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quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

O Amigo Bastos

Foto Tarrenego!

Descíamos no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo. Era aquela caloraça das ilhas, aquele esplêndido exagero de luz, o ar quase sólido que sufoca a respiração dos menos habituados, o bom odor de salsugem, que peço emprestado ao mestre. Eu de barrete branco enfiado na cabeça e lenço tabaqueiro atado ao pescoço, as barbas suando em bica, ele no seu fato impecável, o laço "de fazer" milimetricamente composto, dizia-me "Oiça lá, você parece o Hemingway!...", e soltava uma enorme gargalhada, exabundante, para ser ouvida pelos passantes e sobretudo pelas passantes, porque, estivesse onde estivesse, sempre fez questão de que se soubesse, sobretudo elas, que por ali andava o famoso Baptista-Bastos.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, flatulando améns, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia repetições: "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, dizia, eu e o mestre, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira, invadida por poderosas pick-ups de matrícula americana e nas narinas o aroma intenso, miscigenado, a especiarias e a mundos libertados pelas portas provocantemente escancaradas do loja antiga e encantatória.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: afinal, AB.) E creio que percebi bem.

- Mas oiça lá: "à sua beira", foi o que disse? Que expressão tão bonita! "À sua beira"...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical!

Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e simpatizantes, de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam mutuamente por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.

Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora na terceira página, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias! Todos os dias!...
E eu não esqueço, Amigo Bastos.

P.S. - As primeiras forças militares norte-americanas desembarcaram no porto de Angra do Heroísmo no dia 9 de Janeiro de 1944. Em plena II Guerra Mundial, 532 técnicos envolveram-se nos trabalhos de terraplenagem e foram os responsáveis pela actual configuração do aeroporto das Lajes, com cinco pistas, a mais extensa das quais com quatro quilómetros. Não curiosamente, o nosso Baptista-Bastos foi prefaciador de Hemingway em Portugal. E a loja antiga e encantatória, em Angra, chamava-se, se não estou em erro, Basílio Simões & Irmãos.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O Amigo Bastos

Foto Tarrenego!
Descíamos no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo. Era aquela caloraça das ilhas, aquele esplêndido exagero de luz, o ar quase sólido que sufoca a respiração dos menos habituados, o bom odor de salsugem, que peço emprestado ao mestre. Eu de barrete branco enfiado na cabeça e lenço tabaqueiro atado ao pescoço, as barbas suando em bica, ele no seu fato impecável, o laço "de fazer" milimetricamente composto, dizia-me "Oiça lá, você parece o Hemingway!...", e soltava uma enorme gargalhada, exabundante, para ser ouvida pelos passantes e sobretudo pelas passantes, porque, estivesse onde estivesse, sempre fez questão de que se soubesse, sobretudo elas, que por ali andava o famoso Baptista-Bastos.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, flatulando améns, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia: "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, dizia, eu e o mestre, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira, invadida por poderosas pick-ups de matrícula americana.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: afinal, AB.) E creio que percebi bem.

- Mas oiça lá: "à sua beira", foi o que disse? Que expressão tão bonita! "À sua beira"...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical!

Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e simpatizantes, de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam mutuamente por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.

Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora na terceira página, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias! Todos os dias!...
Não esqueço, Amigo Bastos.

P.S. - Texto publicado neste blogue no dia 7 de Agosto de 2022. Armando Baptista-Bastos nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1934. Faria hoje 90 anos. E é por isso.

terça-feira, 20 de junho de 2023

O paraíso é nos Açores, e eu já sabia 7

"Telefones há aí uns sete, mas não trabalham". No Posto e na Adega do Ferreira estão lá, mas apenas pintados em paredes de casas periclitantes. "Quando acontece qualquer coisa, vou lá fora, subo aos Cubres para telefonar a chamar o médico, mas nunca aconteceu nada de grave", diz-nos o guardador de amêijoas. Quando foi do nascimento da filha, "era para sair para fora mas não houve tempo". Chamou uma tia. Quando a tia chegou, "já a rapariga berrava". Outra vez, uma moça estrangeira "trincou-se na cabeça e foi-se aos Cubres chamar o helicóptero". Estiveram a pé até às cinco da manhã à espera do que não veio, e o médico chegou apenas às seis. E mortes? E o cemitério ao deus-dará? "Não me lembro de alguém ter sido sepultado ali, a não ser um desconhecido que apareceu morto no mar. Do terramoto para cá, não morreu ninguém", presta contas o Senhor Luís.
A Caldeira teve em tempos o seu próprio pároco. Hoje recebe a visita de um padre uma semana em cada ano, a que antecede e prepara a solenidade do Senhor Santo Cristo dos Milagres, no primeiro domingo de Setembro. Então, sim, a fajã enche-se dos naturais, há festa de arromba, "filarmónicas e tudo". Mas estes são católicos dos rijos e de expedientes. Não passam domingo sem missa, e na sua igreja. Um pouco antes das dez, o Senhor Luís pega no rádio e, com a família, cumpre o curto trajecto que o separa do templo. É geralmente acompanhado pelos outros três ou quatro vizinhos, mas já aconteceu muitas vezes estarem ali só os da casa. Sintoniza a RDP-Açores e preparam-se para ouvir a missa da Sé de Angra. Tudo ritualmente. "Como se tivéssemos padre à nossa frente, a mesma coisa". As respostas, os silêncios, os gestos, a reverência, a atenção. Justifica: "Gosto de ir à igreja. Nem a televisão me interessa, que dá a missa às três e meia da tarde, vejam lá!, e em casa eu não estou com atenção".

Ao fim da tarde, tempo apertado para mais um cafezinho, "da terra", e uma angélica, "aguardente da terra", que nos anima ao regresso. A hora é de pressas, pretendemos fazer a jornada até aos Cubres, pelo seguro, com a luz do sol. Deixamos para trás, queremos desconfiar que já com saudades, a intrigante Fajã da Caldeira, sítio de memória, do passado, onde a vida corre devagar e a morte parece não ter licença de entrada.

P.S. - Sétima e última parte de uma reportagem que escrevi há cerca de 30 anos para a revista Tempo Livre sobre as então abandonadas e esquecidas fajãs de São Jorge, nos Açores. As fajãs de São Jorge são património da biosfera da UNESCO desde Março de 2016.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

O paraíso é nos Açores, e eu já sabia 6

Já foi uma grande aldeia, vê-se. Mil novecentos e oitenta, o terramoto de 1 de Janeiro, foi o tempo da viragem: teve já cerca de três centenas de habitantes regulares, e por ocasião do cataclismo aqui moravam para cima de cem pessoas. Mas esta foi uma das zonas mais flageladas, e o que hoje se vê, se sente, é uma fajã-fantasma. "Casas por consertar, caminhos por amanhar", mostra o nosso cicerone, o cemitério abandonado às silvas e às ervas, ruelas - muitas, ao contrário dos Vimes e de São João - desertas. São somente três as casas ocupadas durantes todo o ano e haverá aí mais uma dúzia em condições de habitabilidade. O resto é ruína.
Fica o cenário, belo, esmagador - a serra, luxuriante, disfarçada de tropical, caindo das nuvens a pique e apertando aquele espaço mínimo contra o mar. A unir as duas paredes, grossos fios de arame, espécie de teleféricos, por onde as lenhas, as mondas para estrumes e as ervagens ou folhagens eram lançadas em molhos, presas a um gancho, da montanha para a fajã.
Por causa das dificuldades de acesso, aqui não há permuta de Inverno com os de cima. Quem está, está; quem não está, não vem. São seis ou sete os habitantes a tempo inteiro, todos idosos, à excepção da casa do Senhor Luís. Passamos por dois deles: absortos, tristes, resignados.
O guarda da lagoa, nos quarenta, é casado e tem uma filha, Suzete Maria, a fazer dez anos. Cada segunda-feira leva-a "lá fora" à escola e vai por ela à sexta. Mas nem esta separação o impele a desertar. Só a tropa o arrancou da fajã onde nasceu, fez a escola - "no meu tempo havia escola!" - e cresceu. "Por ora não quero sair. Eu gosto de estar aqui, isto é um sossego. Se não gostasse - e remata, pragmático -, já tinha ido".
Luís tem o seu gerador privativo e outros apetrechos da civilização. Para além da função pública, governa-se também com as suas trinta, quarenta cabeças de gado. As provisões vai buscá-las à Calheta ou à Ribeira Seca. Tem dois barquitos, mas raramente são hipótese de transporte. É que, "mesmo quando o mar deixa, não há marinheiros, há pouca gente". Por isso abala com dois cavalos, inteligentemente alinhados e atentos, pelo perigoso caminho que horas antes percorrêramos, até à Fajã dos Cubres. Deixa ali os animais e segue viagem de camioneta. Regressa às vezes pela noite, ele e as bestas carregados. E repete todas as semanas.

P.S. - Sexto capítulo de uma reportagem que escrevi há cerca de 30 anos para a revista Tempo Livre sobre as então abandonadas e esquecidas fajãs de São Jorge, nos Açores. As fajãs de São Jorge são património da biosfera da UNESCO desde Março de 2016. E amanhã há mais.

domingo, 18 de junho de 2023

O paraíso é nos Açores, e eu já sabia 5

Foto Tarrenego!
É do outro lado da ilha, no norte. Atravessamos a serra de costa a costa e iniciamos a descida pela Ponta Norte Pequena, deslocando-nos para leste. Passamos ao de longe pela Fajã do Ouvidor e, apontados ao destino, obrigamo-nos à paragem para, por momentos, gozarmos uma paisagem verdadeiramente de postal ilustrado: à nossa frente, muito ao fundo, agasalhada pelo leve manto da transpiração da terra, a visão magnífica das fajãs dos Cubres, em primeiro plano, e da Caldeira, ao longe, adornadas pelas suas lagoas. O automóvel desce-nos até aos Cubres e por aí se fica.
A vista alcança a Graciosa e a Terceira, do lado de lá do canal, enquanto desafiamos - encosta acima, encosta abaixo - uma marcha forçada por carreiro tortuoso, íngreme, pedras soltas e traiçoeiras, lajedos puídos, um pé de cada vez. Penedia e mar espreitam perigosamente do abismo, numa companhia incómoda, quase até ao fim do percurso. Na fase terminal, então já ao nível do oceano, vistoriamos as ruínas das fajãs do Belo e dos Tijolos e, num pulo, pomo-nos na Fajã da Caldeira do Santo Cristo.
Fora uma bem suada hora de caminhada. Paramos e respiramos. Vemos, ouvimos, um espaço breve, belo, esquecido.
Passamos pelo exterior de uma lagoa subterrânea, dentro de uma furna abobadada, com acesso por um estreito corredor, também subterrâneo, dizem-nos, mas andamos é para a lagoa de água salgada, onde se reproduzem as célebres amêijoas da fajã. Pelo seu sabor, pelo seu tamanho, são prémio de excelência para o esforço da viagem. Ali nos encontramos com o Senhor Luís, o homem que há sete anos guarda a lagoa. Será o nosso guia e quem nos vai contar as singularidades da mais diferente, típica e misteriosa de todas as fajãs.

P.S. - Quinto capítulo de uma reportagem que escrevi há cerca de 30 anos para a revista Tempo Livre sobre as então abandonadas e esquecidas fajãs de São Jorge, nos Açores. As fajãs de São Jorge são património da biosfera da UNESCO desde Março de 2016. E amanhã há mais.

sábado, 17 de junho de 2023

O paraíso é nos Açores, e eu já sabia 4

Era a hora da subida. Próxima paragem na Fajã de São João. Muito mais afastada da estrada principal, alcatroada, para lá chegarmos teremos de percorrer uma considerável distância pelo pó de uma via em terra barrenta, mas ainda assim de carro. O pior é a descida propriamente dita. Íngreme de meter medo e, ainda por cima, escangalhada por uma das habituais derrocadas. Restava o velho caminho alternativo, que, logo no seu início, avisava em letreiro artístico: "Descidas: às horas. Subidas: às meias". Esperámos pela hora e descemos, obrigados a complicadas manobras e ao recurso à mais eficiente das perícias. E outra vez encontrámos o mesmo silêncio, o recolhimento de um templo.
A fajã já teve escola e padre, mas hoje não vivem aqui permanentemente mais do que vinte pessoas, velhas quase todas e sobreviventes de pensões e da agricultura. Uma parte importante das cerca de duzentas casas e respectivas propriedades pertence a famílias da freguesia de Santo Antão, da zona alta da ilha, que descem com tudo, haveres e gado, para se guardarem dos rigores de janeiros e fevereiros, ou no Verão para as vindimas. É que - explica-nos o Senhor Libório, conhecedor do que diz - "lá em cima o tempo mata tudo e cá em baixo é o melhor que há para as coisas do cedo".
É assim, divididos entre a fajã e a serra, que vivem os dos Vimes e de São João. Na serra do Topo têm a sua cooperativa de lacticínios, onde é produzido o excelente queijo de São Jorge, de características originais e famoso pela sua qualidade invulgar e sabor único. E cá em baixo estão as sua vinhas - designação genérica para os quintais em socalcos -, ricas em hortícolas e frutos temporãos. O Senhor Libório mostra-nos, na Fajã de São João: banana, vinho, tomate, tangerina, trigo, figo e, claro, café.
Terá vindo do Brasil, "há-de haver cem anos", diz-nos a Tia Maricas, que nos vai ensinar tudo sobre o café das fajãs. Num discurso simples mas fluente, inteligente, filosófico às vezes, quase sempre sábio. "O café há que apanhá-lo quando as bagas estão vermelhas, a caminhar para o castanho. É descascado à mão, mas antes disso, quando está bem seco, esfrega-se em cima de uma soleta". Depois vai a queimar, com todo o cuidado, porque não pode ficar "nem muito encruado nem muito torrado". Esta operação é geralmente feita numa meia esfera em ferro, serrada de uma das muitas bóias que vão dando à costa. "Leva-se um ou dois dias ao sol, a secar, senão amarga, e então pode-se relar". A seguir é bebê-lo e - mais pelo paladar do que pela cor ou pelo aroma - apreciá-lo como merece, calmamente, repetindo, enquando vamos aprendendo a vida com a Tia Maricas.
Também ela desce de "lá fora", Santo Antão, para as suas temporadas de fajã, porque "isto é melhor que um sanatório: já aqui foram curadas muitas tuberculoses". E passa às provas. Por exemplo, a história de "duas raparigas, rapariguinhas de 18 anos, tísicas, mal-enganadas pelo médico, que, ciente da falta de cura, as mandou por descargo" para a Fajã de São João. "O caso é que, tratadas pelo sol e pelos ares, bem comidas e resguardadas, ali ganharam cores e saúde e se apresentaram, tempos mais tarde e sem mancha de doença, ao doutor, que afinal já não as esperava ver vivas". A certidão do que diz atesta-a Tia Maricas com os seus bem vividos e lúcios 92 anos.
São horas e meia, tempo exacto para a subida e o regresso à Calheta. O dia seguinte está guardado para a Fajã da Caldeira do Santo Cristo, empreitada que nos reclama bem descansados.

P.S. - Quarto capítulo de uma reportagem que escrevi há cerca de 30 anos para a revista Tempo Livre sobre as então abandonadas e esquecidas fajãs de São Jorge, nos Açores. As fajãs de São Jorge são património da biosfera da UNESCO desde Março de 2016. E amanhã há mais.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

O paraíso é nos Açores, e eu já sabia 3

Preparamo-nos para baixar à Fajã dos Vimes, hoje em dia a mais populosa, com quase cem habitantes. Antes, paramos à beira da estrada e bebemos um pouco de "água azeda" numa nascente tida como de virtudes estomacais. O alcatrão continua, lento, descendo cada vez mais, quase até à fajã. Acompanhando estrada abaixo o Rio dos Inhames, vamos desaguar, agora por poeirento caminho de terra, a uma espécie de terreiro da igreja. Fechada.
Só para ver os inhames do Rio, vale a pena descer à fajã. Mas o que ali nos levara fora a fama das colchas de tear ou colchas de ponto alto, uma das manifestações mais características do artesanato açoriano.
O inhame é um tubérculo, rico em amido e com um gosto ligeiramente adocicado, muito utilizado e apreciado na cozinha regional. E os inhames dos Vimes são considerados os melhores de São Jorge, talvez do arquipélago inteiro. As plantas, de folhas enormes, verdíssimas, ocupam uma considerável porção de terreno encharcadiço - o Rio - situada a meio da fajã, na parte inclinada, regadas pelas águas esparramadas de uma nascente que brota no equador da encosta. Em tempos estas águas iam morrer a pitorescos moinhos, hoje parcialmente destruídos.
Mas fôramos pelas colchas. Feitas em pura lã, "lã da terra", de um colorido intenso, laboriosamente confeccionadas em toscos teares de madeira, utilizando técnicas ancestrais. Haveria que visitar as três tecedeiras da fajã, ou ali se arranjaria ciumeira desgraçada, entornar-se-ia todo aquele sossego, aquela paz de retiro. Cumprimos.
Dona Rosa passou já os 85 anos, que não lhe roubaram a beleza do rosto. Com impecável lucidez, conta que terá sido das primeiras, se não a primeira, a fazer as colchas da Fajã dos Vimes. Estabeleceu-se "há mais de 60 anos, era ainda solteira". Mas começou a tecer com 15. "Com isto", e desvenda, orgulhosa, a sua primeira peça, uma riquíssima colcha religiosamente guardada e a que o tempo parece ter concedido ainda mais encanto. E vai exibindo colchas e toalhas e tapetes e saias de padrões berrantes ou discretos, de ractângulos e quadrados, cornucópias ou flores. "Fiz muitos desenhos, cheguei a ter sete pupilas e três teares a trabalhar". Teares que ela própria alargou, para poder executar obras de maior dimensão.
Lamenta-se é que a saúde que lhe falta a obrigue agora à inactividade. Mas também se queixa da fuga dos da sua fajã. "Até a escola, onde a minha filha é professora, vai fechar: já nem crianças há".
A prosperar está Dona Alzira Nunes. Tem três teares, trabalhados por três adultos mais uma miúda, e, garante, "a procura tem aumentado". Tudo o que faz é venda garantida e quase que não resta tempo para cumprir encomendas. Ideia que, de resto, a última das tecedeiras, Dona Maria Alexandrina, avaliza. "Haja quem teça, que quem compre há sempre", diz. Tece há pouco tempo e, numa sucessão pouco natural, continua a obra da sua filha, Jacinta, essa considerada como artista e por isso a trabalhar e a expor em Ponta Delgada, São Miguel.
Embora existam desenhos com mais de cem anos, que continuam a ser requisitados, cada tecedeira executa, as mais das vezes, as suas próprias criações. Maria Alexandrina folheia alguns dos seus feitios: "rosas e quadrados", "toda branca", "cinzento e branco", "novo", "da Calheta"... E também ela alterou os seus teares, "inventando" o pente alargado, para trabalhos de 2,5 por 3 metros.
Optimismo mora ali. A arte não vai morrer. Alexandrina tem três pessoas nos seus teares, mas "há-de vir mais gente para aprender, que a carreira já cá chega". Pelo que lhe toca, dá o exemplo: "Tenho uma amarração a estas coisas, que não as deixo". Como à fajã - que nem o facto de ter luz eléctrica (por gerador comunitário e de graça) somente duas a três horas por dia, e mais alguma por noite, a desconsola. "Olhe, já estive na América, mas ainda não vi sítio melhor que este".

P.S. - Terceiro capítulo de uma reportagem que escrevi há cerca de 30 anos para a revista Tempo Livre sobre as então abandonadas e esquecidas fajãs de São Jorge, nos Açores. As fajãs de São Jorge são património da biosfera da UNESCO desde Março de 2016. E amanhã há mais.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

O paraíso é nos Açores, e eu já sabia 2

Mas também aquilo não é para qualquer. Exige força, perseverança, saber estar só. É o valor dos resistentes. Ainda aqui há uns bons anos havia fajãs, como a do Cerrado das Silvas, habitadas todo o tempo por uma única família. Cultivavam as suas precisões, invernavam o gado, vendiam lenha a lapas, ali apanhadas no seu calhau. A ingratidão dos elementos, os frequentes sismos que sucessivamente apequenam o espaço, o isolamento do resto da ilha, puderam mais. E quase todos abalaram para as vilas ou para a serra.
As comunicações também não ajudavam. Sem telefone, com o mar imprevisível como derradeiro recurso de ligação, os caminhos não passavam de trilhos, por rochas, escarpas e ravinas desenhando a encosta. Em algumas fajãs foi até preciso construir um tipo especial de carro de bois, com um eixo mais curto. Mas nem assim se ultrapassavam vias constantemente cortadas por terras e pedras deslocadas. Hoje, de estradas melhoradas, há fajãs que servem às gentes serranas como casa de Verão, onde são passados os domingos e dias santos, ou sazões agrícolas, principalmente no Inverno.
As mais típicas e ainda activas fajãs de São Jorge pertencem ao concelho da Calheta, na parte oriental da ilha açoriana. Vamos conhecê-las. E, porque a jornada é dura, comecemos, para ambientar, pela mais fácil, mesmo à beira, a Fajã Grande, no mesmo plano e a continuação natural da pacata e bonita vila. Uma fajã urbana, sem os exotismo que iremos encontrar lá mais para diante, do lado de lá da sede concelhia. Por isso - pensou a Câmara - aqui haveria que criar condições de chamamento, inventar o turismo. E vai de construir, encostado ao mar, um parque de campismo com todas as condições tidas por necessárias e servido, como bónus, por uma piscina natural e uma visão ideal do Pico, "o ponto mais alto de Portugal", e do Faial.
Uma carrinha apetrechada para a venda, minimercado ambulante aparelhado de potentes altifalantes, distribui música, engodando os habituais clientes: tornámos à vila. E enquanto vamos ouvindo as lamentações do povo da terra, por via do porto - que as obras do Governo Regional melhoraram para pior, tornando o cais quase inoperacional e impedindo por sistema a acostagem do Cruzeiro do Canal ou do Cruzeiro das Ilhas -, aprestamo-nos para o ataque às histórias das fajãs dos Vimes e de São João, ainda a sul, a caminho da ponta do Topo. Vamos de automóvel e subimos a serra por boa estrada alcatroada. À nossa direita vemos e ouvimos o mar, batendo, lá muito ao fundo, numa pequena fajã desabitada, abandonada em ruínas: a da Fragueira. Estão lá, marcados pelo tempo, os restos da casa onde nasceu o maestro Francisco de Lacerda, talento que prestigiou o País pela Europa e pela América.

P.S. - Este é o segundo capítulo de uma reportagem que escrevi há cerca de 30 anos para a revista Tempo Livre sobre as então abandonadas e esquecidas fajãs de São Jorge, nos Açores. As fajãs de São Jorge são património da biosfera da UNESCO desde Março de 2016. E amanhã há mais.

quarta-feira, 14 de junho de 2023

O paraíso é nos Açores, e eu já sabia

Foto Tarrenego!
As fajãs de São Jorge, nos Açores, são património da biosfera da UNESCO desde Março de 2016. Até àquela altura, ninguém sabia delas, isto é, ninguém queria saber delas, mas passaram a estar na moda. A televisão SIC dedicou-lhes uma Reportagem Especial, de que o semanário Expresso faz eco. Os outros jornais e televisões, atarantados pela novidade, também lhes deram todas as atenções. Adiantado no tempo sem saber, eu tive a sorte de palmilhar as fajãs há cerca de 30 anos e contei na revista Tempo Livre o que então senti e vi naqueles édenes ao deus-dará. A UNESCO não me leu, a televisão também não. Perdeu-se um quarto de século, mas mais vale tarde do que mal acompanhado. A SIC chamou à sua reportagem "Isto não é um segredo mas é sagrado", eu, como não descobri a pólvora, chamei à minha "Fajãs de São Jorge: as terras esquecidas", e começava assim, com o velho lead e tudo:

Aprender dos 92 anos da Tia Maricas que aqueles ares saram maleitas, apaladar a conversa com um gostoso café roubado ao quintal, torrado, moído e coado: tudo na hora, quase, e - insondáveis são os desígnios do Senhor - ao domingo ir à igreja rezar a missa pelo rádio. Milagres das fajãs de São Jorge, nos Açores, paraísos perdidos à beira da desertificação. Ali o tempo não parou. Voltou para trás.

São, ao todo, quarenta e seis. Bordam toda a costa da ilha, mas em maior número na costa norte, mais escarpada. São as fajãs de São Jorge, terras baixas e chãs, de um modo geral formadas por derrocadas de grandes massas ou pela acumulação de materiais de aluvião, ali onde o monte acaba e o mar começa.
Pobremente semeados de casas simples, pequenas adegas rústicas ou palheiros, estes nacos de terreno de excepcional qualidade são um luxo para a vista mas também para os primores da Natureza. Um microclima especial oferece-lhes culturas tão variadas como a da vinha (o singular e controverso vinho-de-cheiro), da batata, da batata-doce, do milho, da banana, entre outros frutos, do inhame, nas encostas, e até do café.
Dois ou três casebres, construídos em pedra solta, quintais em socalcos, aproveitando todas as ribanceiras e os retalhos do solo, uma igreja modesta ou singela ermida, pintam a fajã por sobre o verde luxuriante e imponente da serra e o azul temperamental do oceano. Ambos parecem querer, à uma, engolir aquela indefesa língua de terra.
Parecem retalhos de paraíso, de um paraíso perdido, alheio ainda ao turismo por grosso (para gozo do passante solitário), um espaço esquecido no tempo no meio do arquipélago dos Açores. E, no entanto, são cada vez menos os jorgenses que escolhem a fajã como sítio de vida. O êxodo multiplica-se, as adegas arruínam-se. Sobra um ar de abandono, de vinhas mal cultivadas, de terras deixadas.

P.S. - Amanhã continuamos.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Bicho bom é malcriado para todos

José Henrique, primeira figura que se preza, garante que sozinho lida melhor. Toiros, há-os "bons e os que não prestam". Mas raramente é surpreendido: "Conheço-os a todos e eles conhecem-me a mim. O toiro sabe por onde eu vou e eu sei por onde ele vai. Por isso posso muitas vezes pôr-lhe a mão em cima da testa", que é do que o povo gosta. A alguns animais foi ele quem os toureou na "primeira corda, na segunda e na terceira". E chega a lidá-los até cinco vezes.
Mas o que verdadeiramente dá gozo a José Henrique, capinha, é que os toiros lhe apareçam "bravos", que lhe saiam "o 309 ou o 314, o melhor, que é malcriado para todos". O que se compreende: afinal, já lá vai quase uma dúzia de anos e, não sossega o gabanço, nunca foi "pegado".

Passou um quarto de hora, e dois foguetes ordenam a recolha do primeiro da tarde. Por momentos a rua volta a encher-se de heróis refractários que, sumários minutos escorridos, ao aviso estrondoso de mais um foguete, outra vez voam supersónicos a esconderem-se no quentinho dos abrigos. Aí vem o segundo. E tudo se repetirá mais duas vezes, que a função completa é assim, quatro-toiros-quatro.

Tourada à corda, um espectáculo de reis. D. Carlos e D. Amélia estiveram uma vez na corrida de São João de Deus. Um espectáculo de rua e de mar, para onde se atiram toiro e homem, no Porto de Pipas, para o banho sacramental. E um espectáculo para todos na RTP Açores, que transmite em directo as principais corridas.
Ao vivo, é a delícia de uma multidão paciente, conhecedora, apaixonada. Devota. Na Terceira vai-se aos toiros praticamente desde que se nasce. Incontornável ponto de encontros, à sombra daquele desbragado sol selam-se amizades de vidas, e muito casamento é ali mesmo que se ajeita. Convívio, é isso. As corridas à corda são também por fora: muito convívio a fazer a festa da festa.
Com 70 anos bem medidos, João Gatim, pescador na reforma, vê toiros desde que se lembra de enxergar alguma coisa. "Nos toiros, por este nome, toda a gente sabe quem sou", faz questão de avisar. "Ando aqui porque gosto, e pronto, muito mais do que das corridas na Praça. E aí vou eu, com os meus amigos, já há muitos anos, por esses arraiais fora", diz-me, encolhendo os ombos.
Claro que, no seu tempo, Dom Gatim também deu o seu gostinho à sapatilha à frente dos toiros e trambolhou vira-cus que são o seu orgulho. Recorda: "Fui pegado três vezes - da primeira estive quinze dias de cama, mas das outras duas, é claro, já sabia mais e saí-me limpinho".
Mestre João Gatim contenta-se agora como espectador. Não um qualquer, atenção! Peregrina, batendo-as a todas. Mais sôfrego por corridas à corda que o Libaninho do Eça por missas, papa quantas pode. Por ano, vai aos toiros aí umas cem tardes. Santo consolo...

P.S. - Sétima e última parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha.

segunda-feira, 12 de junho de 2023

A arte dos capinhas e o passe de guarda-sol

Os capinhas, em pose inicial algo parecida com a do forcado da cara nas corridas à portuguesa, enfrentam o toiro, citam, provocam, correm-lhe ao encontro, ensaiam o "temple", "aguentam" ou, momento supremo, "adornam-se", tocando-lhe entre hastes. E raspam-se a mil à hora. E reincidem. Sempre pela frente. "Passar por detrás do rabo de um toiro é desconsideração, é uma falta de respeito ao animal", elucida-me um purista, velho aficionado. Compete aos capinhas "levantar" o toiro, fazê-lo dar o máximo ao espectáculo.
E aqui é que bate o ponto. Algumas más-línguas desconversam que estes espontâneos em full-time recebem dinheiro dos ganadeiros para fazerem brilhar especialmente os seus toiros ou, coisa medonha, são pagos por criadores terceiros para reduzirem ao fiasco a exibição dos animais da concorrência...
Maldades ditas do piorio. A pés ambos, José Henrique e Noé - dois dos quatro ou cinco capinhas sobreviventes em toda a ilha ("Há por aí uns rapazes a aprender") - juram que não, e que não, e que não: "Não há negócio nenhum, nem com os ganadeiros nem com as comissões de festas". Pois...
"É só por gosto, a gente gosta. Tourear toiros é bonito. Isto para mim é como o futebol, o meu verdadeiro futebol", explica-me José Henrique, na arte há onze anos e em vésperas de pendurar as sapatilhas.
José Henrique considera-se "um toureiro toureiro realizado", faz questão de frisar apontando para os meus apontamentos. Toureiro toureiro, assim mesmo, não foi engano. "Já toureei na América, toda a gente que vem aos toiros me conhece", acrescenta, com orgulho internacional. Passou pela escola de toureio da Praça de Angra do Heroísmo, mas "não tinha gosto nem vagar". Ainda assim não resiste a dar lá uns saltos, à Monumental, para expor a sua valentia, desafiando toiros "sem muleta, sem capa, de peito aberto".
Conta-me: "Uma vez, eu, o Ananias, o Dimas, o Magalhães e o Rosas lá estivemos. Eram toiros bem bravos, o 163 e o 164. Toureiros do Continente e de São Miguel nem lhes conseguiam chegar, e a gente ali, a ajudarmo-nos uns aos outros, a escorregarmos quando calhava, mas a fazermos ver àquele povo. É bonito é ir ao meio da praça e chamar o toiro com o guarda-sol"...
Note-se que raros capinhas se aventuram hoje em dia ao famigerado passe de guarda-sol, executado em duo: um, empunhando o guarda-sol propriamente dito, e o acólito ao lado, com a samarra nas mãos; um a servir de engodo ao toiro e o outro a rematar o número em beleza; ou vice-versa. São raros. E por via disso é que os mais antigos recordam com saudade e emoção as grandes tardes do Prosa, exímio executante daquela arte.

P.S. - Sexto fascículo de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

domingo, 11 de junho de 2023

Há que tê-los, como os toiros...

A entrada em cena da fera espanta a preguiçosa turbamulta, que corre agora a esconder-se por trás dos taipais e a empoleirar-se nas cristas dos muros. No entanto, quer parecer de repente que há ali valentes - muitos, alguns, cada vez menos -, que, desajeitados, de largo, arremedam manobras patuscas a que o bicho faz o favor de não deitar sentido. Mas não. Era afinal a armar à precária coragem de encomenda. Logo que se encurtam as distâncias, ala que se faz tarde, os heróis de pacotilha enxotam-se rua fora em carreiras destrambelhadas. É. Para enfrentar o toiro, há que tê-los. Mas não estão à venda...
Em menos de um susto, o terreno fica limpo, entregue aos que verdadeiramente lhe têm direito: o toiro mais os pastores e os capinhas - um, dois ou, no máximo, três. Capinhas? Vá-se lá saber o porquê do nome. Estes jovens não vestem "trajes de luzes", não usam capote nem manejam a espada. Sem farpela especial, precisam, isso sim, de umas boas sapatilhas. E ali estão! Agora é que é, assunto para esclarecer entre verdadeiros artistas, os capinhas e o toiro. E então se enovela uma dança-luta de prender atenções e cortar respirações, arca por arca, mano a mano, sem truques.
Nada na mão, nada na manga. Ordena o Regulamento das Touradas à Corda da Região Autónoma dos Açores que "todos os participantes na lide ou corrida não podem utilizar instrumentos susceptíveis de provocar ferimentos no toiro, como "aguilhões", podendo, todavia, fazer uso dos instrumentos consagrados como tradicionais, nomeadamente o bordão, blusa ou pano, a varinha e o guarda-sol."

P.S. - Quinto episódio de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

A primeira pertence ao toiro

Quem quiser assistir a uma lide à moda antiga, sob a ortodoxa liturgia das origens, deverá deslocar-se à Canada das Cales, nos Altares. Mas quem pretender viver uma das corridas mais interessantes e famosas, então terá de ir à Ladeira Grande. "Os melhores animais estão reservados para ali. Aquilo é uma montra de toiros", dizem-me os da tarimba. Mas, a verdade é esta, também não se enfastiará quem resolver vadiar aos toiros pelas Doze Ribeiras, por Vila Nova ou pelas Lajes.
Ligada tradicionalmente às festas e romarias da freguesia ou do sítio, a tourada à corda é corrida em plena rua, na estrada, com portas e cancelas convenientemente resguardadas com taipais de madeira atamancados à medida, num percurso que não poderá exceder os 500 metros, e os seus limites estão marcados, em ambos os extremos, por dois riscos brancos, pintados no chão com um intervalo de cinco metros entre si. Estas linhas servem também para discriminar responsabilidades em caso de estragos e prejuízos: a cargo dos mordomos da festa, se dentro; por conta do ganadeiro, quando fora.
A rua esborda de uma multidão passeante que o calor abafado empurra a entornar-se na cerveja e no vinho de cheiro. Às cinco da tarde em ponto, uma solitário foguete rasga o céu anunciando com estrondo a saída da primeiro toiro. Comandam-no os pastores, com uma corda de 90 a 95 metros, espécie de arreata que, por assim dizer, conduz e mantém o animal nas balizas do arraial.
Os pastores, homens do ganadeiro, vestem para o acto chapéu de feltro preto, camisola branca com feitio e calça preta ou cinzenta. Como manda a lei, deverão ser sete, divididos pelo meio e pelo fim da corda, mas o povo não gosta de lá ver muita gente. À frente, o rodador, que "vira a mão" consoante o toiro vai "pedindo", ajudado pelo resto do grupo da "pancada", para suster o animal no limite da corda durante toda a corrida. A pancada, há que saber dá-la: nunca por nunca "de estaca", isto é, de supetão, porque então o toiro tombaria. E isso seria uma vergonha!
Entre estes homens guarda-se e respeita-se uma tradição que vai marcar o desenrolar da lide e que ordena que "a primeira é do toiro e a segunda é dos pastores". Quer-se dizer: o animal é livre de arremeter o primeiro ataque, porque "só assim a luta é leal", ensinam-me os mais antigos, mas na segunda investida já poderá ser refreado pelos pastores.

P.S. - Quarto fascículo de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

"Mulato", o ídolo das multidões

Tudo começa pelo cedo, no "mato", horas antes da tourada propriamente dita. Sob o olhar interessado e crítico de muitos aficionados, os pastores (espécie de campinos apeados) apartam e conduzem para o redondel do ganadeiro contratado um lote de animais de onde sairão, após vistoria veterinária, os quatro para a lide.
Não se trata, em boa verdade, de uma escolha. De facto, os toiros são conhecidos e requisitados consoante a fama que os precede. Depois de corrido na praça, o toiro é tratado para regressar à pastagem. É, apesar de tudo, um "puro", e estará então pronto para a sua "primeira corda". Daí para a frente, dos três aos nove anos, será o seu valor (que "a corrida é boa quando o toiro é ruim") a determinar o número de funções e de temporadas em que se manterá em cartaz. E mesmo depois, com dez ou doze anos, já passado e em idade de aposentação, ainda colaborará em corridas de segunda ou de oferta benificente do ganadeiro. Reclamam, solenes, os fundamentalistas, que não estão virados para vacadas com recurso a decadentes velhas glórias...
O nome próprio do toiro da corda é um número. Os bons desempenhos e o sucesso poderão conferir-lhe, por distinção, o privilégio da alcunha. O "Descornado" ou "Galho e Meio", no activo pelos anos 50 e 60 do século passado, é dos mais famosos: tudo o que é bom - garentem alguns entendidos - descendeu dali. Mas era o "Mulato" ("o velhaco", "o traiçoeiro", "o sabido") que por aquela altura convocava as multidões. Toda a gente o queria ver, se bem que ao longe. Dele se afirma, quase por unanimidade, ter sido "o melhor de todos". Ao "Mulato" podem juntar-se, na selecta tribuna dos notáveis, o 90 e o 14. Nos últimos tempos, o 309 e o 314 são do melhor que por ali se corre - diz quem sabe.
A questão tem mesmo muito que se lhe diga. Na verdade, é singularmente à volta do toiro, e de mais nenhum dos intervenientes na corrida, que as opiniões dos entendidos se extremam, se incendeiam. Espontâneas tertúlias maliciosamente picadas por infiltrados amigos da onças, marralham, discutem, barafustam quase em vias de facto pela imposição dos melhores, dos seus melhores. Exactamente: na corrida à corda, os aficionados são pelo toiro...

P.S. - Este é a terceira parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Os toiros é que eram o verdadeiro futebol

A história das touradas na ilha Terceira é rica em peripécias. Para que conste e se não incomodem em desgostos os pouco secretos participantes em recente vernissage de morte, foi aqui, a 13 de Setembro de 1895, que pela primeira vez um artista espanhol, Mateíto, matou a estoque um toiro em Portugal. Deu-se o caso no pátio da Quinta do Rosário, na Terra Chã, propriedade do conde de Barcelos.
No último quartel do século XIX, a função à corda deverá ter-se revestido de alguma selvajaria, já que não faltam relatos e denúncias de maus tratos aos animais. Em 1900, uma certa "inovação" numa corrida em São Carlos, nos arrabaldes de Angra, veio alterar os ânimos da imprensa local - à época, atenta e vigilante -, que logo bradou contra o "abuso" de se lidarem dois toiros ao mesmo tempo. Contam os arquivos: "Em São Carlos deu em resultado ficar bastante magoado um indivíduo que, procurando desviar-se de um dos animais, foi apanhado pelo outro". Depressa acabaram as modernices.
De 1910 ficou notícia de uma tourada como paga de promessa pela cura de um pequeno ferido numa corrida da temporada anterior. E da maneira como esta tradição se impregnou nas gentes terceirenses é bom exemplo o acontecido em 1916, tempo de guerra: o general Augusto de Oliveira Guimarães, governador militar dos Açores, proibiu as corridas à corda; a sua autoridade é que não resistiu às pressões da população, e logo dois meses passados eram concedidas "algumas" licenças para desaugar o povo.
Em 1919 as touradas voltaram em força. Às vezes quatro no mesmo sítio, umas atrás das outras. O povo deslocava-se em multidões, em lanchas e barcos, carros e camionetas e, em 1922, uma dessas excursões serviu até para a viagem experimental do primeiro auto-omnibus das ilhas. O ritual do cortejo, desde o campo até ao terreiro, mantém-se ainda hoje, porém já com o folclore a desbotar-se-lhe.
As restrição nunca vingaram. Na Terceira era este, definitivamente, o divertimento do povo. Apesar de, por exemplo, o jornal A União prosseguir severa cruzada, afligindo-se então que as touradas à corda "são uma vergonha; o mesmo que impelir para o abismo uma população inteira".

P.S. - Este é o segundo capítulo de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Da vaca das cordas à farra do boi

Dos terceirenses costumam dizer os açorianos das outras ilhas, se calhar com uma pontinha de inveja, que são gente branda para o trabalho mas lesta para a folia. E tudo, afinal, só por causa das suas Sanjoaninas - consideradas "a mais pujante festa popular do arquipélago" e que, na última semana de Junho, constituem, a bem dizer, o modo de vida de toda a gente -, também derivado à sua maneira muito especial de festejar o Espírito Santo, que aqui rende duração extraordinária, desde o domingo de Pentecostes até ao fim do Verão, mas principalmente à conta das suas touradas à corda. "Soltem-lhes um toiro na rua - acirram os vizinhos do outro lado das ondas -, e o dia está-lhes ganho. O resto cá ficamos nós a trabalhar por eles". Um exagero...
A verdade, no entanto, é que não basta aos da Terceira a já de si singular extravagância regional das clássicas corridas de toiros à portuguesa, na Monumental de Angra do Heroísmo, durante a época estival. O temperamento festivo e extrovertido deste povo bom ganha identidade própria somente nesta manifestação bizarra e excitante que é a tourada à corda.
E não o fazem por pouco: de 1 de Maio a 15 de Outubro, cerca de 150 corridas ditas tradicionais, fora as avulsas, cobrem as freguesias dos concelhos de Angra do Heroísmo e Praia da Vitória, com surtidas, entusiasticamente acompanhadas, às Velas e à Calheta, na vizinha ilha de São Jorge.
A primeira referência a uma "tourada de corda" remonta a 1622, por ocasião dos festejos jubilosos da canonização de São Francisco Xavier e Santo Inácio de Loiola, oferecidos pela Câmara de Angra. No entanto, e curiosamente, já em 1588 D. Frei Jorge de Santiago, terceiro prelado diocesano, proibira as touradas nos adros das igrejas.
Os animais talvez tivessem vindo do Algarve, da zona de Sagres, donde partiram as primeiras naus, mas também terá chegado algum gado mirandês, o que nem dará para admirar, pois entre os primeiros colonos havia muita gente do Norte.
O gado bravo, esse, há quem admita ter sido expedido de Espanha, logo após o estabelecimento dos castelhanos, no tempo do domínio filipino, mas mais criterioso será afirmar que o primeiro toiro bravo de estirpe terá sido importado somente há pouco mais de 70 anos - ensinam-me os entendidos.
Não estão também esclarecidas as origens da tourada à corda. Apesar das suas parecenças com o gallumbo y el toro del aguardiente de Espanha, ela assentou arraiais na Terceira, pode presumir-se, antes da chegada dos castelhanos. E de uma forma, por assim dizer, espontânea, genuína. No "mato", que é como os locais chamam ao interior da ilha, haveria já quem, assim para matar o tempo, tentasse as suas habilidades com os toiros. Pois bem: foi só pegar nessas proezas ocultas e transportá-las para o espectáculo franco dos terreiros.
Ponte de Lima mantém uma evento congénere, com realização anual na quarta-feira anterior ao Corpo de Deus, isto é, amanhã: chama-se ali "vaca das cordas". E no Brasil sobrevive também anualmente uma aparentada "farra do boi", na ilha de Santa Catarina. Mas, a tão grande escala, os toiros à corda da Terceira são, sem dúvida, um acontecimento único. E de exportação, para onde quer que haja um terceirense.

P.S. - Esta é a abertura de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Em nome do Espírito Santo 6

No sábado, o recato das oito da matina é hora da distribuição de esmolas, e na segunda-feira, derradeiro dia das festas, no fim da manhã serve-se o bodo de leite e ao princípio da tarde prossegue o leilão de alfenim ao domicílio começado na véspera. De casa em casa, com música e cantigas. Tudo faz receita.
Explique-se: o alfenim é um doce feito com açúcar, água e óleo de amêndoa que mãos hábeis de pasteleiras domésticas adaptaram às linhas de flores, peixes, pombas, galinhas, cisnes, veados, coelhos ou outras. Às vezes serve como ex-voto, para resgate de graça, e, sendo esse o caso, toma então a forma da parte do corpo milagrada.
Quanto ao bodo de leite, perdeu, se calhar, alguma da sua pureza original. De facto, ao leite e ao pão tradicionalmente postos à disposição de todo o povo no final de uma procissão sumária, acrescem agora - fruto do indulgente correr dos tempos - os mais que óbvios copinhos de vinho, enquanto a mesma charanga paisana que, grave e lenta, acompanhava o cortejo religioso de há bocado, cumpre agora, toda gaiteira, de grupo de baile, debitando de um fôlego o repertório completo das suas modinhas. Sob a bênção cúmplice do padroeiro, que, do alto do andor florido, ali mesmo a tudo preside (parece que com um sorriso maroto...), come-se-lhe, bebe-se-lhe e dança-se-lhe como manda a ventarola. Que Deus lhes perdoe, mas há qualquer coisa de báquico no ar.
O programa remata com chave de ouro: a incontornável tourada à corda. Era o que faltava! Falamos da Terceira e por lá os toiros, só por si, são a festa. Acontecimento incrível, verdadeira instituição, capaz de arrastar e arrebatar as mais entusiasmadas multidões, a corrida à corda é o ponto alto e o fecho. Ou talvez não.
Deste este mesmo domingo que está escolhida a nova Comissão, para o próximo ano. Afinal, tudo torna ao princípio: a festa, a bem dizer, não acabou, está por começar. Renova-se o ciclo de devoção e da folia, tudo em nome do Espírito Santo. Que governa, imperial, a alma "cândida e tenaz" do povo das Ilhas Azuis.

P.S. - Escrevi originalmente este texto talvez em 1992 ou 1993, para publicar não sei onde. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela por acaso e só me envergonhei um bocadinho. Termina hoje, assim. Amanhã voltarei aqui aos Açores, mas para as touradas à corda.

domingo, 4 de junho de 2023

Em nome do Espírito Santo 5

Está então aí a deliciosa maré para confeccionar as tradicionais sopas do Espírito Santo e a perfumada alcatra, que, à moda da Terceira, constitui uma das principais jóias da preciosa cozinha açoriana.
A quinta-feira é dia de Pezinho. Em nome da Comissão, um rancho de cantadores e tocadores de viola vai de porta em porta agradecendo e, em muitos casos, recolhendo ainda ofertas retardatárias para a festa grande. Na sexta-feira, pelo meio-dia, as portas da despensa do império abrem-se à distribuição do pão e da carne, repartida em doses ricas, para consumo de toda a freguesia mas cuidando particularmente para que não faltem aos mais pobres. Todos os lares estarão precatados para receberem fidalgamente familiares, parentes, compadres, vizinhos, amigos e penetras.
De súpeto espetam-se no fim os dias contados dos dois, três ou mais animais que a Irmandade, comprados ou por oferta prometida, há um ano cativara e cevara para o efeito. Fatal como o destino, não há milagre que lhes valha. São cozidas centenas de quilos de pão branco para a sopa e em massa sovada. Requisita-se o melhor vinho da ilha. Venham então essas sopas do Espírito Santo, que já se irrequieta o pessoal, com os pés metidos debaixo da mesa. Mestre Nemésio conta, de fazer água na boca, em "Mau Tempo no Canal":
O bezerro esquartejava-se para esmolas de pão e carne estendidas em bancas improvisadas na rua com tabuões e toalhas, e postas nos seus pratos de barro coroados de ramos de hortelã. O pobre que dá ao pobre cobre a sua alma e empresta a Deus. Fartura é naqueles dias! Cozido e alcatra a amigos e compadres, nas panelas de arroba mexidas pela "mestra da função"... as mesas postas, carniça, potes de rosas, e os copos mostrando à transparência de vinho os confeitos de funcho e açúcar jogados pela vereança aos peitos das raparigas. Vivo e coberto de fitas, tonto das boninas e da pólvora do foguetório, o bezerro, à frente do cornetim e da rabeca do Pezinho, cheirava a pêlo e a chícharo, à jarroca das grotas sem fundo, trazido do lado de lá do nevoeiro que engorda os pastos e vela a alma da ilha. Ainda quente do breu que lhe segura a rosa de papel entre os cornos, ajoelhavam o bicho à força à porta do "imperador", como se o Espírito Santo quisesse lembrar aos ilhéus que são do mesmo barro que a vaca bafejou no filho da Virgem pobrinha.
Tal qual.

P.S. - Escrevi originalmente este texto talvez em 1992 ou 1993, para publicar não sei onde. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela por acaso e só me envergonhei um bocadinho. Amanhã há mais.

sábado, 3 de junho de 2023

Em nome do Espírito Santo 4

Em Angra do Heroísmo, já pelo ano de 1492 se fazia um "esplêndido império", então chamado "dos nobres". Hoje, só nesta ilha são mais de cinquenta e, rivalidades à parte, um deles, o de São Carlos, nos arrabaldes da cidade, para si granjeou no antigamente a fama de ser "dos ricos". É claro, possui também o seu caso, muito falado.
Assunto sério, assombro de varar qualquer, acudimo-nos de atestado assim passado, a páginas tantas, por Alfredo da Silva Sampaio:

[...] por tradição se sabe que, pouco tempo depois de ter rebentado o fogo no local denominado Entre o Pico e a Serra, em 1761, desenvolveu-se um fumo denso que, descendo a cumeada da serra de Santa Bárbara, veio ter ao local onde hoje está o império. Assustados os Terceirenses com tal fenómeno, foi conduzido por alguns devotos para este último ponto um estrado de madeira onde colocaram uma coroa do Divino Espírito Santo, e em volta dela o povo implorou protecção. Durante semanas se conservou este fumo, sem passar aquém do estrado, até que, no domingo seguinte ao dia em que a Igreja venera o apóstolo São Mateus, desapareceu por completo este fenómeno sem deixar vestígios, e assim começou a ter lugar aquele festejo...

Pois neste império, exactamente plantado no sítio onde calhou o milagre da extraordinária barragem à ameaça vulcânica, a festa é da graúda. Apontada para a última semana de cada Agosto - do domingo até à outra segunda-feira -, com números organizados e variados, são, ainda assim, os espontâneos cantares e as músicas dos constantes foliões, os cantadores e contadores, a camaradagem imediata e genuína que verdadeiramente aquecem a alma a esta gente aberta e aconchegam o forasteiro.
Multiplicam-se os concertos e as tocatas por filarmónicas, os bailes de rua, os bazares, as ceias. Sucedem-se as noites: a noite da música popular, a da juventude, a do fado, a da morcela e por aí fora. Pretextos para descaminhos é o que são.
Apesar de tudo, as estrelas mais brilhantes que alumiam estes saraus são ainda os velhos cantadores de "Velhas" - a música mansa (triste?) das Ilhas, mais dita do que cantada, num marralhado ao jeito dos cantares ao desafio minhotos (e, no entanto, completamente diferente), afinado, afiado, irónico e crítico, colhendo assunto no quotidiano do ilhéu e misturando-o com os enredos e desenredos das telenovelas brasileiras dos pioneiros tempos.
Conversas de pé-de-orelha, versinhos assim que emparelham a alta do custo de vida com as agruras da Escrava Isaura, Sassá Mutema ou Dona Chepa; modinhas em que se casam os amores atribulados de Seu Nacib e Gabriela com manobras de cala-te boca nos bataclãs locais; rimas que acertam as desventuras de jagunços, caboclas e bóias-frias com as aventuras dos figurões da praça açoriana. Dos entretantos aos finalmentes.
Aqui atrasado, à boleia da festa, fizeram-lhes uma homenagem, aos mais famosos cantadores de "Velhas" vivos: ao António Plácido e a mestre João Ângelo, o maior. Humildemente ouvidos os elogios da praxe e depois de largar um "Boa noute, apreciadores" que embrulhou no mesmo abraço homenageadores, cantadores da nova vaga, que fizeram questão (estavam lá, entre outros, o Mota e o Eliseu), e, minhas senhoras e meus senhores, o público em geral, mestre João Ângelo, como um alho, mangando esgravatar o repente da inspiração, mete-se num entre parênteses mais que ensaiado, desamarra-se do cigarro e, aos primeiros acordes da viola da terra, logo atira:

Agradeço aos cantadores
E também aos autores
Que fizeram esta homenagem.

Até talvez esteja certo
Porque cada um deles está perto
Daquela última viagem.

Não sei se é tarde ou cedo,
Eu cá por mim tenho medo
Daquela última viagem.

À homenagem apressada
O nosso povo vigia:
Quando a esmola é avultada
Até o cego desconfia.

P.S. - Escrevi originalmente este texto talvez em 1992 ou 1993, para publicar não sei onde. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela por acaso e só me envergonhei um bocadinho. Amanhã há mais.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Em nome do Espírito Santo 3

Com mais ou menos respeito pelos cânones litúrgicos e rigor na tradição, todas as comunidades açorianas festejam o Espírito Santo como o seu mais importante acontecimento sócio-religioso. De Santa Maria ao Corvo, cada qual à sua moda, nos Estados Unidos da América, no Canadá, no Brasil e, desde há uns poucos anos, em Lisboa e no Porto. Ninguém passa sem o seu "império", mais ou menos rico, com mais ou menos dias de programa. Consoante as posses.
Será decerto na Terceira, porém, que as festas alcançam a sua expressão mais vibrante. Ricas em especificidade, têm aqui uma maior duração, prolongando-se, em votos e promessas ao Divino, desde o Domingo de Pentecostes até aos finais do Verão. São os meses da "primavera das Ilhas". Este afã de folia bem o entendeu Vitorino Nemésio, ilhéu e terceirense:

Esta nossa ilha Terceira
Sempre foi alto lugar:
Em amores, bodos e toiros
Fica sempre a desbancar.


Ou:

Alcatra, confeitos, vinho,
Enchei o meu coração.
Que faz mais barulho ardendo
Que um tambor de folião.


Tudo começa pelo Domingo da Trindade, com o sorteio daqueles que serão os mordomos na função do ano seguinte. Aqui que ninguém nos ouve, sempre será de confidenciar que o dito sorteio está, na verdade, condicionado à partida pelos interesses de ilustres pagadores de promessas ou de notáveis da paróquia. Isto é, antes do sorteio já se sabe quem é que vai ganhar. Seja como for: o primeiro, consintamos, bafejado pelos desígnios da "sorte" recolhe na sua casa as insígnias dos Espírito Santo - a coroa e o ceptro - até à Pascoela, ponto do início dos festejos.
Na igreja da freguesia realiza-se então a coroação, cerimónia na qual a coroa é colocada na cabeça de uma criança ou adulto - o imperador -, que depois a leva em procissão a casa de um outro mordomo, que a guarda por uma semana. Mordomos, coroas, alvas rainhas em mantos magníficos, foliões, tambores, pandeiros, ferrinhos, bandeiras vermelhas, estandartes, quadros, varas, bandas de música compõem um cortejo garrido, sonoro, alegre.
Domingo após domingo renova-se a cerimónia, passando a coroa e o ceptro pelas casas dos vários mordomos aprazados, até ao dia grande da festa, em que são expostos no império. O império é uma pequena construção acapelada, ingénua, típica da arquitectura popular açoriana, e também chamada de teatro do Espírito Santo. Distingue-se pelo frontão trabalhado e colorido, em geral rematado por uma coroa e pomba simbólica. Aqui são saldadas as promessas, depositadas as esmolas, adquiridas as relíquias e entregues as oblatas que a seu tempo irão servir aos mais necessitados.
Enquanto no lar de cada qual, coroa e ceptro merecem as maiores reverências. Da família, têm garantida a melhor divisão da casa, um trono, a reza diária do terço ao Senhor Espírito Santo, é preciso que se note. E das visitas, todas, crentes ou agnósticas, o respeito e a deposição de uma esmola e de um ósculo no Divino, "aberto numa pomba de prata ao topo de uma coroa real".

P.S. - Escrevi originalmente este texto talvez em 1992 ou 1993, para publicar não sei onde. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela por acaso e só me envergonhei um bocadinho. Amanhã há mais.

Bruxedos e outros medos

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