domingo, 4 de maio de 2025
O bombeiro profissional
P.S. - Hoje é Dia Internacional do Bombeiro.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2025
O incansável fazedor de sestas
Foto Hernâni Von Doellinger |
Naquela casa, isto é, na Bomba, só se comia e bebia do bom e do melhor, embora regrado. Muito regrado. Depois do almoço, o meu avô descia até à camarata e estendia-se numa das camas, a primeira à entrada do lado esquerdo, tapando a cara com o Jornal de Notícias. O JN era naquela altura um jornal grande, quase um lençol, muito jeitoso para a sesta, e o meu avô, contrariando a regra geral, gostava de dormir sob aqueles assuntos.
As minhas tarefas de neto em relação à sesta do meu avô eram ir buscar o JN e passar de vez em quando pela camarata para, se necessário, corrigir a posição do jornal. Tinha uma terceira tarefa, não editorial, que era andar em bicos de pés e de bico calado.
O Jornal de Notícias do meu avô era comprado a meias com o Senhor Ferreira do Hospital, que o lia primeiro, e depois eu ia buscá-lo, ou então ficava cada um com metade das páginas e a uma certa hora da manhã eu fazia a troca, já não me lembro bem.
O Senhor Ferreira do Hospital e o meu avô foram amigos e cúmplices toda a vida. Eram unha com carne, apesar de diferentes como a água e o vinho: o Senhor Ferreira era comunista, tinha estado preso, e o meu avô... antes pelo contrário. Para além de comunista, o Senhor Ferreira era um homem bom, íntegro, sábio, um grande Homem que eu admirava e gostava de ouvir. Anos passados, aos domingos, eu à beira de ir para a tropa e portanto sem emprego, o Senhor Ferreira cumprimentava-me com uma nota de 20 escudos escondida e imperativa na mão tremente. Depois de cegar, o Senhor Ferreira conhecia-me pela voz, mesmo sem eu abrir a boca, quase que só pela presença ou talvez pela respiração, não sei o truque. Já casado e jornalista, no Porto, eu ia frequentemente a Fafe, entrava no Nacor, então transplantado para as megalómanas porém inóspitas instalações em frente ao tasco original, eu ainda à porta, limpando os pés, o Senhor Ferreira, sentado ao enorme balcão, lá ao fundo, com a sua malguinha à frente, adivinhava-me e atirava logo: - Está aí o Hernâni? Aquilo comovia-me tanto, enchia-me tanto a alma, eu ficava tão orgulhoso, que não fazeis ideia! Eu estava realmente ali, e ganhava o dia, palavra de honra! Pelo menos uma tardada de abraços e revigorante conversa. E ainda hoje fico à rasca quando me lembro disto.
Quando éramos miúdos, o meu avô punha-nos a bulir como gente grande, a mim e ao meu irmão Nelo. Eu era pau para toda a colher: limpava e polia os capacetes e outros amarelos com solarine Coração e uma espécie de pó de talco, lavava as viaturas, verificava o óleo e colocava água nos radiadores, anotava as quilometragens, lavava, punha a secar e enrolava as mangueiras depois dos incêndios, metia baterias à carga, enchia as baterias com água da chuva colhida num garrafão com funil que estava no telhado, ia chamar motoristas para as saídas urgentes de ambulância, servia de bombeiro, varria o "parque do material", levava avisos a casa dos bombeiros, atendia o telefone, tocava a sirene (era a parte de que eu mais gostava), hasteava as bandeiras aos domingos e dias de festa, ia à cave buscar vinho, "sempre a assobiar!", segundo ordens superiores. Enfim, eu é que era o verdadeiro Bomba. E não saía de lá. Também porque naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor - já disse.
Tenho-me esquecido de ir buscar o jornal para o meu avô da Bomba e também já há muito que não estou com o Senhor Ferreira do Hospital - gostava de lhe pedir um retrato. Aqueles dois nem devem ter reparado. Estão entretidos a meterem-se um com o outro, foram sempre assim, ou então dormem uma bela sesta, cada qual com a sua metade de JN sobre o rosto. Eu também já durmo a sesta, percebo-os agora. Quando nos voltarmos a encontrar, os três, ainda nos havemos de rir disto tudo.
sexta-feira, 6 de dezembro de 2024
Quando a "puta" tocava
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Foto Tarrenego! |
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno". Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles não confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.
Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...
Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
sábado, 4 de maio de 2024
O meu avô sabia duas anedotas
Contava o meu empolgado avô da Bomba que, em dia de festa de aniversário da prestimosa corporação lanhosense, o respectivo comandante fez o discurso que se segue: "Minhas senhoras e meus senhores, os Bombeiros da Póvoa são os melhores do mundo. Digo mais, os Bombeiros da Póvoa são os melhores da Europa. Os Bombeiros da Póvoa são os melhores da Península Ibéria. Os Bombeiros da Póvoa são até os melhores de Portugal. Os Bombeiros da Póvoa, minhas senhoras e meus senhores, excelência reverendíssima, são os melhores do Minho, os melhores do distrito de Braga. Que não haja dúvidas: os Bombeiros da Póvoa são aos melhores da Póvoa. Vivam os Bombeiros da Póvoa! Vivam e bem hajam! Tenho dito."
E, pronto, era a anedota. Uma das duas anedotas do meu avô, a principal. E hoje é Dia Internacional do Bombeiro. Vivam todos os bombeiros do mundo inteiro!
sexta-feira, 19 de abril de 2024
A Festa da Bomba
Foto Tarrenego! |
A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes do Santo António, era de arrebenta. Só de altifalantes - sempre os altifalantes! - eram dois dias, quase três, e coisa profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores: "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto. Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, havia discos pedidos - "E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da minha avó e o verde tinto do meu avô, que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro pela minha querida tia Laura, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia que afinal era a fénix renascida, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. De padiola. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam demais aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Pensava que, às tantas, a Festa da Bomba era essencialmente aquilo - aquela bebedeira geral, eucarística, redentora e uniformizada, em descompassada ordem unida. E achava bem. E quero acreditar que nunca mais na vida tive pensamentos tão acertados.
Os reforços vinham de motorizada
Foto Hernâni Von Doellinger |
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina e galões no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.
Quando o monte ardia, os bombeiros iam e pronto. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Tolos porém despachados e íntegros. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel.
Pelo menos em Fafe era assim, e não havia razão de queixa.
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e, com isto do entretanto profissional, perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.
Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.
P.S. - Publicado aqui no dia 11 de Setembro de 2022. Os Bombeiros de Fafe fazem hoje 134 anos.
segunda-feira, 11 de setembro de 2023
domingo, 11 de setembro de 2022
Os reforços vinham de motorizada
Foto Hernâni Von Doellinger |
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina e galões no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.
Pelo menos em Fafe era assim, e não havia razão de queixa.
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e, com isto do entretanto profissional, perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.
Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.
P.S. - Hoje é Dia Nacional do Bombeiro Profissional.
quarta-feira, 7 de setembro de 2022
Na prise... e de braço de fora
Foto Tarrenego! |
Nenhum deles, porém, interessa para o meu assunto. Eu quero é falar do carro que domina a cena. Uma velha Austin, refugo inglês da Segunda Guerra Mundial, tal qual os pesados capacetes pretos para incêndios, os cintos com machadinha e tudo e os blusões de serviço, iguais aos dos soldados nos filmes. Foi material que deu jeito, que cumpriu por muitos e bons anos. Menos, se não me engano, as sinistras máscaras antigás, que só serviam para as minhas brincadeiras de miúdo e ficavam muito bem em cima dos armários.
O carro tinha nome, chamava-se Carrinha e, de acordo com o "MG" da matrícula, ainda deverá ter passado pelas mãos do Exército português antes de chegar a Fafe, orgulhosamente de volante à direita e "piscas" de puxar por um cordel, como o coiso do fradinho das Caldas. Tinha também manias e birras, provavelmente derivado à idade, e constava que só o Casimiro das Caixas lhe conhecia as neuras e sabia fazer-lhe as vontades todas - o Casimirinho era, pois, o nosso especialista em Carrinha.
A Carrinha apareceu na minha vida já completamente coberta por uma chapa ondulada em forma de U invertido e com uma grossa lona e correias de cabedal para fechar atrás. E foi o meu primeiro e único carro. Quer-se dizer: o carro não era meu, nunca foi meu, nunca o levei para casa nem dormi com ele, mas a verdade é que nunca conduzi mais nenhum. E conduzir talvez também não seja o verbo adequado ao caso, portanto passo a explicar:
Mal dei fé que chegava aos pedais, o que eu fazia era ligar o motor e solavancar as mudanças até que uma delas, uma qualquer, pusesse o carro a andar. Às vezes calhava para a frente, outras vezes calhava para trás. Viajava imensos dois, três metros, e invertia a operação, sem curvas, novamente com a alavanca à sorte, voltava ao exacto centímetro de partida e depois desaparecia dali a todo o gás, antes que alguém me descobrisse o sítio das orelhas e me enfiasse dois ou três bofardos à traição. Esta parte era muito importante.
Uma vez o quartel da Rua José Cardoso Vieira de Castro entrou em obras, crescendo para a frente, e os carros dos Bombeiros mudaram-se provisoriamente para uma garagem muito grande do "benfeitor" José Freitas Nogueira, bastava dobrar a esquina, no encontro da Rua Monsenhor Vieira de Castro com a Rua Dr. José Summavielle Soares, quase em frente ao campo de futebol. Seria mais ou menos por onde depois se estabeleceu a oficina do Evaristo e por onde parece que agora vai medrar mais uma "grande superfície", paz à alma do comércio tradicional. Era um enorme portão verde e tinha lá dentro, assim que se entrava, uma rampa muito jeitosa para as minhas habilidades. Sobretudo ao baixo. Melhor ainda: ali o meu avô não ouvia as coças que eu dava na desgraçada caixa de velocidades da pobre Carrinha, gemente e ganinte por todos os lados. Bons tempos...
Dei também as minhas voltas no carro de bois do Sr. José do Santo e, com expressa licença da minha mãe, na carroça do Moniz azeiteiro ("Os azeites do Moniz são os melhores do País", dizia na retaguarda), mas, francamente, não eram a mesma coisa. Não me enchiam as medidas. Nem os carrinhos de choque, de que fui, não é para me gabar, prestigiado ainda que bissexto praticante. Não. Nada. A Carrinha foi o meu primeiro e único carro. Como no amor. Nunca mais quis outro.
quarta-feira, 31 de agosto de 2022
A Festa da Bomba
Foto Tarrenego! |
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro pela minha querida tia Laura, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia que afinal era a fénix renascida, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. De padiola. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam demais aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Pensava que, às tantas, a Festa da Bomba era essencialmente aquilo - aquela bebedeira geral, eucarística, redentora e uniformizada, em descompassada ordem unida. E achava bem. E quero acreditar que nunca mais na vida tive pensamentos tão acertados.
sexta-feira, 19 de agosto de 2022
Quando a "puta" tocava
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Foto Tarrenego! |
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno". Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles não confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.
Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...
Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
Bruxedos e outros medos
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