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sábado, 14 de setembro de 2024
O bom ladrão
Fafe, algures pelos finais da década de sessenta do século passado. Na sala de aula da agora desaparecida Escola da Feira Velha, no meio da parede, por cima do quadro negro, um Cristo crucificado. Carmona à direita da cruz, Salazar ironicamente à esquerda. Eu, que naquela altura já tinha umas luzes bíblicas, nunca percebi qual destes dois era o bom ladrão...
P.S. - Hoje é Dia da Santa Cruz.
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segunda-feira, 15 de julho de 2024
Lágrimas parvas por Marcelo
Junho de 1973. De visita a Londres, Marcelo é recebido por uma manifestação de protesto contra a presença de Portugal nas então chamadas províncias ultramarinas e, de uma forma geral, contra a política africana do Governo português. "Portugal no more massacres. Get out of Africa now!", lê-se em alguns cartazes de más-vindas. Eu nem queria acreditar. Fiquei de todo. Os meus olhos, virgens e patrióticos como eu inteiro, viam a preto-e-branco o que se passava no televisor do bar dos Bombeiros de Fafe, que eu tinha só para mim naquela clandestina hora do meio-dia, e a revolta transformava-se-me inesperadamente em choro. Chorei de raiva, dorido pelo Senhor Presidente do Conselho. Como se atreviam aqueles gajos?! Que vergonha! Que falta de respeito! Angola é nossa e ponto final, ainda que o caso fosse particularmente Moçambique.
P.S. - Marcelo Caetano iniciou a sua visita de três dias a Londres no dia 15 de Julho de 1973, faz hoje anos. Durante a sua presença na capital inglesa, manifestações constantes condenaram o massacre de Wiriamu, em Moçambique, revelado pelo jornal britânico Times.
No regresso a Lisboa, Marcelo foi graças a Deus surpreendido por uma manifestação espontânea muito bem organizada, uma manifestação a bem da Nação, de desagravo pessoal e de apoio às políticas africanas do Governo, uma manifestação contra as manifestações de Londres, mas com muito mais povo, muitas mais camionetas, muitos mais letreiros, muitos mais garrafões de vinho e salpicões e muitos mais Vivas!, toma lá ò camone a ver se gostas...
De certeza que foi gente de Queimadela. Queimadela estava sempre presente! "Não esperava esta manifestação, mas compreendo-a", dizia Marcelo, modestíssimo, do alto da varanda do Palácio de São Bento, rodeado pelos pândegos mandadores de Vivas!, assim à moda do nosso Velhinho, o Castro Mendes de Travassós, o trabalhista fafense, "ide por esses tascos abaixo, comei, bebei e pagai". E depois Marcelo falou de política, mas isso já não me interessava. Eu estava outra vez comovido, ranhoso, mas agora de auto-satisfação nacionalista, de respeitoso respeito a Sua Excelência. Quem me dera estar lá também com o garrafão. Ainda por cima eu nunca tinha ido a Lisboa e o vinho, certamente como a viagem, devia ser também de graça. Chorei, pois claro que chorei, e as lágrimas já me toldavam o preto-e-branco do aparelho, mas saí dali de alma lavada e, se querem que lhes diga (e ainda que não queiram), também eu algo desagravado. E então ri-me. Junho de 1973. O Marcelo era Caetano e eu, burro como uma porta, pensando que sabia tudo, ainda não sabia nada.
De certeza que foi gente de Queimadela. Queimadela estava sempre presente! "Não esperava esta manifestação, mas compreendo-a", dizia Marcelo, modestíssimo, do alto da varanda do Palácio de São Bento, rodeado pelos pândegos mandadores de Vivas!, assim à moda do nosso Velhinho, o Castro Mendes de Travassós, o trabalhista fafense, "ide por esses tascos abaixo, comei, bebei e pagai". E depois Marcelo falou de política, mas isso já não me interessava. Eu estava outra vez comovido, ranhoso, mas agora de auto-satisfação nacionalista, de respeitoso respeito a Sua Excelência. Quem me dera estar lá também com o garrafão. Ainda por cima eu nunca tinha ido a Lisboa e o vinho, certamente como a viagem, devia ser também de graça. Chorei, pois claro que chorei, e as lágrimas já me toldavam o preto-e-branco do aparelho, mas saí dali de alma lavada e, se querem que lhes diga (e ainda que não queiram), também eu algo desagravado. E então ri-me. Junho de 1973. O Marcelo era Caetano e eu, burro como uma porta, pensando que sabia tudo, ainda não sabia nada.
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terça-feira, 9 de julho de 2024
O trabalhista fafense
Sei de um fafense antigo que, se fosse vivo, andaria agora por aí todo contente a festejar de porta em porta a vitória dos Trabalhistas ingleses. O famoso Castro Mendes de Travassós, o Velhinho, figura incontornável e carismática do antes e após 25 de Abril, desses intensos, gloriosos e dramáticos dias fafenses, era o nosso "trabalhista" de estimação e gritava "ganhámos!", "ganhámos!" sempre que o Labour vencia as eleições ou formava governo no Reino Unido.
O nosso herói era "trabalhista" porque, sendo salazarista, era trabalhador e pelos trabalhadores, isto é, pelo corporativismo fascista, o raciocínio pode parecer demasiado elaborado ou, por outro lado, simplista em excesso, mas não é, nem uma coisa nem outra. Vejamos: Trabalhistas portanto trabalhadores, viva Salazar!, e não era preciso ir mais longe.
A evangélica frase, na hora dos festejos, "Ide por esses tascos abaixo, comei, bebei e... pagai!" é historicamente atribuída a este extraordinário Castro Mendes, que eu ainda contactei no Liceu de Braga, onde ele era funcionário, se não estou em erro, e aliás acamaradei no seminário com um dos seus filhos.
O Velhinho era um figurão. Irredutível nas suas convicções, fiel aos seus inegociáveis princípios, toda a vida foi da situação, fosse qual fosse a situação. Ganhasse quem ganhasse, ele ganhava sempre, estava sempre ao lado dos vencedores. Era, a esse propósito, um intrépido praticante de varandismo e inflamado mandador de Vivas! Já no tempo da democracia, cheguei a vê-lo actuar na varanda do PS, em Fafe. Para além disso, sabia muito bem o que fazia e porquê, tinha um enorme sentido de humor e eu achava-lhe um piadão.
O varandista Castro Mendes era irmão do professor António Castro Mendes, considerado uma das maiores autoridades nacionais no ensino do Português, Latim, Grego ou Aramaico. Eram muito parecidos fisicamente, na marotice e até na tessitura vocal, abrangente, metálica, megafónica. Antigo padre e pregador afamado, o Dr. Castro Mendes foi meu mestre e amigo no Liceu de Guimarães. Falava, cheio de orgulho, do seu "melhor aluno de sempre", que não era eu, obviamente, eu era uma nódoa a Latim, mas um "rapazinho" também de Fafe chamado Luís Marques Mendes e a quem o experimentado professor, há quase 50 anos, augurava um grande futuro, apontando-o aos lugares mais altos da Nação. E estava certo.
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segunda-feira, 8 de maio de 2023
Adiante vai o burro
Hoje é Dia Internacional do Burro e portanto é um dia muito importante e que nos envolve a todos em geral e aos fafenses em particular. Sobre burros, aqui no Fafismos, eu já escrevi, nomeadamente, a respeito de Bento XVI e do presépio, a propósito de Salazar e da Senhora Dona Laura Summavielle, recordando a burra do Reigrilo e os 16 de Maio, que por acaso começam já no próximo sábado, calha bem, e puxando ao assunto as orelhas propriamente ditas. Poupando-me e poupando-vos a repetições, recomendo, ainda assim, uma refrescadela...
segunda-feira, 1 de maio de 2023
Quando o 1.º de Maio era no dia 28
Antigamente o 1.º de Maio era no dia 28 do mesmo. Quando digo antigamente quero dizer antes do 25 de Abril de 1974, que já é antigamente que chegue - que o confirmem os deputados da nação, cujos mais de metade decerto ainda não tinham nascido quando a coisa se deu, e isso nem é defeito. Um por exemplo: o estádio do SC Braga na Ponte, antes da extraordinária Pedreira do arquitecto Souto Moura, chamava-se Estádio 28 de Maio. E chamava-se assim por questões políticas e não por ordem de calendário litúrgico, rito bracarense. Chamava-se 28 de Maio glorificando o golpe militar que naquela data, em 1926, derrubou a Primeira República e abriu caminho à ditadura do Estado Novo. De corte fascista, o Estádio 28 de Maio, que ainda está de pé e funciona pelo menos para o futebol feminino, tentava aparentar-se e rivalizar com o Estádio Nacional, no Jamor, ou em Oeiras, consoante a dor de cotovelo de cada qual, e foi inaugurado, em 1950, por Salazar e Carmona, que assim dito até parecem uma alegre sociedade de costureiros. Veio a revolução dos cravos e o estádio mudou de nome, passou a chamar-se Estádio 1.º de Maio, viva o Dia dos Trabalhadores, viva a classe operária!, mais ajuizado seria que se tivesse chamado sempre Campo da Quinta da Mitra, como começara por ser.
Em todo o caso, mudar o nome do velho estádio de Braga, de 28 de Maio para 1.º de Maio, só demonstra (num raciocínio assumidamente palerma e suinamente fascistóide) que a Outra Senhora levava 27 dias de avanço em relação a Esta Senhora e que as revoluções cometem-se sobretudo e quase só para mudar os nomes das ruas, praças, pontes, estádios e outro imobiliário.
Querem outro por exemplo? O Estádio 25 de Abril, de Penafiel. Antes da "política", aquele terreiro chamava-se Campo das Leiras. E que mal é que tinha o nome?
O 28 de Maio de 1926 foi praticamente como o 25 de Abril de 1974, mas em versão fascista. Começou em Braga e chegou a Lisboa atrás do cavalo branco de Gomes da Costa, uma espécie de chaimite daquele tempo.
Antes do 25 de Abril, os 28 de Maio eram celebrados com desfiles, por assim dizer, militares: Mocidade Portuguesa, Legião Portuguesa, certamente bombeiros e escuteiros, provavelmente ranchos folclóricos e evidentemente soldados propriamente ditos. A Veneranda Figura lá estava, mas o de Santa Comba se calhar não, porque constipava muito de saísse à rua e o povo fazia-lhe espécie. Havia discursos, condecorações geralmente póstumas, por razão de força maior, isto é, derivado ao Ultramar, criancinhas órfãs vestidas à adulto, jovens viúvas atarantadas e chorosas, pais abruptamente sem filhos mas com medalha espetada no peito, numa dor sem fim, e sobretudo muitas fanfarras, a bem da Nação. O bom povo português assistia a tudo patrioticamente embebecido, se não me engano com aguardente, porque as cerimónias eram de manhã.
Uma vez eu também lá fui. Estava no seminário, em Braga, e os padres levaram-nos. Fomos portanto levados. Gostei muito, porque o meu tio Zé de Basto era corneteiro na fanfarra do Regimento de Infantaria 8 e eu já não o via há uma temporada. Pusemos a conversa em dia.
Resumindo e concluindo: Portugal continua a ser o mesmo, fascistazinho, só o tio Zé é que já não anda na tropa...
Em todo o caso, mudar o nome do velho estádio de Braga, de 28 de Maio para 1.º de Maio, só demonstra (num raciocínio assumidamente palerma e suinamente fascistóide) que a Outra Senhora levava 27 dias de avanço em relação a Esta Senhora e que as revoluções cometem-se sobretudo e quase só para mudar os nomes das ruas, praças, pontes, estádios e outro imobiliário.
Querem outro por exemplo? O Estádio 25 de Abril, de Penafiel. Antes da "política", aquele terreiro chamava-se Campo das Leiras. E que mal é que tinha o nome?
O 28 de Maio de 1926 foi praticamente como o 25 de Abril de 1974, mas em versão fascista. Começou em Braga e chegou a Lisboa atrás do cavalo branco de Gomes da Costa, uma espécie de chaimite daquele tempo.
Antes do 25 de Abril, os 28 de Maio eram celebrados com desfiles, por assim dizer, militares: Mocidade Portuguesa, Legião Portuguesa, certamente bombeiros e escuteiros, provavelmente ranchos folclóricos e evidentemente soldados propriamente ditos. A Veneranda Figura lá estava, mas o de Santa Comba se calhar não, porque constipava muito de saísse à rua e o povo fazia-lhe espécie. Havia discursos, condecorações geralmente póstumas, por razão de força maior, isto é, derivado ao Ultramar, criancinhas órfãs vestidas à adulto, jovens viúvas atarantadas e chorosas, pais abruptamente sem filhos mas com medalha espetada no peito, numa dor sem fim, e sobretudo muitas fanfarras, a bem da Nação. O bom povo português assistia a tudo patrioticamente embebecido, se não me engano com aguardente, porque as cerimónias eram de manhã.
Uma vez eu também lá fui. Estava no seminário, em Braga, e os padres levaram-nos. Fomos portanto levados. Gostei muito, porque o meu tio Zé de Basto era corneteiro na fanfarra do Regimento de Infantaria 8 e eu já não o via há uma temporada. Pusemos a conversa em dia.
Resumindo e concluindo: Portugal continua a ser o mesmo, fascistazinho, só o tio Zé é que já não anda na tropa...
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segunda-feira, 24 de abril de 2023
Eles andam por aí
Foto Hernâni Von Doellinger |
quinta-feira, 15 de setembro de 2022
O retrato de Salazar
Tive o privilégio de conhecer a Senhora Dona Laura Summavielle mãe (1879-1971), uma mulher extraordinária que viveu uma vida muito à frente do seu tempo. Tal como eu a via do alto dos meus oito, nove anos, a matriarca da ínclita geração dos Summavielles era então uma velhinha toda guicha, franzina e pândega. No tempo da ditadura fascista, que a houve, a notável senhora tinha uma curiosa brincadeira que apelava à interacção de Fafe inteiro que lhe passasse por baixo da comprida sacada da casa da família, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, mesmo em frente ao Cinema. Fosse quem fosse. Eu também não escapei à partida, mais do que uma vez, e com muito gosto.
Comigo era assim: mal me via aproximar, a marota da Senhora Dona Laura, de lá de cima, dizia num falsete altivo porém educado:
- Ó menino, apanhe-me aí, por favor, esse retrato do Dr. António de Oliveira Salazar, que me caiu sem querer..
E eu lá apanhava. E era o quê? A fotografia mesmo do ditador? Não. Era uma carta de jogar, saída de uns baralhos que havia naquela altura e que não sei se ainda existem, para além daquele que eu guardo cá em casa. Exactamente: afinal o retrato de Salazar era uma carta. Mas não cuidem que era uma carta qualquer, um duque, uma sena ou, mesmo, um valete. Nem era o rei. Nem o ás. O retrato de Salazar era... o burro.
Comigo era assim: mal me via aproximar, a marota da Senhora Dona Laura, de lá de cima, dizia num falsete altivo porém educado:
- Ó menino, apanhe-me aí, por favor, esse retrato do Dr. António de Oliveira Salazar, que me caiu sem querer..
E eu lá apanhava. E era o quê? A fotografia mesmo do ditador? Não. Era uma carta de jogar, saída de uns baralhos que havia naquela altura e que não sei se ainda existem, para além daquele que eu guardo cá em casa. Exactamente: afinal o retrato de Salazar era uma carta. Mas não cuidem que era uma carta qualquer, um duque, uma sena ou, mesmo, um valete. Nem era o rei. Nem o ás. O retrato de Salazar era... o burro.
sábado, 27 de agosto de 2022
Lá íamos cantado e rindo...
Foto Hernâni Von Doellinger |
Mas vamos ao que interessa: Fafe. Fafe dos anos sessenta do século passado, no vestíbulo da Revolução. Naquele tempo Fafe era uma terra tão fascista como todas as outras terras de Portugal, mas, convém não esquecer, muito mais antifascista do que a maioria. Fafe tinha evidentemente Legião Portuguesa, Mocidade, Concordata, União Nacional, grémios, casas do povo, chapéu na mão, fascistas desde pequeninos, salazaristas mais que o próprio, bufos da Pide, falsos bufos da Pide, simples filhos da puta e regedores de pistola à cinta, mas tinha também a Fábrica do Ferro, o Bugio, operários informados, comunistas, associações culturais, grupos de teatro, jornais, o Senhor Teixeira e Castro, gente a querer saber, o Senhor Maciel, o Teatro-Cinema, a Dona Laura Summavielle, o Major Miguel Ferreira, dezenas de presos políticos, o Café Avenida, o Senhor Saldanha, o Senhor Ferreira do Hospital, outros senhores saldanhas e ferreiras do hospital de quem não sei ou não me lembro agora. Fafe teve mártires do fascismo. Procurem-nos na antiga Feira Velha: estão lá dois nomes importantes - Joaquim Lemos de Oliveira, o Repas, e Gervásio da Costa, fafenses que deram a vida pela Liberdade. Foram levados, torturados e assassinados pela Pide.
O nomes continuam lá, não continuam? A praça foi baptizada por causa deles, dos nossos, fafenses, Mártires do Fascismo. O Repas e o Gervásio. Não era uma homenagem urbi et orbi a todos os mártires de todos os fascismos, de todos os sítios e de todos os tempos. Os nomes dos nossos continuam lá na nossa praça, não continuam? Digam-me que sim, por favor, nem que seja mentira.
A Mocidade Portuguesa (Organização Nacional Mocidade Portuguesa) tinha bandeiras dos Heróis do Mar e as bandeiras chamavam-se pendões ou estandartes, tinha fardas catitas, toques de clarim e toque de caixa, cintos com S de Salazar na fivela, comandantes-de-castelo, saudação nazi-fascista e hino privativo, Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados, sim. Tinha também umas mochilas de lona verde-acastanhada muito jeitosas e tinha tendas, pás, picaretas, cantis e acampamentos, e eu invejava o mundo de aventuras daquela moçarada. E tinha a Chama, assim com capitular.
A Chama era um sarau realizado ao ar livre e à volta de uma fogueira com as achas obsessivocompulsivamente organizadas num círculo mais que perfeito: diziam-se poemas, cantava-se, representava-se teatrinho, ensinavam-se urbanidades, exaltava-se o amor à Pátria. Uma vez houve uma Chama nas traseiras da Escola Industrial, aquele pequeno terreiro hoje esmagado pelo anfiteatro exterior da Biblioteca Municipal de Fafe, o que demonstra mais uma vez que, como dizia o saudoso Eduardo Guerra Carneiro, "isto anda tudo ligado". Era do lado da frente da escola, actualmente jardim da Casa da Cultura, que a Mocidade montava formatura ao fim-de-semana, para depois arruar vila adiante, e eu atrás, de passo certo, levado, levado sim...
Mas a tal Chama. Eu fui ver. Do meu Santo Velho ao Santo Novo, onde ficava a Escola Industrial, eram campos de milho e quintais com árvores de fruta, para além de uma ou duas ramadas de uvas de onde, na época, gaipelávamos a bom gaipelar até nos desfazermos em tremendas caganeiras, com licença de vosselências. Por aí ia. A meio do caminho havia uma nora desactivada, mais à frente uma mina já com motor, creio que do Sr. Mijão, e o que eu gostava de carregar no botão verde e pôr a geringonça a aguar, sufocando-a logo a seguir com o botão vermelho, para fugir dali a cem à hora, antes que quem de direito desse pelo basqueiro e corresse a esticar-me o orelhame.
Queria também confessar o que se segue, porque esta memória não me larga: o casarão de lavrador anexo ao velho edifício onde funcionava a Escola Industrial tinha uma espécie de túnel, obra em arco, baixinho, esconso, escuro, por onde se passava de um lado para o outro, das traseiras para a frente ou vice-versa, e ali se faziam umas belas emboscadas para apalpar moças, infelizmente com mais vontade do que jeito. Hoje chamam àquilo tudo Avenida das Forças Armadas e é muito bem feito.
A Chama foi uma merda. Os miúdos (mais velhos do que eu, é preciso que se note) representavam muito mal, os poeminhas eram lengalengas, as cantigas desafinadas, e pela primeira vez na minha vida a começar assisti a uma branca: uma menina ou um menino tinha decorado qualquer coisa para dizer mas não se lembrava de quê - e, depois de várias tentativas a seco, encharcou definitivamente e desatou a chorar. Fiquei triste com ele (ou ela), mas não fiquei freguês.
(Especialistas em fivelas de cintos garantem que o S nas fivelas dos cintos da Mocidade Portuguesa não tinha nada a ver com Salazar, posto que quereria dizer, isso sim, "Servir no Sacrifício" ou somente "Servir". Ou Sabrina. Pois. E as SS eram a Segurança Social do Terceiro Reich, Hitler chamava-se assim para não se confundir com Hernâni e o Z não é de Zorro mas de Zeferino. A mim faz-me uma certa diferença: o Zorro sou eu, desde os livrinhos do Marreca, e Zeferino realmente não me dá jeito nenhum.)
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