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sábado, 14 de junho de 2025

A guerra em tempo de paz

A murro
Batata a murro apresentou queixa por violência doméstica.

Podeis não acreditar, mas eu também fui de comboio para a guerra, e já a guerra tinha acabado. O comboio é que ainda não. Isto é, naquele tempo até nem era nada de extraordinário ir-se de comboio para a guerra, porque Fafe tinha comboio, mas aqui fica o registo, a nota pessoal. Deram-me, portanto, uma guia de marcha. Embarquei em Fafe num domingo à noite, quase ainda fim de tarde, bem bebido, e cheguei à Amadora na segunda-feira de manhã, sóbrio, a bater à porta da guerra mesmo à hora de abertura do expediente. Era um comboio sobrelotado e verde, quer-se dizer, a esbordar de magalas fardados e sonolentos. Fafe-Amadora, ligação "rápida" e praticamente "directa", com os necessários sobressaltos na Trindade, São Bento e Campanhã, no Porto, e em Santa Apolónia e Rossio, em Lisboa. E de borla. A Pátria tratava-nos bem. Levava-se merendeiro de casa, evidentemente.

Eu fui à guerra e comi 21 gafanhotos de uma vez, uns atrás dos outros. Isso. Quando fiz 21 anos, num infeliz dia de Outubro, comi 21 gafanhotos. Vivos. Obrigaram-me. E não me estou a queixar, embora tenha sido uma canseira andar a persegui-los e a apanhá-los um a um no mato, eles aos saltinhos e eu de cócoras, um sol do caraças, a risota do maralhal, os insultos do tenente, o corpo moído, uma sede que eu sei lá, mas antes isso do que passar o dia inteiro a levar pancada. O dia e a noite. Por outro lado, apesar de ter comido 21 gafanhotos vivos no dia exacto e triste em que fiz 21 anos, passei aqueles dias todos a levar pancada. Aqueles dias e aquelas noites. As noites também. O que tinham de bom as noites é que só muito raramente propiciavam "golpes de calor", ou insolações, como se diz quando se quer que se perceba o que se diz.
Mas os gafanhotos. Os gafanhotos eram absolutamente essenciais, alimentavam heróis em construção, forjavam homens de aço, oleavam máquinas de guerra que haveríamos de ser. Eram, repito, absolutamente essenciais, naturalmente curriculares. Os gafanhotos e a pancada.
O meu encontro gastronómico com os gafanhotos teve como cenário os bélicos campos e montes de Santa Margarida durante a chamada "semana maluca" dos Comandos, em que o dia é noite e a noite é dia, com horários e afazeres trocados, incluindo as refeições e a instrução, manobras ainda por cima abrilhantadas pelas famosas prova da sede, prova de choque ou prova de sobrevivência. Famosas e às vezes fatais. Quer-se dizer: pancada, pancada e mais pancada.

Assim eram os Comandos, tropa dita de elite para onde não fui voluntário. "Mais logo afocinharemos!", ameaçava o tenente por tudo e por nada, só porque lhe apetecia. E afocinhávamos. Passávamos a vida a afocinhar. Havia um cuidado muito grande com a nossa alimentação. Por vontade de quem mandava, nós, os desprezíveis instruendos, estaríamos sempre a comer, às mãos desabridas de sargentos e cabos com idade para serem coronéis, com poderes de general, práticas de verdugos descontrolados e tremendas saudades ultramarinas. Consta que, quase cinquenta anos passados, os Comandos ainda são assim. E que, uma vez por outra, "as coisas correm mal". Há mortes, mesmo no intervalo da guerra. O treino não podia ser mais completo.
Em 1978 correu mal uma aula de morteiros. Um instrutor jactante e incompetente, como se exige que sejam os instrutores, apontou para o infinito, despoletou a granada e, sem querer, deixou-a escorregar tubo abaixo. Pum! O morteiro só parou explodindo em cheio num centro comercial da Amadora, por acaso com pessoas dentro. Sei disto porque estava lá, do lado do morteiro e do instrutor desajeitado. E, para evitar problemas com a população, não me deixaram vir a casa nesse fim-de-semana e no seguinte, e eu cheio de saudades de Fafe e da namorada no Porto.
Quanto aos gafanhotos, fritos e de escabeche decerto marchariam melhor. Pelo menos parece ser esse o entendimento da nossa Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, que anunciou em Junho de 2021 a autorização para a produção, comercialização e utilização na alimentação em Portugal de sete espécies de insectos - duas de gafanhotos, duas de grilos, duas de larvas e um besouro.

Por aquela altura, no meu breve tempo de Comandos, eu já tinha visto na televisão a preto e branco a série Kung Fu, com o trágico David Carradine, mas ainda não conhecia a anedota "O Mestre e o Gafanhoto", que haveria de ouvir anos mais tarde contada numa cassete pelo menestrel brasileiro Juca Chaves (1938-2023) e que, se bem me lembro, é mais ou menos assim:
Gafanhoto, aprendiz de Shaolin, era pequenininho e perguntou ao seu velho Mestre, que era cego e sabia tudo:
- Mestre, quando é que eu me tornarei um homem?
E o Mestre respondeu-lhe:
- Gafanhoto, quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir duas bolas, então você será um homem. Mas quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir quatro bolas, não pense que é super-homem. É que tem alguém lhe enrabando!...

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. O Centro de Instrução de Zemba, em Angola, foi criado no dia 14 de Junho de 1962, para formar as primeiras unidades portuguesas de Comandos.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Fui de comboio prà guerra

Foto O Comboio Volta a Fafe

Podem não acreditar, mas eu também fui de comboio para a guerra, e já a guerra tinha acabado. O comboio é que ainda não. Isto é, naquele tempo até nem era nada de extraordinário ir-se de comboio para a guerra, porque Fafe tinha comboio, mas aqui fica o registo, a nota pessoal. Deram-me, portanto, uma guia de marcha. Embarquei em Fafe num domingo à noite, quase ainda fim de tarde, bem bebido, e cheguei à Amadora na segunda-feira de manhã, sóbrio, a bater à porta da guerra mesmo à hora de abertura do expediente. Era um comboio sobrelotado e verde, quer-se dizer, a esbordar de magalas fardados e sonolentos. Fafe-Amadora, ligação "rápida" e praticamente "directa", com os necessários sobressaltos na Trindade, São Bento e Campanhã, no Porto, e em Santa Apolónia e Rossio, em Lisboa. E de borla. A Pátria tratava-nos bem. Levava-se merendeiro de casa, evidentemente.

Eu fui à guerra e comi 21 gafanhotos de uma vez, uns atrás dos outros. Isso. Quando fiz 21 anos, num dia mais ou menos assim, comi 21 gafanhotos. Vivos. Obrigaram-me. E não me estou a queixar, embora tenha sido uma canseira andar a persegui-los e a apanhá-los um a um no mato, eles aos saltinhos e eu de cócoras, um sol do caraças, a risota do maralhal, os insultos do tenente, o corpo moído, uma sede que eu sei lá, mas antes isso do que passar o dia inteiro a levar pancada. O dia e a noite. Por outro lado, apesar de ter comido 21 gafanhotos vivos no dia exacto e triste em que fiz 21 anos, passei aqueles dias todos a levar pancada. Aqueles dias e aquelas noites. As noites também. O que tinham de bom as noites é que só muito raramente propiciavam "golpes de calor", ou insolações, como se diz quando se quer que se perceba o que se diz.
Mas os gafanhotos. Os gafanhotos eram absolutamente essenciais, alimentavam heróis em construção, forjavam homens de aço, oleavam máquinas de guerra que haveríamos de ser. Eram, repito, absolutamente essenciais, naturalmente curriculares. Os gafanhotos e a pancada.
O meu encontro gastronómico com os gafanhotos teve como cenário os bélicos campos e montes de Santa Margarida durante a chamada "semana maluca" dos Comandos, em que o dia é noite e a noite é dia, com horários e afazeres trocados, incluindo as refeições e a instrução, manobras ainda por cima abrilhantadas pelas famosas prova da sede, prova de choque ou prova de sobrevivência. Famosas e às vezes fatais. Quer-se dizer: pancada, pancada e mais pancada!

Assim eram os Comandos, tropa dita de elite para onde não fui voluntário, é preciso que se note. "Mais logo afocinharemos!", ameaçava o tenente por tudo e por nada, só porque lhe apetecia. E afocinhávamos. Passávamos a vida a afocinhar. Havia um cuidado muito grande com a nossa alimentação. Por vontade de quem mandava, nós, os desprezíveis instruendos, estaríamos sempre a comer, às mãos desabridas de sargentos e cabos com idade para serem coronéis, com poderes de general, práticas de verdugos descontrolados e tremendas saudades ultramarinas. Consta que, mais de quarenta anos passados, os Comandos ainda são assim. E que uma vez por outra "as coisas correm mal". Há mortes, mesmo no intervalo da guerra. O treino não podia ser mais completo.
Em 1978 correu mal uma aula de morteiros. Um instrutor jactante e incompetente, como se exige que sejam os instrutores, apontou para o infinito, despoletou a granada e, sem querer, deixou-a escorregar tubo abaixo. Pum! O morteiro só parou em cheio num centro comercial da Amadora, por acaso com pessoas dentro. Sei disto porque estava lá, do lado do morteiro e do instrutor palerma. E, para evitar problemas com a população, não me deixaram vir a casa nesse fim-de-semana, e eu cheio de saudades de Fafe e da namorada no Porto.
Quanto aos gafanhotos, fritos e de escabeche decerto marchariam melhor. Pelo menos parece ser esse o entendimento da nossa Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, que anunciou em Junho de 2021 a autorização para a produção, comercialização e utilização na alimentação em Portugal de sete espécies de insectos - duas de gafanhotos, duas de grilos, duas de larvas e um besouro.

Por aquela altura, no meu breve tempo de Comandos, eu já tinha visto na televisão a preto e branco a série Kung Fu, com o trágico David Carradine, mas ainda não conhecia a anedota "O Mestre e o Gafanhoto", que haveria de ouvir anos mais tarde contada numa cassete pelo menestrel brasileiro Juca Chaves (1938-2023) e que, se bem me lembro, é mais ou menos assim:
Gafanhoto, aprendiz de Shaolin, era pequenininho e perguntou ao seu velho Mestre, que era cego e sabia tudo:
- Mestre, quando é que eu me tornarei um homem?
E o Mestre respondeu-lhe:
- Gafanhoto, quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir duas bolas, então você será um homem. Mas quando um dia você passar a mão entre as pernas e sentir quatro bolas, não pense que é super-homem. É que tem alguém lhe enrabando!...

P.S. - Este texto é tão velho como o velho mestre de kung fu. O meu gastronómico encontro com os gafanhotos desenrolou-se durante a chamada "semana maluca" dos Comandos, em que o dia é noite e a noite é dia, com horários e afazeres trocados, incluindo as refeições e a instrução, ainda por cima abrilhantada pelas famosas prova da sede, prova de choque ou prova de sobrevivência. E hoje é o Dia ao Contrário. E também Dia Nacional do Sargento, calha bem. Já quanto ao nariz de cera: Fafe tinha comboio e era o fim do mundo, deixou de ligar ao comboio, desistiu do comboio, tiraram-lhe o comboio que já ninguém usava a não ser eu, queixou-se muito de não ter comboio e agora tem uma locomotiva de corpo presente, restaurada e bem janota, que até chegou de camioneta.

sexta-feira, 10 de março de 2023

O meu sogro vai para a tropa

Depois de um dia particularmente violento, com doze horas na Urgência do Hospital de Santo António e chegada a casa cerca da uma da madrugada, o dia seguinte do meu sogro foi de alguma, lenta e não garantida recuperação. Pela manhã o meu sogro estava provavelmente melhor, bem disposto, disponível para me ajudar ao seu conforto possível. Demos as voltas que foram precisas. Vim almoçar.
Tornei. À tarde, o meu sogro estava de trombas e a fazer de conta que dormia. Quando está zangado com a realidade que lhe passa pela cabeça, o meu sogro faz de conta que dorme, mas, esta parte tem piada, faz de conta muito mal. Disse-lhe, como de costume, "Sr. Carvalho, abra os olhos se faz favor, precisamos de tratar de si, eu sei que o Sr. Carvalho não está a dormir, e o Sr. Carvalho também sabe que não está a dormir, vamos lá, ajude-me".
Que se segue? Bato e rebato à porta do esquecimento, o meu sogro faz de conta que acorda de repente, mas continua a fazer de conta muito mal, o que me faz rir e obriga-me a dar-lhe um abraço e um beijo extra na careca. O meu sogro gosta que eu lhe dê beijos na careca e diz-me obrigado. Pergunto-lhe: - Ó Sr. Carvalho, então estava tão bem de manhã, porque é que está agora tão mal disposto? O meu sogro responde-me, a voz entaramelada e cara de mau: - Como é que eu posso estar bem disposto, se vou para a tropa?
Compreendi-o perfeitamente. Eu próprio ainda não recuperei de vez da minha passagem pelos Comandos, e mais era rapaz e razoavelmente desembaraçado. Imagino, portanto, a angústia do meu sogro, com o comboio a sair de Campanhã dali a um quarto de hora, obrigado a ir para a tropa aos 85 anos e sem sequer conseguir pôr pé fora da cama. Por isso, prometi-lhe solenemente: "Não se preocupe, Sr. Carvalho, no dia do juramento de bandeira lá estarei e levo-lhe um merendeiro como manda a sapatilha". Que sim.
Mais um abraço, e o resto da tarde correu com um belo sorriso nos lábios.

A propósito. No tempo de outras lucidezes, o meu sogro gostava de contar-me que foi "condutor auto" em Vendas Novas e que os anos de tropa foram os melhores anos da sua vida. Neste texto e no texto abaixo dou-me ao luxo de usar o presente do indicativo, mas é apenas para enganar as saudades. Fazíamos uma bela dupla, eu e o meu sogro. Fomos unha com carne naqueles nossos últimos anos, tão difíceis e dolorosos para ele e tão luminosos e redentores para mim. Hoje é Dia do Sogro, e não sei que mais diga.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...