terça-feira, 9 de abril de 2024

A minha rua era um largo. Agora é dois cruzamentos.

Foto Hernâni Von Doellinger
A minha rua era um largo. Santo Velho, como lhe chamavam os antigos, ou apenas Santo, como lhe chamávamos nós os íntimos, os da rua propriamente ditos, já a contar com o Roger Moore na televisão a preto e branco do café Peludo. Evidentemente que, para os devidos e legais efeitos, a minha rua tinha nome de data: Largo 9 de Abril, curiosamente à moda do Porto, onde 9 de Abril costuma dizer-se Arca d'Água. Eu, que até sabia da Batalha de La Lys, nunca consegui perceber o que é que a guerra de catorze a dezoito tinha a ver tão especialmente com a minha rua, e pelos vistos os doutores da Câmara também não, uma vez que de repente, não sei precisar quando, resolveram mudar-lhe o nome para Rua dos Bombeiros Voluntários. E fará um pouco mais de sentido chamar-lhe assim, embora não tenha sido por isso: na minha rua havia realmente bombeiros em quase todas as portas, e nalgumas casas eram a família inteira.

O Santo Velho era Velho por causa do Santo Novo, uns campos de milho ao lado, onde se estabeleciam o Colégio dos ricos e a Escola Industrial dos remediados, que é hoje a Casa da Cultura. Os pobres iam trabalhar para a Fábrica se tivessem sorte. Em Fafe, a Fábrica assim com maiúscula, fábrica por antonomásia, era a Fábrica do Ferro, que por acaso era de fiação e tecidos.

A minha rua era um terreiro onde jogávamos ao espeto, ao pião e à bola, o que, neste último caso, arreliava sobremaneira a Milinha Parola, que ameaçava estraçalhar-nos o esférico à tesourada bastava que lhe fizéssemos alguma tangente aos vidros. A Milinha era Parola (ou Modista, como eu gostava mais) para se distinguir da Milinha Vaqueiro, quatro números acima. As Milinhas não se davam e a minha mãe é que intermediava. Porque o Santo, ou não se chamasse assim, era sobretudo um território de paz, de famílias, de família. Os miúdos éramos todos uma irmandade, os pais e principalmente as mães às vezes é que não. Na minha rua éramos vizinhos. Éramos comunidade.

A minha rua era um largo com vista para o mundo. O mundo era então cientificamente plano, a descair para o Picotalho e para a Granja e delimitado em cima pelos tascos do Paredes e do Zé Manco, com as Grilas de um lado e as Turicas do outro, e em baixo pela Quelha, pela Poça e pela casa brasonada com capela do Senhor Doutor, onde o Senhor Abade ia dizer missa com esmolas. Pela Páscoa, era na Casa do Santo Velho que se reuniam todas as cruzes no fim tardeiro do compasso, seguindo depois para a Igreja Nova, em galhofeira procissão de sinetas exaustas e descompassadas, nas últimas. Tínhamos o poeta Zé de Castro, duas tílias e um cilindro. Tínhamos velhotas excêntricas. Tínhamos bebedolas residentes e bêbados de visita. Tínhamos casas de lavradores, desfolhadas nocturnas e matança do porco. O Santo cheirava a eido, a estrume, a engaço, a vinho purinho e a pão. A minha rua cheirava a vida. Tínhamos o Maló cantando Frei Hermano da Câmara na esquina do velho Lermas, tínhamos o ceguinho das quartas-feiras e a Mocha e a Senhora Filomena com sardinhas, fanecas e chucharros, indesmentíveis chucharros.
Tínhamos o funileiro Barnabé que era músico mas não tocava tangos, um sapateiro, um carpinteiro que foi para França, duas ou três loucas mansas e o Professor Luís, que, esse sim, tocava na guitarra eléctrica o "Apache" dos Shadows muito melhor do que os próprios, e no entanto já era careca o bom Professor, o que me confundia um bocadinho. Eu plantava-me no meio da rua a ouvi-lo, deliciado. Eu era a terceira tília, cresciam-me raízes nos pés. Tínhamos carros de bois gemendo pelas manhãs e rebanhos de cabritos nas vésperas da Senhora de Antime e da morte. Tínhamos o Chiquinho Varandas, que uma ocasião andou à luta com o macaco do Homem Mais Forte do Mundo. Tínhamos padeira, azeiteiro e mendigos ao domicílio. Os mendigos chamavam-se pobrezinhos. Tínhamos tojo estalando ao sol no passeio. Corríamos à coiada os moços das outras ruas, queimávamos o Pai das Orelheiras pelo Entrudo, cantávamos as Janeiras e os Reis, celebrávamos o Dia dos Enganos, desajudávamos nas vindimas do Sr. José e do Sr. António e nas lavras do Sr. Tónio Quim, os três bombeiros e mestres de vida, íamos ao cinema, que era nas traseiras da rua, festejávamos o Santo António de Lisboa e de Pádua, vejam lá o cosmopolitismo, encostando a cascata ao cilindro abandonado, se calhar por empreiteiro falido, do lado de lá das casas do Sr. Agostinho Cachada e do Sr. José Sacristão, gente também de primeira e bombeiros obviamente. O nosso Santo António era de arromba. Botávamos altifalantes, "Tango dos Barbudos", "Fado das Trincheiras", o "Je T'Aime Moi Non Plus", que me incomodava o andar e eu ainda não sabia porquê. Fogueteávamos a bom foguetear: eram foguetes de três-croas, foguetes envergonhados, quase peidos, se me dão licença, géu, géu, trás, trás, adeus e até ao próximo. E tínhamos girândolas e diabos-encaixados. Tudo comprado no Rates, mais ou menos no sítio onde está agora vergonhosa e envergonhadamente escondido o monumento à Justiça de Fafe. Quase tudo comprado no Rates, devo corrigir-me, em abono da verdade. O Rates era o proprietário mas também o sítio, lojinha de uma porta só, minúscula, escura, esconsa, tipo vão de escada, e nós íamos em bando para nos aproveitarmos das distracções do homem, a antipatia enfiada numa larga bata de sarja cinzenta e com manguitos negros, e metíamos ao bolso tudo o que lá coubesse. Levávamos muitos bolsos e o mais certo é que o Senhor Rates até fosse boa pessoa.

Estávamos portanto no Santo Velho, quando a minha rua era um largo de terra e tílias e nem desconfiava que um dia havia de ser uma estrada com dois cruzamentos, semáforos e tudo. Hoje a nossa cascata seria multada por estacionamento proibido. E nós morremos ignorantes e breves, desmemoriados pedra a pedra.

P.S. - Publicado aqui no dia 10 de Agosto de 2022. Mas que querem? Hoje é dia 9 de Abril, e não resisti.

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