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sábado, 21 de junho de 2025

O boleto e a merenda

Nos grandes concertos sinfónicos, o maestro sai sempre no final de cada peça para ir à casinha mudar a água às azeitonas. Depois volta para as palmas, para as vénias e para as flores, sorridente e aliviado. E os músicos? Os músicos protestam batendo nas estantes e continuam em palco de perninhas apertadas e, quem sabe, a urinarem-se por elas abaixo...

O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto, que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número nas procissões e outras arruadas, mas "ainda não ganhavam". Funcionava, em todo o caso, como um prémio, um extra. Uma espécie de consoada recebida a prestações.
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Beethoven, por exemplo, muito dado a repentinas modificações de humor, compôs algumas dezenas dessas miniaturas para piano, verdadeiras jóias, autênticas obras-primas, a mais famosa das quais será certamente "Für Elise", que toda a gente conhece. Tornando, porém, ao boleto: se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito, na vez da outra banda tocar.
Posso ter inventado esta memória, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E que se segue? Não sei porquê, mas desconfio, a minha cabeça começou então a associar boleto a merenda, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango abusivamente churrascado, moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em vinho até ao nariz.

Vinho, como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para disfarçar o pique a vinagre. Mas bebia-se. Porque beber fazia parte da arte, tinha o seu próprio solfejo. Como eu costumo dizer, e não me canso de repetir, a diferença entre uma colcheia e uma colmeia está na medida. Isto é: uma colmeia corresponde exactamente a uma semicolcheia. E deve servir-se de preferência numa seminfusa. Bem fresca...

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Europeu da Música.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

O Rates vendia ratoeiras

A montanha pariu um rato. Que miséria, realmente. Se ainda ao menos parisse um elefante! Ou dois - que incomodam muito mais...

O Rates vendia ratoeiras para ratos. Também vendia armadilhas para pardais e toupeiras. E chumbos para espingardas de pressão. E fisgas. E vendia foguetes, rabichas, estalinhos, caretas de Carnaval, calçadeiras, fio do Norte, lixa, colchetes, gaiolas para grilos e furões, anzóis e sedielas, chapéus de palha, palha de aço fina e grossa, sandálias de plástico, socos, galochas, velas, DDT, solarine, vassouras, lousas e lápis de ardósia, coadores, funis, navalhas, agulhas para desentupir máquinas a petróleo, peidos-engarrafados, garrafões e pelo menos um exemplar de todas as bugigangas e quinquilharias alguma vez inventadas no mundo inteiro, com ou sem serventia, tudo aparentemente ao monte porém segundo uma ordem que ele lá sabia, mas eu, na minha ideia de miúdo, achava era um piadão àquilo de o Rates vender ratoeiras para ratos. Para além disso, o Rates vendia rolhas. E já sabem: as palavras sempre me interessaram muito, e essa mania tola, que eu tanto estimo, felizmente não me larga - o Rates roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia...
Rates era o proprietário mas também o sítio, lojinha de uma porta só, minúscula, escura, esconsa, tipo vão de escada. O dono servia à pinta, vestia uma bata de sarja cinzenta, barriguda como ele, e usava óculos na testa e manguitos negros. O Rates era uma verdadeira instituição fafense, ali à beira de outras duas não menos notáveis instituições fafenses, o Marinho e o Miranda das famosas pataniscas, memórias infelizmente perdidas, parece que esquecidas de propósito, por vergonha, numa praça nova e consta que muito concorrida derivado à Justiça de Fafe e às vezes aos Correios.

Mas vergonha de quê, ó gente da minha terra? Devíamos era ter orgulho do nosso passado tasqueiro e similar. Fafe daquele tempo era muito avançado, não penseis o contrário. Era até muito à frente, tomara Fafe de agora! Reparai que, com mais de cinquenta anos de avanço em relação à guerra de sexos e de géneros que aí vai e à disfunção gramatical entre masculinos e femininos e assim-assim que nos arrelia as meninges, nós já praticávamos a solução redentora e neutral hoje em dia advogada pelas mentes brilhantes do politicamente correcto. Nem ratos nem ratas. Rates é que era! Rates, e tínhamos pelos menos dois: o das ratoeiras propriamente dito e o da bola, que era outro espectáculo!...

(Versão revista e aumentada, publicada originalmente no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Mundial do Rato e Dia Internacional da Ratazana Doméstica.)

quarta-feira, 2 de abril de 2025

A Esquiça com direito a efeméride

Efeméride. Quer dizer: acontecimento ou facto importante que ocorreu em determinada data. Ou por outra: celebração de um acontecimento ou de uma data importante. A agência de notícias Lusa, a maior em língua portuguesa, disponibiliza diariamente no seu serviço uma lista dos "principais acontecimentos registados", desde sempre, no dia em questão, em Portugal e no mundo inteiro. Acontecimentos tipo a descoberta da pólvora, a invenção da roda, o início da I Guerra Mundial, a chegada do homem à Lua, o 25 de Abril ou a queda do Muro de Berlim. Os jornais replicam mais ou menos esta lista, consoante o espaço disponível e a respectiva "orientação editorial", há quem lhe chama assim. 
Ora bem. Andava eu, ontem, à procura das "Efemérides Lusa" para hoje, 2 de Abril, quando, por engano na busca, coisas da idade, dou de caras, no jornal Sol, com as "Efemérides de 2 de Março" de 2021. E para esse dia, no ano de 2017, o Sol aponta, resplandecente: "A taberna do pai de Jorge Ferreira, árbitro que tinha apitado o Estoril-Benfica, foi vandalizada há 4 anos, durante a noite."
Caramba! Fafe nas "Efemérides"! Eu não fazia ideia da importância para a Humanidade da ocorrência em questão, mas talvez mereça. Merece certamente. Não, de caras, no que diz respeito à façanha pífia da claque antiportista Super Dragões, mas, por outro lado, quanto à Esquiça instituição, a taberna do pai do filho, ela, sim, um acontecimento digno de registo, sobretudo derivado às tripinhas e à vitela, que já lá não vou há que tempos, caseiras, honestas e acessíveis, merecedoras realmente de figurarem nos anais da História. E, até à próxima, daqui vai um abraço para o Armindo!

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Entre mortos e feridos, ninguém se aleijou

Vinho na pipa
couves na horta
se não nos der nada
cagamos na porta

A casa do Sr. Carlos da Cantina, na Recta, tinha no portão um aviso que dizia, mais ou menos, "Atenção! Perigo! Propriedade protegida por arma de fogo!", e aquilo metia-me muito medo, arrepiava-me, perseguia-me, não porque me passasse pela cabeça enveredar pela carreira de assaltante de residências, longe disso, caramba, a minha mãe batia-me, mas porque, na minha natural infantilidade e ignorância, eu ainda não ligava "arma de fogo" a espingarda, caçadeira, metralhadora ou pistola, mas a uma série de armadilhas explosivas e incendiárias que rebentariam sem dó nem piedade em todo o perímetro mal alguém ousasse sequer pôr o pé na vedação, por acaso alta e gradeada. Não haveria sobreviventes. Aquilo não era uma casa, era uma mansão, um cofre-forte ou quartel-general, uma imensa ratoeira, com muito terreno à frente e hei-de crer que também atrás. Eu, ai ninas, mudava sempre para o outro lado da rua quando por lá passava por algum recado.
Portanto, para quem não soubesse que o Sr. Carlos da Cantina era um homem rico, muito rico, o aviso estava lá: - Sou! E é tudo para mim. Isto é: estão a ver o Marco Paulo? No que diz respeito a fortuna, cinjamo-nos a esse departamento, o Sr. Carlos da Cantina devia ser um bocado como o Marco Paulo, mas em careca. Filhos, não posso precisar se tinha ou não, não me lembro deles se os houve, pelo menos não foram das minhas relações, o que só lhes abonaria, mas sei que tinha um afilhado, que também se chamava Carlos, noblesse oblige, creio que morava frequentemente lá no palácio e foi meu colega de escola primária, na Conde Ferreira. Era um moço porreiro, o Carlos, e o que lhe estimo é o que para mim desejo.
A Recta é a Avenida de São Jorge e o Sr. Carlos era da Cantina porque era o responsável-mor pela Cantina da Fábrica do Ferro, grande negócio, uma mina, e era por isso que era rico, muito rico, porque todos os responsáveis da Fábrica do Ferro ficaram ricos, muito ricos, só os operários, evidentemente irresponsáveis, é que ficaram pobres, muito pobres, e se, pelo Natal e por vingança, algum deles, mais atrevido ou revolucionário, resolvesse saltar o muro do shangri-la do Sr. Carlos da Cantina tendo em vista, digamos assim, orientar uma braçada de couves-galegas para a panela da consoada, morria logo ali que se fodia, feito em picado como na Guiné, e essa imagem não me saía da cabeça.
Ainda por cima, uma vez, em Passos, isto é, em Basto, nas minhas inesquecíveis férias de Verão, vi uns rapazes a construírem uma verdadeira "arma de fogo", com um pedaço de madeira, um tubo, arames, pólvora, farrapos e varetas de guarda-chuva aguçadas, que eram as balas. Chamavam àquilo "espoleta" ou, realmente, "esporeta". Era para ir à caça, e foram. Um dos miúdos ficou cego de um olho, já não me lembro se derivado a explosão desorientada ou vazado pelo projéctil - meteu-me impressão, de qualquer maneira. E eu, tornando a Fafe e ao fort knox do Sr. Carlos da Cantina, imaginava milhares de varetas de guarda-chuva a rebentarem-lhe do quintal inteiro e a assobiarem os ares, como se fosse Senhora de Antime, mas flamejantes as varetas, certeiras e mortíferas na descida, levando tudo a eito, a ferro e fogo, desde a Parefa, sejamos razoáveis, pelo menos até ao tasco do Lando da Recta, no fim da mesma, onde a estrada começa a curvar e a descer para Armil. Uma carnificina extraordinária, espectacular, nunca vista em lado algum, nem mesmo no nosso Cinema, que, não desfazendo, era de tiro e queda e de caixão à cova. E a gente a morrer ali desalmadamente, sem tempo sequer para levar a caneca aos queixos.
Ora bem. O que eu digo é o seguinte: conheci muito bem o Sr. Carlos da Cantina e a sua imensa viatura, mas sou capaz de admitir que o filho da puta do letreiro de ponta e mola me tenha indrominado a mente a respeito do homem propriamente dito, que se calhar até era uma jóia de indivíduo, eu que é estou para aqui a fazer filmes. Admito, sim senhor. Em todo o caso, e pelo sim e pelo não, nunca lhe fui cantar os Reis ou as Janeiras, no tempo deles e delas, nessa nunca me apanharam. Eu, que era um solista requisitado por vários e afamados grupos, voz de anjo já com certificação seminarística, tinha medo àquele reclame armado em parvo, já disse, ali nunca ninguém me haveria de ouvir. Cagar-lhe à porta, talvez. Mais do que isso, não.

P.S. - A quadra lá de cima era cantada, em Fafe, no final das Janeiras e dos Reis, espécie de encore caso tardasse a abertura da porta da casa e a moedinha da ordem. E, na verdade, não se dizia "cagamos" mas "caguemos", "caguemos na porta", como se ainda faláramos o velho e indesmentível galego. Era também uma reclamação, um aviso, mas da parte de fora, uma ameaça, quem sabe se alguma vez consumada...

sábado, 28 de dezembro de 2024

Os tascos e as tascas, questão de género

Aqui o género interessa. Embora ninguém me leve a sério (ou à séria, se por acaso lido em Lisboa), tenho passado a vida a pregar a respeito da irreconciliável diferença entre tasco e tasca (ou tasquinha). Prego aos peixes e prego a fundo. Mas é como já disse: tasco é tasco, sítio do povo com povo dentro, e tasca ou tasquinha é... outra coisa, coisa fina, sítio de moda. O tasco é jurássico, a tasca é cosmopolita. O tasco é rasca, a tasca é chique. A tasca é in, o tasco é out. Sei do que falo. Sou de um tempo e sou de Fafe, terra de tascos e com muito gosto. Sou dos tascos. Só para dar mais um exemplo, hoje não vou mais longe: no tasco bebe-se verde tinto e come-se bolo com sardinhas ou bacalhau frito; na tasca, bebe-se ginjinha e come-se caril de lavagante, como vi outro dia no Expresso. Percebem o que eu quero dizer?

E sim, é provável que já quase não haja tascos, que os tascos puros e duros estejam em vias de extinção, mas isso, de momento, não é para aqui chamado.

P.S. - Ainda e outra vez a propósito dos nossos tascos, os irredutíveis.

E não há nada que se beba?

Isto passou-se na Brecha, palavra de honra, em dia de bolo com sardinhas, portanto num sábado, se não me engano. E as sardinhas eram evidentemente fritas, como manda a tradição. Fafe tinha conversas assim, elevadas, necessárias, instrutivas, e era uma terra geralmente muito bem frequentada. E daquela vez em especial. Como se fosse uma anedota, juntaram-se um alemão multinacional, um americano, um inglês, um francês, um italiano, um espanhol e um português, todos gente de rebimba o malho. E diz o Albert Einstein: "A imaginação é mais importante do que o conhecimento". E diz o Mark Twain: "O homem que não lê bons livros não tem nenhuma vantagem sobre o homem que não sabe ler". E diz o Charles Dickens: "Nunca nos devemos envergonhar das nossas próprias lágrimas". E diz o Antoine Lavoisier: "Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". E diz o Leonardo da Vinci: "Do mesmo modo que o metal enferruja com a ociosidade e a água parada perde a sua pureza, assim a inércia esgota a energia da mente". E diz o Miguel de Unamuno: "Viaja-se não para encontrar o destino, mas para fugir de onde se parte". E diz o nosso Anacleto Silveira: - Não há nada que se beba?...

P.S. - Esta ode aos nossos velhos e irreplicáveis tascos, ainda recentemente republicada, foi o terceiro texto mais visto neste blogue durante o ano de 2024.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Mais um quartilho para a mesa do canto

Foto Hernâni Von Doellinger

Durante muito tempo cuidei que se chamavam assim por causa das vacas que ficavam cá fora presas pela soga às argolas da parede, ruminando uma pouca de palha ou erva, enquanto os donos enchiam a mula lá dentro. "Casa de Pasto - Bons Vinhos e Petiscos", dizia a tabuleta, geralmente de madeira, numa letra desenhada às três pancadas e desbotada pelo uso do olhar. Já lá vão tantos anos, mas juro que até hoje ainda não encontrei coisa mais linda de se ler.
Nas décadas de sessenta, setenta e um cheirinho de oitenta do século passado, a vila de Fafe era o céu na terra para os devotos dos comes e bebes. Tascos, tabernas, casas de pasto, pensões e outros arraçados de restaurante, havia-os de vários feitios e para todos os gostos e bolsos, quase porta sim, porta não. O Escondidinho, o Alberto Coveiro, a Silvina Monteiro, na Rua Montenegro, o Sanica, o Marinho, o Guarda-Fios, o Vale D'Estêvão, o Manel Bigodes, da Granja, o Quinzinho e o Tanoeiro, ambos em Santo Ovídio, a Rapa e o Ferrador, os dois na Feira Velha, o Feira Velha propriamente dito, na Rua Visconde Moreira de Rei, o Jaime Biró, da Rua de Baixo, o Toninho da Ponte do Ranha, o Neca do Hotel, o Toninho Pires, o Zeca Batata, o Magalhães da Olímpia e o Matazana, só estes são mais do que as estações de uma via-sacra e havia quem entrasse para molhar a palavra em todos eles. Religiosamente.
Mais ou menos no meu raio de acção, centrado ali no Santo Velho, havia ainda o Peludo, o Zé Manco e o Paredes, mesmo ao pé da porta, o Chupiu, as pataniscas do Miranda, a Quiterinha, ou Texas, a Adega dos Vasinhos e as mãos de ouro da Juditinha, o vinho branco e bacalhau frito (há lá melhor mata-bicho!) no Lameiras da Rua de Baixo, o bolo com sardinhas da Brecha, a Dinâmica, o insubstituível Nacor, a Peninsular, o Zé da Menina, que também fazia sandes da famosa vitela e aviava umas quartilhadas avulsas fora do horário das refeições, a Esquiça, que ainda faz das tripas coração, a Adega Popular, ou Fernando da Sede, e o Manel do Campo, onde uma vez o meu querido tio Américo, que me iniciou nestas vidas, me levou a comer um arroz de ervilhas de quebrar com fanecas fritas que estava de se lhe cantar um Te Deum.
O Manel do Campo propriamente dito era um homem imenso, o homem mais gordo do mundo aos meus olhos de miúdo. Mas, de casa para o trabalho e do trabalho para casa, ia e vinha de bicicleta e suspensórios, naquela pedalada lenta e pesada que parece que estás aqui estás a malhar, cantando a plenos pulmões, numa voz grave porém afinada, o "Marina, Marina, Marina" do Rocco Granata. Quem se lembra, que levante o braço.

Os tascos e casas de pasto de Fafe eram lugares de culto e devoção. Templos, igrejas, capelas. Instituições de serviço público, monumentos de interesse nacional, património da humanidade. Ali praticava-se a fraternidade. Ali, do doutor ao sapateiro, como então se dizia, com os queixos numa caneca que passa de mão em mão, os homens (e as mulheres, que também as havia) eram todos iguais. O vinho unia-os. Eram irmãos. O coitado que levava a caneca ao fim, mandava vir a próxima.
Bebia-se aos quartilhos, uns atrás dos outros. Depois de três ou quatro, ou cinco ou seis, consoante a disposição e a companhia, bebia-se o último, depois o da porta e depois o da sossega e depois o da saída e depois o último e depois o da porta e depois o da sossega e depois o da saída e assim sucessivamente. Beber, em Fafe, era uma história interminável...
Nenhum recém-chegado começava a beber sem antes erguer a caneca aos presentes:
- São servidos, meus senhores?
- Estamos no mesmo - respondiam, à volta.
Este cerimonial, creio, ainda se pratica.
O vinho, a qualidade do vinho, era a pedra-de-toque para o sucesso de uma casa de porta aberta. Um sucesso traidor, de ida e volta. Sabia-se que em certo sítio havia pipa nova, de pinga de estalo, um "assombre", e era a invasão. A pipa chegava às últimas e todos lhe viravam costas, mesmo antes de ela exalar o derradeiro suspiro. Os apreciadores procuravam novo poiso, onde a história de amor e traição se repetia.
Era inevitável. Claro que também se apanhavam umas cardinas. E de caixão à cova. Eu não vou dizer nomes, mas podem acreditar no seguinte: por causa das coisas, havia uns bebedores muito conhecidos e prevenidos que, consoante os casos, tinham burro, bicicleta e até motorizada de tal maneira amestrados que podiam ir para casa de olhos fechados. E iam. Os bichos, incluindo os de duas rodas, já sabiam o caminho...

Isto é a minha memória, a memória dos meus. E a minha homenagem sumária e porque sim. Os tascos da minha terra têm uma história e histórias que deviam ser contadas ao detalhe por quem as saiba procurar e contar, com o rigor e a graça que os ilustres nomes dos tasqueiros de antanho justificam e merecem. No meio de tanta treta que se edita, patrocina, apresenta e promove em Fafe, ora cá está um livrinho que até eu era capaz de ler. Enquanto espero, sentado, venha mais um quartilho para a mesa do canto, e era a continha, se faz favor...

(Se ainda vou a tempo, aqui que ninguém nos ouve nem vê: as quartas-feiras, as sextas-feiras, os sábados, os domingos, os 16 de Maio, a Senhora de Antime e o Corpo de Deus eram épocas particulares de procissão e visita pastoral obrigatória pelos inumeráveis tascos de Fafe, como se fosse preciso pretexto. Havia quem tentasse batê-los a todos, mas não conseguia, soçobrando a meio, num desgosto que só visto. As bebedeiras eram mais que as mães e realmente de se lhes tirar o chapéu - mas faziam parte. Era assim naqueles dias especiais. Quanto às segundas, terças e quintas e outras festividades mais pataqueiras, também.)

P.S. - A Lei Seca terminou, nos Estados Unidos, no dia 5 de Dezembro de 1933. A efeméride parece-me um belo pretexto para repetir este textinho e recordar, ou talvez avisar, que tasco é tasco, sítio do povo com povo dentro, e tasca ou tasquinha é... outra coisa. Vivam os tascos de Fafe! Viva o Natal!

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Os paliteiros do Miranda

Os paliteiros do Miranda eram muito jeitosos. Eram uns prismas triangulares direitos ou rectos feitos em cartão coberto por papel colorido com desenhos e dizeres e um furinho na ponta. O prisma é um ponto de vista mas também um poliedro. Os poliedros são sólidos geométricos limitados por faces que são polígonos planos. O prisma triangular é um poliedro chamado prisma triangular porque as suas bases são triângulos. Tem seis vértices, nove arestas, cinco faces e duas bases, as tais. E é considerado direito ou recto porque os seus lados são rectângulos, de outro modo correria o risco de ser oblíquo. A especialidade da casa eram, no entanto, as pataniscas. As famosas pataniscas do Miranda.

P.S. - Hoje é Dia Europeu da Alimentação e da Cozinha Saudáveis.

domingo, 15 de setembro de 2024

Em memória da burra do Reigrilo

Foto Tarrenego!
Vou directo ao assunto: a corrida de jericos faz falta. Faz. Uns 16 de Maio sem corrida de jumentos é como orelheira de porco sem sal ou como, não vamos mais longe, o lago do Jardim do Calvário sem crocodilos. Quer-se dizer, não prestam para nada. Mas ainda no outro dia olhei para os destaques do programa das nossas Feiras Francas, felizmente de regresso à vida após o pico da pandemia, e o que vi anunciado foi a "corrida de cavalo a passo-travado", assim chamada, com hífen e tudo. Apenasmente e, ainda por cima, prova desportiva estigmatizada por essa denominação assaz amaricada, "passo-travado" com hífen, só faltava mesmo dizer-se que as cavalgaduras também vão de minissaia e salto alto. Mas burros é que nada, e logo nos tempos que correm e em Fafe. Parece impossível. Quer-se dizer: vim-me embora, e agora não há mais asnos na terra, é isso?...
Lembro-me muito bem como era. Havia a corrida de cavalos, sim senhor, coisa amadora, com montadores e montadas da terra e arredores, que mediam forças por entre um mar de gente cheia de entusiasmo, chapéus e vinho, na mais nobre rua da vila, o empedrado - ou pavê, como dizem agora os especialistas - onde costuma terminar a etapa da Volta a Portugal em Bicicleta. Partiam em frente ao Café Império e iam dar a volta na Cafelândia, ainda não havia rotunda nem banco, com as ferraduras novas a chisparem por todos os lados e alguns animais, de travões bloqueados, a espargatarem contra vontade para um 10 de nota artística nos Jogos Olímpicos e os donos irremediavelmente de focinho no chão. Ao Império regressavam apenas três ou quatro conjuntos completos e o pódio era discutido já depois de cortada a meta, à força de varapau, ameaças de tiros e polícia, com a multidão a tomar diferentes partidos, de cabeça e chapéus perdidos, mortinha por também molhar a sopa. Isto eram as pessoas, os cavalos não se metiam. Mesmo os cavalos que tinham terminado a prova sozinhos, apesar de um tudo-nada desorientados, mantinham o fair play, viravam as costas à confusão e iam procurar os donos mercurocromados para pedirem desculpa pelo mau jeito. Quanto ao júri, ponderava criteriosa e responsavelmente todos os argumentos em discussão, sobretudo os argumentos que metiam pistola, e depois entregava a taça às primeiras mãos que a agarrassem.
O melhor vinha a seguir. Era a corrida de burros, que não era bem uma corrida, porque os burros recusavam-se terminantemente a correr. Davam uns passos, nem sempre no sentido correcto, e se calhar às vezes não havia vencedor. Mas o povo ria-se. É preciso que se note, porém, que os burros portavam-se assim não por serem burros mas por serem ignorantes. Na verdade, naquele tempo eles ainda não sabiam do estudo da Universidade de Londres que aqui atrasado descobriu que os burros não são animais estúpidos nem teimosos. Serão surdos ou não compreendem inglês, quando muito, mas agora já sou eu a extrapolar.
O Reigrilo tinha uma burra que se chamava a burra do Reigrilo. O Reigrilo era tão teimoso como a burra, portuguesa e analfabeta, mas bebia muito mais. Eu nunca na vida vi o Reigrilo sóbrio. A sorte dele, quando saía do tasco do Paredes em adiantado estado de fermentação, era exactamente a burra, que o levava a casa, submissa e em piloto automático, debaixo de um chorrilho de insultos e chibatadas absolutamente imerecidas. Eu tinha medo do vinho do Reigrilo e a burra parecia que também.
Creio não cometer nenhum erro histórico se afirmar que a burra do Reigrilo só fazia frente ao dono pelos "16 de Maio", na corrida que nunca era. O Reigrilo, altamente decilitrado, aparecia sempre, para incómodo da organização e gáudio da populaça. Podiam dar a partida quantas vezes quisessem: a burra do Reigrilo não saía do sítio, apesar das bordoadas impiedosas que apanhava, e se se mexia era apenas para deitar o dono de cangalhas, uma e outra vez, numa vingança anual e certamente bem amadurecida, ali mesmo à frente de todos, onde a humilhação do homem podia ser maior.

Pois agora nada. E nem sei se os camarários doutores da mula ruça acabaram com aquilo de propósito para enxotar dali os nossos ciganos, os bons e honrados ciganos de Fafe que também marcavam o ponto com os seus burros atletas. Não sei, palavra de honra que não sei, mas veio-me agora à cabeça essa terrível dúvida. E tenho a certeza de que a malta nova havia de se divertir à brava com a corrida de asnos. Mas ao que eu vinha: ignoro o que se passa com Fafe, que lhe deu de repente para inventar tradições, como se as não tivesse, verdadeiras, antigas, genuínas e únicas. Fafe perdeu o sentido. Fafe da segunda década do século XXI tem uma linha de montagem de "novas" tradições, trabalha a todo o vapor, borbulha de "cosmopolitismo", e se calhar está a fazer bem, embora o povo não saiba ou não faça caso. Eu vejo as "iniciativas", eu vejo as fotografias oficiais e assassinas, e na plateia - apenas duas ou três filas mal vestidas, as filas - estão lá só e sempre os quinze do costume, bem vestidos. Então onde está Fafe?
Por outro lado, dá-me pena que a minha terra (ou quem manda na minha terra) tenha vergonha da Justiça de Fafe. Dá-me pena que Fafe tenha vergonha dos seus burros. Como se alguém que de momento pode e manda quisesse varrer para debaixo do tapete de pelúcia a memória (e a história) mais terra-a-terra de Fafe, "para não parecer mal" aos senhores de fora e para parecer bem na televisão. Enfim, uma jericada...

P.S. - Publicado aqui originalmente no dia 11 de Agosto de 2022 e replicado a respeito dos últimos "16 de Maio". Hoje, há quem diga, é Dia Mundial dos Cavaleiros. Entretanto, a Justiça de Fafe foi finalmente indultada pela inteligência local e, do oito ao oitenta, é agora a nova sala de visitas da cidade, é por lá que tudo passa, é lá que tudo se passa, a estátua apadrinha tudo e todos, e eu só quero aplaudir.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Fafe e zumba, uma velha tradição

Fafe e o zumba são uma história que vem de longe, secular. Se há tradição em Fafe, para além da Justiça de Fafe, essa tradição é o zumba. Como se diz em Fafe por tudo e por nada, o zumba é icónico. E dou os parabéns ao Município por tudo o que fez e faz para manter viva esta tão entranhada e ancestral relação, Fafe-zumba, zumba-Fafe, trazendo-a para a rua, universalizando-a e, sinal dos tempos, bissexualizando-a. Antigamente era o zumba na caneca, amplamente praticado no segredo dos tascos sobretudo por homens, hoje em dia é o zumba colombiano levado a efeito sobretudo por mulheres que se abanam alegremente em plena luz do dia, no meio da cidade. Os velhos resistentes do zumba na caneca é que não são tolos, disfarçam, camuflam-se com as paredes, mironam, espreitam, ficam na bancada de olhos esbugalhados, a bater o pezinho e a fazer contas de cabeça, mas sem perder pitada. E isso, é preciso que se diga, é de homem!

sábado, 11 de novembro de 2023

Fafe cheirava a sabão amarelo

Do que eu gostava mais em Fafe, do que eu realmente sinto falta? Do cheiro. Fafe tinha o seu próprio cheiro, distintivo, memorial. Fafe cheirava a esmero, cheirava a limpo, a lavado. Fafe cheirava a sabão amarelo. E era isto o ano inteiro, mais ainda na semana da Páscoa, quando as nossas mães asseavam a casa especialmente para receber o Senhor. Fafe, em boa verdade, era uma acolhedora mistura de cheiros bons, um bouquet requintado, mas o honesto odor do sabão amarelo pairava sobre tudo e sobre todos. Sobretudo.
Parecia penitência, castigo. As nossas mães, dobradas horas a fio com os desgraçados joelhos enfiados naquele caixote de madeira a que uns chamam tacoila e outros chamam cunco ou outro nome qualquer, conforme a região, em todo o caso instrumento de suplício, ou então com um simples farrapo servindo de rodilha ou joelheira, as nossas mães, dizia, lavando, lavando, esfregando, esfregando, água, sabão amarelo e palha de aço, e depois chupar e secar, e depois, e só depois, talvez no dia seguinte, outra vez o castigo, outra vez a penitência, a cera regrada, o lustro puxado e repuxado, até que o soalho brilhasse como um espelho, como o sol. E ficava o cheiro. Aleluia!
De resto, os domingos em Fafe cheiravam que era uma categoria. Os domingos em geral. Cheiravam a desodorizante, a perfume, a brilhantina, a laca, a graxa, a sebo e a naftalina - tudo misturado, na missa das onze, com a Igreja Nova à pinha, dava uma certa vontade de gomitar, não vou mentir -, mas o melhor era o que se passava entretanto nas ruas da vila antiga, logo desde as primeiras horas da manhã, aquele extraordinário aviso dos velhos fogões de lenha, tão de confiança, tão competentes, tão autónomos, assando vitela tenra e dourada com todos os vagares, com todos os matadores, o cheiro e o fumo magníficos escapulindo-se pela chaminé carbonizada ou pelo telhado mal aparelhado e alastrando de porta em porta, como maldição de filme de mortos-vivos de hoje em dia, mas em bendição, que outros eram os tempos, graças a Deus.
Fafe cheirava. Embora hoje possa não parecer, Fafe era uma povoação rural, íntima, pacata, território de lavradores teimosos e polivalentes - tirante o Largo, isto é, o por Cima e o por Baixo da Arcada, e para além da Fábrica do Ferro e do Bugio, que eram outras vidas. Só por exemplo, toda aquela zona envolvente da Torralta, onde agora estão o bairro tão bem tratado, as várias escolas, o Pavilhão Municipal, as vivendas, as estradas e avenidas, os semáforos, as rotundas, a Biblioteca, os Bombeiros, a Feira, a Central de Camionagem e por aí fora, aquilo era tudo campos, terrenos agrícolas particularmente fecundos, os campos do Santo, Granja e São Gemil, campos, caminhos, quelhas, noras e minas, levadas e poças, com muito milho, fruta e umas quantas pipas de vinho. Era zona de carros de bois, aquela, e actualmente abunda de automóveis e tem o chão pintado a furta-cores. Fafe realmente cheirava. E à semana metia a cotio o cheiro a eido, a estrume, a lavadura, a gado, a galinheiro, a couves cegadas, a erva acabada de cortar, a terra seca acabada de regar, a medas húmidas, a chuva era farta e cheirava muito bem em Fafe.
Fafe tinha o cheiro doce das glicínias, cheirava a alfádega, a cidreira, a amoras, a tílias, a uvas americanas, aos pinheiros de São Jorge e Castelhão, a castanhas assadas à beira do tasco do Zé Manco, ao azeite do Moniz e ao bacalhau frito da Dolorzinhas no tasco do Paredes. Cheirava a maçãs guardadas nos barrotes secretos dos tectos, cheirava a geleia e a marmelada, a vinho novo, a aletria quente, a canela. Fafe cheirava todo o ano a Natal. E cheirava a piche derretido ao sol das tardadas de Verão, e cheirava a cano de escape de motorizadas sem cano de escape na noite atolambada da passagem de ano. Fafe cheirava à aguardente e ao engaço do fantástico alambique do Cinema, copiosamente manobrado pelo Sr. Zé dos Alhos, parece que ainda o estou a ver e ouvir. A cheirar.
Fafe cheirava a roupa a corar. Cheirava ao avental sempre lavado da minha mãe, que cheirava tão bem a sabão, a segurança e a felicidade, e eu, criança, pequenito, abraçava-me a ele, a ela, com quanta força tinha, e fechava os olhos à espera que o tempo à minha volta não passasse. É. Fafe cheirava à minha mãe.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Piratas de meia-estação

Por outro lado. Corsários são, como se sabe, calças curtas e geralmente ridículas que vão um pouco abaixo dos joelhos. E podem ser chamados também bermudas, sítio de irrevogáveis desaparecimentos, porque isto realmente anda tudo ligado, e daí vem a história do triângulo.
O assunto, como de costume, não era pacífico. Prestava-se, aliás, a discussões mais ou menos geométricas e atlânticas. Com efeito, só o Equilátero acreditava no Triângulo das Bermudas. Era parte interessada, refira-se. O Isósceles e o Escaleno faziam pouco, gozavam o patau, partiam o coco a rir. Sobretudo por causa daquela vestimenta ridícula que não chega a ser calças mas sobeja para calções...

O Capitão Gancho e o Capitão Iglo

Discutia-se se o Capitão Gancho era pirata ou corsário. Em Fafe discutia-se tudo. Conversa vai, conversa vem, uns que corsário, outros que pirata, alguns até que contrabandista, moina, ladrão, gatuno, filhodaputa, ó corno!, és pouco boi és!, como num normal jogo de futebol, mas não havia maneira de se chegar a uma conclusão ou, vá lá, como remedeio, a um consenso - e era precisa uma maioria qualificada, isto é: dois terços mais pelo menos uma via-sacra. O animado debate mudou bruscamente de rumo quando alguém recém-entrado a bordo alvitrou que o Capitão Gancho se chamava Capitão Gancho para não ser confundido com o Capitão Iglo dos douradinhos mas sobretudo porque comandava o seu navio, o Jolly Roger, com mão de ferro e vencia o Capitão Iglo quantas vezes lhe apetecesse, aliás como o Super-Homem também é mais forte do que Thor, isso então nem se discute. Aprovado por unanimidade, e ali se fez história.
Bebia-se verde tinto, mansamente, e era uma rica pinga. E ainda dizem que nos tascos não se aprende nada...

P.S. - Hoje é Dia Internacional de Falar Como Um Pirata. Aaarrr!...

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Molhando a palheta

Vamos então ao boleto. O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos, uma espécie de gratificação, provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número na procissão mas "ainda não ganhavam".
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito.
Posso ter inventado esta memória que se segue, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E o que acontece? Não sei porquê (sei, sei!), a minha cabeça começou então a associar boleto a merenda, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango abusivamente churrascado, moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em vinho até ao nariz.

Vinho, que é como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para lhe disfarçar o pique a vinagre. Mas bebia-se. Porque beber fazia parte da arte, e tinha o seu próprio solfejo, um tempo de aprendizagem...

terça-feira, 22 de agosto de 2023

E o Daniel era o nosso capitão

A vila de Fafe fervilhava de tascos na segunda metade do século passado. Eram porta sim, porta não, provavelmente caso ímpar a nível mundial, coisa talvez digna do Guinness - casinos e hotéis em Las Vegas, tascos e tascas em Fafe. Tascos, tabernas, casas de pasto e quatro ou cinco pensões-restaurantes do melhor que existia em Portugal para quem percebesse realmente do assunto, porque em Fafe comia-se e come-se bem e bom. E quanto a beber, então nem se fala. À mesa, portanto, nada a apontar - antes pelo contrário. Já no que diz respeito à cama, isto é, a locais para pernoita, naquele tempo estávamos muito mal servidos. Se aparecesse assim algum acontecimento em grande, fora do ramerrame quotidiano, um evento que trouxesse gente de fora com intenção ou obrigação de ficar por cá de um dia para o outro, não havia onde meter o povo todo, a não ser que se inventasse. E inventava-se.
Com a Volta a Portugal em Bicicleta tinha de ser. Antigamente as etapas da Volta costumavam começar na mesma terra onde tinha terminado a etapa do dia anterior, e Fafe fazia parte do roteiro. Os fafenses recebiam muito bem os ciclistas e toda a caravana de uma forma geral. Os prémios eram muitos e oferecidos pelo comércio e pela indústria locais. Taças, medalhas, electrodomésticos, bicicletas, cortes de tecido, cortes de cabelo, peças de roupa e de louça, chapéus de palha, guarda-chuvas, produtos de higiene e limpeza, canetas, envelopes com dinheiro e múltiplas inutilidades, que passavam para aí uma semana em exibição na montra da Electra, se não estou em erro. Em Fafe, se um ciclista da Volta não chegasse, vamos lá, nos dez primeiros lugares, então mais valia cortar a meta em último. O último ciclista a chegar a Fafe ganhava uma magnífica candeia novinha em folha com uma certa quantia metida lá dentro. E os meus olhos ficavam-se todos os anos na candeia tão brilhante e propícia a sonhos. Se eu fosse ciclista, palavra de honra, havia de dar sempre o máximo para ser o último!...
Os prémios eram entregues aos responsáveis das equipas numa aprazível sessão nocturna, no Jardim do Calvário, porventura com um ou outro "apontamento musical" e decerto garbosamente apresentada pelo Landinho Bacalhau ou pelo Zé Fala-Barato, ou se calhar por ambos, com umas larachas pelo meio, não devo estar a dizer asneira nenhuma. 
E onde ficavam a dormir os ciclistas? Algumas equipas, mais exigentes e endinheiradas, desciam até Guimarães, gabo-lhes o gosto. Em Fafe, esgotadas as poucas camas da hotelaria convencional, e aqui é que entra a invenção, instalações mais ou menos públicas eram requisitadas e, se necessário, transformadas em dormitórios para acolher atletas e acompanhantes. Por exemplo, a camarata dos Bombeiros, na Rua José Cardoso Vieira de Castro, serviu de pouso, em anos diferentes, às equipas do Baixo da Banheira e do Académico do Porto, do nosso Chico Marinho. E eu andando por lá.
Em 1967, os belgas da Flandria vieram à Volta a Portugal e Fafe instalou-os no palacete ao lado dos Bombeiros, em frente aos Medons, e que já serviu de museu da imprensa mas na altura não servia para nada. Era um casarão abandonado, uma espécie de casa assombrada, decadente inclusive em sentido literal, com o espaço exterior, dentro dos portões e do alto gradeamento, entusiasticamente entregue ao capim descontrolado, à folhagem podre e fedorenta e às silvas amazónicas que assustavam. Não era normal os estrangeiros virem correr à nossa Volta, e decerto por isso a mordomia. O interior do edifício terá sido sacudido e arejado, despejado de ratos e limpo das teias de aranha, só foi preciso meter camas, trigo limpo, farinha amparo.
A Volta a Portugal acabou e nós tínhamos de ir lá dentro, ao palacete, ver como é que aquilo era. Nós, quero dizer, o nosso grupo de miúdos, ali do Santo Velho e das redondezas, comandados pelo intrépido Daniel Carcereiro, que era apenas um pouco mais velho mas tinha um enorme carisma e sentido de liderança, embora eu na altura não soubesse o que isso queria dizer e nem sequer conhecesse estas palavras.

O Daniel, é preciso que que note, chamava-se Carcereiro por causa do pai, que era o responsável pela cadeia de Fafe. A cadeia mesmo, o velho edifício granítico com grossas grades de ferro quase ao nível do chão através das quais os presos conversavam com familiares, amigos ou simples passantes, com espaço até para enfiarem as pernas cá para fora, para a rua, as pernas em liberdade, balançando-se, eventualmente também as mãos e o nariz, às vezes as orelhas, uma de cada vez, mas o resto do corpo não. Senão, nem era cadeia nem era nada.
O sítio é exactamente o mesmo onde está hoje o Palácio da Justiça, inaugurado a 13 de Outubro de 1963, dia em que também abriu portas a nova cadeia comarcã, com entrada pela actual Rua Prof. Manuel José da Costa, nas traseiras do estádio e junto à piscina municipal. E a família do Daniel mudou-se para lá também. O edifício já serviu entretanto como posto da GNR e agora não sei para que serve, mas essa parte sabem vocês muito melhor do que eu.

Portanto, deixámos passar uns dias, para disfarçar, e invadimos o palacete. O Daniel tomava conta de nós, nunca permitiria que algo de mal nos acontecesse. O Daniel tinha isto, tão singular: apesar de aventureiro, brigão e valente, desafiando sem medo os maiores do que ele, fossem quantos fossem, era de uma inesperada e desarmante bondade em relação aos miúdos mais novos. Ele era o nosso capitão e o nosso protector. Sempre atento e cuidadoso. E a invasão foi um sucesso.
Fizemos trinta por uma linha, deixámos tudo em pantanas, corremos todas as divisões de todos os andares até à mansarda, subindo e descendo escadas que faziam lembrar castelos, destruímos almofadas em guerras sem quartel, desengonçámos irremediavelmente camas e divãs, inutilizámos lençóis para fazermos de fantasmas, tudo a uma velocidade alucinante, com milhares de trambolhões à mistura, mas felizmente sem vítimas a lamentar. Na verdade, não foi tanto assim, mas assim contado tem muito mais piada. E a invasão foi  mesmo um sucesso.
Ainda por cima encontrámos espalhados pelo chão imundo restos da alimentação dos ciclistas. Cubos de açúcar, quadradinhos de marmelada e outros doces e geleias, muito bem cobertos por milhões de formigas, que desbaratámos organicamente, isto é, ao pontapé e chibatada, seguindo as rigorosas orientações higiossanitárias do Daniel, que cheirou aquilo e decidiu, dando o exemplo: - Ainda está bom. Bora lá comer, que o que não mata, engorda! - E não podia ser mais sábio. Quase tão sábio como Nietzsche, que dizia "O que não nos mata torna-nos mais fortes", isto certamente depois de ter passado por Fafe.

O Daniel foi um razoável jogador de futebol, dos de barba rija, porém fez carreira como oficial de justiça, estou em dizer. Não convivemos há mais de trinta ou talvez quarenta anos, mas nunca me desapontou, isso é garantido. Estou-lhe grato, tenho por ele uma admiração antiga, e nunca lho disse. Confidenciam-me que o Daniel Carcereiro continua como era, um ser humano especial, com o seu feitio, cuidado!, mas disponível e leal, fiável, generoso, atento às injustiças e presente aos amigos, ainda e sempre sportinguista, o seu ponto de imperfeição, e possivelmente um pouco mais manso. Enfim, um comandante na reforma.
Resumindo e concluindo: Tony Houbrechts, o belga da Flandria, ganhou a Volta a Portugal em Bicicleta de 1967. E eu comi-lhe o almoço.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Mandaram-me dar vinho ao Saddam

Foto Hernâni Von Doellinger
Isto foi para aí em 2002, portanto um ano antes da invasão do Iraque, e aconteceu quando chegou a Portugal a inesperada porém impactante notícia de que Saddam Hussein se perdia de amores pelo nosso Mateus Rosé. O meu jornal mandou-me logo escrever uma artigalhada sobre o momentoso assunto e comprar uma caixa do mais famoso vinho português para oferecer, "com um cartãozinho simpático", ao ditador de Bagdade. Era só telefonar à junta de freguesia local para saber o endereço certo e expedir de avião desarmado lá para o palácio das mil e uma noites. Perante a minha perplexidade telefónica a propósito da segunda parte do serviço, Lisboa explicou-me o jornalístico intuito da genial ideia, sufocando-me à nascença todos os meus potenciais mas: "Se o gajo nos responder depois a agradecer, é o máximo, dá uma capa fantástica. Mas se não disser nada... também dá uma coisa gira. Então vá..."
E eu fui. Comprei o vinho e escrevi o texto. Não o cartão. Um texto pequeno que andava à volta disto: o Saddam gosta de Mateus Rosé. Era capaz de ter também alguma graça, já não me lembro, mas quando digo andar à volta é mesmo andar à volta, fazer chouriço, meter palha, usar e abusar da técnica de composição musical da variação (e fuga), porque a "notícia" não tinha mais nada para dizer, era oca por dentro. E foi manchete no dia seguinte.

(Permitam-me abrir aqui um parêntese pedagógico, para proteger os caros leitores da tentação de conclusões precipitadas e injustas acerca do meu jornal. Deixem-me esclarecer o seguinte: num certo sentido, o 24horas foi o precursor do jornalismo que hoje se faz em Portugal - um jornalismo de títulos, colorido e imaginativo, a que, para ser perfeito, só falta o pequeno pormenor da informação, isto é, as noticiazinhas. Hoje os jornais portugueses são todos iguais ao 24horas. Uma diferença apenas os separa: o 24horas era, nos seus bons tempos, o melhor pior jornal do País, era um mau jornal muito bem feito. E ficava barato ao dono. Depois veio a rapaziada, tomou conta e fodeu tudo.)

Meti a caixa de vinho num armário da redacção. Eu já tinha aprendido que as geniais ideias vindas de Lisboa padeciam de tesão breve e alzheimer. Regra geral, no dia seguinte os nossos criativos e bem-intencionados chefes já não se lembravam das figuras tristes que nos tinham mandado fazer no dia anterior. E mandavam-nos fazer outras. Assim foi.
Em Dezembro de 2003 apanharam Saddam e eu pensei: "Agora é que era de lhe mandar o Rosé, para lhe animar o Natal na prisão". E deixei-me estar. O ex-presidente iraquiano foi executado três anos depois, como se viu abjectamente no YouTube, e as garrafas lá continuaram no armário, até ao dia em que Lisboa veio ao Porto anunciar que o Porto ia fechar para salvar o jornal. Isto é, para salvar Lisboa. Começava o ano de 2009 e desfizeram-se de nós. Eu trouxe para casa duas garrafas do Mateus Rosé de Saddam Hussein.

(Se fosse hoje, os gostos líquidos de Saddam andariam talvez mais pelo vinho azul da Casal Mendes, mas também não se poderia esperar melhor critério de quem certamente nunca pôs os pés no Nacor e às tantas nem estaria informado a respeito da rota dos tascos de Fafe.)

Enofilias e folclore à parte, o 24horas acabou por não se safar, mas "Lisboa" sim e é o que eu lhes estimo. Os alegados responsáveis do ex-jornal estão agora a enganar noutro lugar. As duas garrafas de Mateus Rosé ainda cá estão, a fazerem de pai e mãe de uma outra, de aguardente do Salazar, parece que engarrafada pelo próprio, como me garantiu, no acto da oferta em Santa Comba Dão, o sobrinho-neto do nosso estimado ditador. Estão bem umas para as outras, as garrafas. E os outros também.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Aqui há gato

"Aqui há gato", avisava o papel colado na janela escangalhada da velha casa de pasto. Isto às segundas. Às quartas eram iscas e às sextas são caracóis.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...