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quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Deus nos livre dos afrontamentos

Um dominguinho como de costume e Deus manda. Missinha das onze, homiliazinha com palavrinhas a abater e um que outro puxãozinho de orelhas para temperar, uns acenozinhos ao rebanho, umas lambidelas recebidas na mão santa, a do cachucho, e depois... o almocinho. O almocinho de dominguinho: três pratos, tal qual a Santíssima Trindade e o outro assunto que não vem ao caso. Duas horas à mesa e sempre a dar-lhe, como se fosse castigo, penitência. "Ui! Comi que nem um abade" - desabafou, num arroto final. "Nada de modéstias, Vossa Excelência Reverendíssima Senhor Dom, afinal de contas sois Bispo, sois Bispo" - acudiu o solícito secretário, jovem presbítero, com as maiúsculas bajuladoras numa mão e o bicarbonato de sódio na outra.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Comida Picante.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

O Padre Clementino

O Padre Clementino morava no seminário. Não porque fosse prefeito ou professor ou tivesse outras responsabilidades administrativas ou religiosas, mas apenas porque naquele tempo ainda não havia lares para padres velhinhos e desconsertados. O Padre Clementino não era velhinho - avariara, ninguém o reclamou e ficou por ali. Mas era uma figuraça, património diocesano, um mito vivo. Baixote, redondo, anafado, bonacheirão, vermelhusco de cara e sorriso gaiato, batina coçada, sebenta, amiúde carregada de nódoas, isto é, o Padre Clementino tinha tudo para ser cónego, mas, que eu saiba, felizmente nunca lhe fizeram essa desfeita.
O Padre Clementino era muito cuidadoso com a fruta, sobretudo com as maçãs. Punha-as a madurar na beira da janela do quarto minúsculo que lhe fora distribuído e só as comia quando elas estivessem satisfatoriamente podres, cheias de bolor, para aproveitar a penicilina. Por estas e por outras, o Padre Clementino tinha uma saúde que até metia impressão.
Contava-se. Pela calada da noite ou durante o horário lectivo, o Padre Clementino andava de bicicleta pelas compridos e desérticos corredores do seminário. Apesar da ausência de tráfego, da via desafogada, apesar de ter os corredores só para ele, corredores largos, longas rectas sem sequer chicanas, a verdade é que às vezes o homem caía, sei lá se por falta de jeito ou apenas porque o raio da sotaina se lhe enrodilhava na corrente, não faço ideia. Caía e pronto. E pronto, não! Rectifico. Caía, levantava-se logo que conseguisse, não sei se estão a ver a tartaruga de pernas para o ar, verificava os estragos no material, que eram quase sempre nada, marcava o local do tombo com um grande sinal que ele já tinha preparado e que dizia "CURVA PERIGOSA!!!", nem mais nem menos, e saía dali novamente bicicletando. Com o Padre Clementino era mesmo assim, de categoria, tudo nos conformes. Fossem chamar tolo a outro...

(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!, a propósito do Dia Nacional dos Bens Culturais da Igreja. E o Padre Clementino era. Por outro lado, hoje é Dia Internacional da Maçã.)

sábado, 5 de outubro de 2024

O Secónego

Foto Hernâni Von Doellinger
O Secónego era uma sumidade arqueológica. Um sábio. Sabia das lendas, da História, das pedras, das palavras, dos nomes e dos sítios, dos livros. Sabia das origens todas. Sabia. Estão a ver o José Hermano Saraiva na televisão? Pronto, o Secónego era a mesma coisa, mas sem televisão e a sério, com base científica. Ainda por cima, tinha piada fina. O Secónego comprazia-se em explicar aos seus alunos porque é que a terra de cada um se chamava como se chamava e porque é que uns eram Silva e outros eram Lopes. Explicou-me porque é que Fafe é Fafe e eu expliquei-lhe que não tenho culpa de ser Von Doellinger.
O Secónego tinha uma maneira de falar muito cómica. Falava como quem não abre a boca, às vezes com a mão à frente, com medo talvez de que se lhe evadisse a placa. Chamava-nos a todos "Ó menino!", embora já fôssemos uns respeitáveis gandulos, e ria-se satisfatoriamente.
Quando me chegou às mãos, o Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras" institucionalizadas para as aulas do Secónego. E os coninhas, que, borrados de medo, até respiravam pelas orelhas frente aos outros professores, pintavam a manta com o Secónego, numa coragem cobarde que ainda hoje me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena. Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia apenas "Leia, menino", apontando para ninguém. E nós lemos, mandei eu, e mandei também chamar quem o tirasse dali. Lemos: três ou quatro de nós, uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo. E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez, numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas ordens, porque eu sentia que o som das nossas vozes apaziguava a alma cansada e ausente do velho professor. E ele merecia.
Depois levaram-no.

O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da cidade de Braga para o Bom Jesus, a cota baixa. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo: "Ó Secónego, que pena, uma casa tão bonita e quem por ali passa de carro só lhe vê o cume". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda nem o cume vê"...

(Quando acompanhava o seu próprio corpo, o que era cada vez mais raro, o Secónego sabia mesmo muito sobre os antigamentes de Fafe, e eu regalava-me a ouvi-lo. O Secónego, assim chamado, era o cónego Arlindo Ribeiro da Cunha (1906-1976), autor, entre outras obras, de "A Língua e a Literatura Portuguesa" e de uma "Gramática Latina" que chegou à sétima edição, tendo participado como colaborador regular na Grande Enciclopédia Luso-Brasileira e na Enciclopédia Verbo. Vimaranense de São Torcato, é nome de rua em Braga. E já agora: o parágrafo anterior deve ser lido em voz alta, como quem conta uma história, sobretudo o discurso directo da última frase. Fica melhor.)

Aqui chegados, como diria o nosso Luisinho Marques Mendes, que também é um latinista, devo informar que no seminário tive os melhores professores do mundo.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Professor.

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Os cónegos dividem-se em três partes

Há coisa de quarenta, cinquenta anos, os cónegos não eram uma classe respeitada por aí além, mesmo ou principalmente no interior da Igreja. Naquele tempo, cónegos eram anedotas contadas por padres que não eram cónegos. Inveja? Sei lá eu. Parece que o tique vinha de trás e atiravam a culpa ao Eça. Ao de Queirós.
Os cónegos que então conheci, porque andei lá no meio deles, afiguravam-se-me criaturas patuscas, isso é certo. Geralmente baixinhos, barrigudos e corados, sebentos às vezes, os cónegos eram uns cromos, caricaturas deles próprios. Também não sei se ficaram assim depois e por causa de terem ido para cónegos ou se aqueles é que eram os requisitos necessários e critérios de selecção para o canonicato.
Uma vez, um padre recém-ordenado, mestre e amigo, ensinou-me que a classe dos cónegos se dividia em três categorias: "os cónegos de merda, a merda de cónegos e os cónegos a sério" - que seriam os da sé propriamente dita, eventualmente os cónegos com cargo no cabido. O meu mestre e amigo suponho que actualmente é cónego, mas não sei de que categoria. Tenho também ex-colegas de seminário que são cónegos, e estimo-lhes as melhoras.
Como funciona agora com os cónegos, confesso que desconheço. Mas acredito nisto: quarenta, cinquenta anos não dão para nada na Igreja instituição, não dão sequer para meter a chave à porta - quanto mais para puxar o autoclismo.

P.S. - Foi há trinta anos. No dia 30 de Maio de 1994, o papa João Paulo II declarou um "não irrevogável e definitivo" à ordenação sacerdotal de mulheres. E é pena. As cónegas também haviam de ter piada.

sábado, 23 de dezembro de 2023

O Padre João Aguiar


O Padre João Aguiar celebraria hoje 74 anos se não tivesse falecido no passado dia 27 de Abril. E pelo menos sorriria ao ler esta abertura assim tão idiota. João Aguiar Campos, a quem fizeram a desfeita de fazer cónego, foi um dos mestres da minha vida, e eu disse-lho em tempo útil, portanto não vou falar disso agora. Trago é aqui uns versinhos que são dele e que eu guardo há 50 anos. Mandei-lhos em fotografia pelo Natal de 2017, ficou admirado, não sabia deles, e constou-me que então os publicou nas suas redes sociais. O original continua comigo.
Os versos escreveu-os o Padre João Aguiar propositadamente para serem lidos na abertura de um concerto de Natal que o orfeão do Seminário de Filosofia gravou com meses de antecedência para a então Emissora Nacional no auditório do Conservatório de Braga derivado à acústica, sob a supervisão técnica e embebecida do maestro Silva Pereira, se não me engano. O ensaiador e regente do orfeão era o cónego José Sousa Marques, isto é, o famoso Galinhola, disso tenho a certeza. Eu e o Salomão lemos o poema, ao jeito de jograis, ora agora digo eu, ora agora dizes tu. Foi por alturas de 1974, depois meteu-se graças a Deus o 25 de Abril, e o concerto, tanto quanto sei, nunca foi emitido.
Sem mais delongas, o poema do Padre João Aguiar é assim:

Vieram de longe abraços amigos
trazendo o calor de muitas fogueiras.
Escorreram melodias
nos dedos das ruas,
abriram-se risos
nos rostos das montras.

Natal...

Correram as crianças,
falaram avós
dos tempos que foram
e não voltarão

Natal.

Desfilaram no musgo
soldados de chumbo,
presença involuntária
das guerras reais.

Natal.

Mas
porque perdemos nas mesas
as fomes alheias
e na corrida ao passado
as lágrimas de hoje?!

porque falamos de Deus
e esquecemos Seu nome,
olhamos a estrela
e destruímos a terra?!

porque mentimos cantando?

Filho de Deus,
tem piedade de nós!

sábado, 12 de agosto de 2023

Os melhores anos da minha vida

Foto Tarrenego!
Por falar em seminário. Naquela altura eu não sabia que aqueles eram os melhores anos da minha vida. Dito com mais rigor, os primeiros melhores anos da minha vida. E não se iludam com o aspecto formal, cinzento, tão manhã submersa. Tão coninhas. Não éramos nada disso, pelo menos não éramos todos. Éramos, pelo menos alguns, rapazes espertos e gandulos, mas tínhamos mestres. Sorte a nossa. Sorte minha. Devo-lhes tudo. E mandaram-me embora...
Alguns destes inesquecíveis cromos deram mesmo em padres, consta-me que até já vão em cónegos, mas não sei de que categoria. Os cónegos, como já aqui expliquei, dividem-se em três partes.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Os ex-colegas, essa pedra no sapato

Foto Tarrenego!
O problema dos ex-colegas. Não é brincadeira. Para um gajo com mais de sessenta anos de idade embora em estado praticamente novo, o problema dos ex-colegas é uma chatice quase tão grande como os calhamaços do José Rodrigues dos Santos se eu os lesse. Imaginem-me: com ex-colegas da minha rua e da escola primária, os melhores de todos, com ex-colegas do seminário, já lá irei, com ex-colegas do liceu que foram para doutores e foi um ar que se lhes deu, com ex-colegas dos Comandos que acham que são muito mama sumae! e eu não sou, com ex-colegas da fábrica de quem tenho tantas saudades, com ex-colegas dos jornais e da rádio que têm lá as suas vidinhas, vejo-me fodido para os aturar a todos, mesmo quando eles não querem saber de mim, o que é regra geral. E quando querem saber de mim, então ainda é pior. O caso do seminário, e eu disse que vinha cá, é absolutamente paradigmático. Para quê? Digmático. Ninguém me mandou para o seminário, fui porque quis, porque queria ser padre, e às vezes ainda quero. A minha mulher sabe disso. No ano em que lá cheguei, éramos 136 crianças, havia um documento de acção psicológica (isto anda tudo ligado) que rezava assim: "Começar é fácil. Recomeçar é de muitos. Chegar ao fim é de heróis. Nesta marcha ascensional é nosso dever caminhar! A empresa é difícil, mas fascinante O Ideal!"...
E há umas certas e determinadas pessoas que acreditam nisto, os supra-sumos que chegaram ao "O Ideal!". Se tivessem ido para os Comandos, esses supra-sumos, sumos sacerdotes, andariam agora por aí de boina vermelha e crachá, eventualmente de G3 a tiracolo se os deixassem, e em vez de melancólicos ego te absolvo diriam esfuziantes mama sumae! Estes rapazes tiveram os melhores mestres do mundo, o padre Fonseca e o padre João Aguiar, para não irmos mais longe, e afinal não aprenderam nada com eles, não perceberam nada da vida.
Porque. Reencontrei-me ultimamente com ex-colegas do seminário que deram em padres. E até gostei, a princípio. Há aquela festa propedêutica, "ó pá, há que tempos, és mesmo tu, estás mais gordo, estás mais magro, está igualzinho, dá cá esses ossos, dá cá essa febras!", como pessoas normais, e depois os meus ex-colegas enfiam no cu um daqueles feijõezinhos milagrosos que lhes dão aquela voz sacrista e falseta, e, magníficos, condescendentes e compassivos, com a superioridade moral dos eleitos, dos exclusivos de Deus, perguntam sempre lá do alto, como se estivessem combinados uns com os outros, "e então, o que é que tens feito?"...
Fico fodido. Fico à rasca. Começo a suar, a gaguejar, não sei o que hei-de dizer em minha defesa. Afinal estou perante um dos que chegaram ao topo do Kilimanjaro e eu nem sequer passei do sopé do Bom Jesus do Monte, onde o Secónego tinha uma casa. Conto o melhor que consigo: "ó pá, tenho sido sobretudo jornalista mas também trabalhei numa fábrica, sou casado há quarenta anos, sempre com a mesma mulher, o que é miserável no meu ofício, porém continuo apaixonado, tenho um filho que é uma jóia e o meu maior orgulho, temos a casa e o carro pagos, damos umas voltinhas para arejar, eu não sei conduzir mas cozinho muito bem, tenho quatro amigos, pendurei a carreira profissional para tomar conta primeiro do meu sogro e depois da minha sogra, e não me lembro se já disse que sou jornalista"...
Mas não chega. Eu sei que não chega! E continuo fodido e à rasca, gago e suado. Eu até acho que a classe dos ex-colegas está muito sobrevalorizada. Parece-me que a maioria das pessoas passa distraidamente ao lado do negativismo, da carga pejorativa que a própria expressão em si encerra. Ex-colega, ex-colegas. Se, por analogia, as pessoas pensarem no que pensam quando pensam em ex-amigo, em ex-amigos, certamente compreenderão o que eu quero dizer. Mas não adianta. Isso não me salva. Os ex-colegas aparecem-me, realizadíssimos da vida, e eu, que sei que sou a merda que sou, só me apetece fugir...

Era assim. Mas aqui atrasado fui a Fafe a um funeral e mudei de táctica. Fui a Fafe, dizia, e esbarrei com um dos meus que deu em padre e que, ainda por cima, estava encarregado do serviço. Conversámos na sacristia da Igreja Matriz, intermediados pelo meu sobrinho Geno. Como de costume, inquirido sacramentalmente "e então, o que é que tens feito?", confessei na mesma o "ó pá..." do parágrafo ali de cima, o "ó pá..." completo, porque tenho este defeito de informar, mas depois acrescentei perguntando também, para livração da minha alma:
- E tu? Nunca fizeste nada, pois não? Quer-se dizer, és padre, não é?...

Em todo o caso e nos tempos que correm: como diria a minha mãe, que é sábia mas também queria um filho padre, "mais vale não fazer nada do que fazer asneiras"...

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Foi-se a inocência, ficaram as orelhas

Foto Tarrenego!
Chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Academicamente falando, os pontos eram aquilo a que hoje, suponho, ainda se chama testes, e a enfermaria já então era o que hoje é - enfermaria. Atenção: eu dava parte de doente não porque fosse mau aluno mas porque era muito bom preguiçoso. Para além dos percevejos e do tradicional concurso de punhetas logo pela manhãzinha e a meio da tarde, o melhor que a enfermaria tinha era a sineta a tocar para as obrigações dos outros, e nós no quentinho, a comida "de dieta" e o enfermeiro propriamente dito que na verdade era barbeiro. O Sr. Pimenta, se bem me lembro. O Sr. Pimenta era enfermeiro porque tinha a bata branca de barbeiro, trazia os termómetros no bolso, via as febres (que eram forjadas na fricção com os cobertores - chamava-se àquilo "manipular a febre"), passava raspanetes e dava-nos uns comprimidos de faz de conta que, se não me engano, eram sobras do Laboratório Militar. Os comprimidos serviam para tudo e não faziam nada. O Sr. Pimenta dava também muito mal injecções. E eu contava anedotas.
Figura mítica, consagrada instituição da velha Tamanca e autoridade local, o Sr. Pimenta era uma homem gordo, de andar pesado e lento, periclitante. A cada passo parecia-me que ia cair redondo para um dos lados, consoante a perna curta que avançava. O Sr. Pimenta tinha idade para ser meu avô, achava eu, e uma barbearia montada como se fosse a sério, mesmo em frente à capela e ao lado da sala de aulas que era também a loja onde os padres nos vendiam os "objectos", mas cortava tão mal o cabelo como os tosquiadores fardados que mo raparam sem dó nem piedade, uns anos depois, quando dei entrada nos Comandos. O Sr. Pimenta era barbeiro porque tinha a bata branca de enfermeiro.
Quer-se dizer: o Sr. Pimenta era a bata.
E poderia ter sido, quem sabe, o Homem-Bata, se, derivado aos seus múltiplos poderes e polivalentes predicados, a Marvel lhe tivesse deitado a mão em devido tempo. Infelizmente a Marvel não recruta em Portugal, e é o que perde.
Apesar de ter tudo para ser um super-herói, o Sr. Pimenta era só Sr. Pimenta para mim, porque a minha mãe tinha-me ensinado a tratar os senhores por senhores e as senhoras por senhoras. Para o resto da rapaziada, meninos bem ou matarruanos, o Sr. Pimenta era o Pimenta, ordens de cima, nada de confianças. Paradoxalmente. E os outros funcionários ou acoitados, os que nos serviam no refeitório, certamente lerdos mas filhos de Deus como a gente, eram "criados". Criados. Ordens de cima. Já nem falo de educação - a caridade cristã tem definitivamente muito que se lhe diga.

Portanto, chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Um ano, em fim de trimestre, o padre Vilar, o bom padre Vilar, não quis que eu ficasse sem nota a Religião e Moral. Visitou-me, fez-me duas ou três perguntas que valeriam o ponto, perguntas do mais elementar possível, só para que eu fizesse boa figura. Perguntou-me:
- Quem é Deus para ti?
- Deus é o meu pai - respondi.
- Todos somos filhos de Deus - atalhou o padre.
- Mas eu sou mais, porque sou órfão - defendi-me, com uma não ensaiada porém oportuna lágrima no canto do olho que me valeu para aí um dezoito.
Isto é: sou malabarista desde pequenino.

Na enfermaria havia sempre um bufo que ia contar ao impiedoso padre Coutinho as minhas anedotas, mas omitia a parte das punhetas, que era regra geral e ideia não sei de quem, minha é que não. E eu também não sabia a malícia das anedotas que contava e que tinha aprendido em Fafe, porque eu sempre aprendi muito bem. Fiquei a saber quando fui chamado à pedra por uma orelha, e dependurado depois pelas duas - e assim me roubaram a inocência. O padre Coutinho gostava muito de música clássica e eu tenho a certeza absoluta de que a música clássica não gostava nada dele.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Sabença, senhor abade!

Foto Tarrenego!
No tempo em que havia padres em Portugal, Fafe tinha um senhor abade. Uma vez por semana, o nosso senhor abade descia a minha rua de terra e tílias para ir dizer missa na capela de ricos da Casa do Santo Velho, e a minha mãe mandava-me ir ter com ele para lhe pedir sabença. Eu interrompia os deveres da escola primária e ia a correr, todo contente. Fazia fila atrás dos outros miúdos todos e, quando chegava a minha vez, lá dizia, com o respeito que me fora ensinado, "Sabença, senhor abade!", beijando a mão branca que me era estendida. O senhor abade fazia-me uma pequena festa na cabeça, com a mão que tinha de vago, e respondia-me "Deus te abençoe, meu filho", que era o que eu queria ouvir. O senhor abade seguia o seu caminho e eu tornava a casa num sino. Acreditam que aquilo é das coisas mais felizes da minha infância?
O senhor abade cheirava bem, a tabaco e perfume. Andava sempre de batina e, no Inverno, usava uma capa negra revoante que parecia de filme de espadachins. Com o correr dos anos, o senhor abade subiu a senhor arcipreste, pendurou a sotaina e começou a sair à rua de fato preto e cabeção de gola alta, passou a cumprimentar-me de mãozada e fizeram-no senhor cónego, uma desfeita, no meu modesto ponto de vista. Cónego Leite de Araújo. Era um homem elegante, distinto, culto, bom e pobre. Dava. E tinha um sorriso. Era um ser humano com defeitos e extraordinário. E foi meu amigo. Não sei se Fafe tem a contabilidade em dia com a sua memória.
No tempo em que havia padres em Portugal, o senhor abade de Fafe tinha consigo ao serviço da paróquia, para além do padre Adélio que ensaiava o orfeão, dois jovens coadjutores, palavra que eu não sabia dizer mas que me fazia rir, porque imaginava que, com um título assim, aqueles dois eram padres de acender e apagar. Tanto quanto sei agora, apagaram-se quase todos os que por lá passaram. Apagaram-se como padres, quer-se dizer. Tiveram muitos filhos, foram muito felizes e casaram, geralmente por esta ordem. Em todo o caso, a esses já eu não beijava a mão, mas pedia sabença. Tínhamos isso combinado. E eu ganhava o "Deus te abençoe" que me dava tanto jeito.

No tempo em que havia padres em Portugal, não havia Paula Bobone, graças a Deus. Por isso o beija-mão era uma coisa, por assim dizer, pouco higiénica. Porque o beijo era mesmo beijo e não a mariquice do beijo de faz de conta, a "simulação de beijo" recomendada pela etiqueta da treta. Eu pedia sabença com beija-mão também ao meu avô e à minha avó da Bomba e ao meu avô e à minha avó de Basto, gente de trabalho que tinha as mãos como calhava quando eu lá esparramava o reverencial ósculo. Sim, seria talvez pouco higiénico, mas era verdadeiro. E ainda cá estou.
Durante toda a minha vida pedi sabença. Ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Aos poucos fui desfazendo a corruptela, passei pela "sabênção" até chegar ao que peço há anos: "a sua bênção". É verdade, continuo a pedir a bênção à minha mãe e aos meus tios e tias, alguns apenas um pouco mais velhos do que eu. E não é só por respeito ou porque me ensinaram em pequenino. Eu acredito nas bênçãos. Por falar nisso: sabença, senhor abade!

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...