. Assim.

Agora que estamos entendidos, tomai então nota aí na agenda, com tempo. De 15 a 17 de Março (sexta, sábado e domingo), vinde e Fafe e aproveitai mais um dos Fins de Semana Gastronómicos promovidos pelo Turismo Porto e Norte de Portugal, neste caso um fim de semana integralmente dedicado à nossa vitela assada. "A jóia da coroa gastronómica de Fafe" - informa a Câmara Municipal - poderá ser apreciada nos restaurantes A Cabana, A Desportiva, Adega Popular, Aldeia do Pontido, Casa de Pasto Reis, Desigual, Dom Egas, Feira Velha, Porto Seguro, Quinta das Vinhas e Vice Versa.
Foi também anunciado que estão disponíveis pacotes de oferta turística com alojamentos e experiências incluídas. Isto é, os visitantes têm direito a um desconto de dez por cento em alojamento de duas noites (sexta e sábado) nos seguintes empreendimentos: Aldeia do Pontido, Carvalho Village, Casa de Docim, Casa de Fora, Casa do Gandião, Casas do Ermo, Casa do Vale, Devagar e Devagarinho, Sossego da Lata, Flag Hotel Guimarães-Fafe, Hotel Fafense, Parque de Campismo da Barragem de Queimadela, Quinta do Minhoto e Quinta Lama de Cima.

Crocodilos no Jardim do Calvário

Foto Hernâni Von Doellinger O Jardim do Calvário, em Fafe, recebe a partir de amanhã um exposição de dinossauros . E isso é porreiro. Quinze...