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quinta-feira, 24 de abril de 2025

Em Fafe, resistimos!


Foi ontem inaugurada, no Arquivo Municipal de Fafe, a exposição "Em Fafe, resistimos!", que ficará patente ao público até 30 de Junho. A mostra, adianta o Município, "debruça-se sobre os contextos e lugares do período antecedente ao 25 de Abril de 1974, com o foco «Resistência ao Fascismo em Fafe», e oferece, através de elementos gráficos, peças, fotografias, vídeos e documentos históricos, um olhar profundo sobre a repressão, a luta pela liberdade e os rostos que enfrentaram o regime."
Toda a informação e horários, aqui.

segunda-feira, 31 de março de 2025

Era o Dia dos Enganos

Quase que passa despercebido, mas amanhã é Dia dos Enganos, como antigamente se chamava em Fafe ao Dia das Mentiras. Mas é assim: com isto das eleições e da guerra, das empresas, obras em casa e comissões de inquérito, das redes sociais, dos jornais e das televisões sensacionalistas, que são todos e todas, a mentira foi sorrateiramente metida a cotio, normalizada, e agora todos os dias são dia das mentiras, embora se chamem fake news para não darem muito nas vistas. Resultado: com tanta mentira e tanto mentiroso, quase nem damos fé da velhinha efeméride residente do primeiro de Abril. Mas quereis saber?
Fafe daquele tempo celebrava entusiasticamente datas assim importantes, como o Dia dos Enganos. Datas patrióticas e etnográficas, civilizacionais. Havia respeito pela História e pela tradição. Brincavam-se brincadeiras educativas, nacionalistas e saudáveis, muito bem aprendidas, éramos a mocidade que passa.
Pregavam-se partidas tão engraçadas! No Dia dos Enganos saíamos para a rua, ali no nosso Santo Velho, estrategicamente colocados entre os tascos do Paredes e do Zé Manco, e dizíamos a quem passava: - Ó senhor, olhe o que lhe caiu!...
E o senhor, que podia muito bem ser uma senhora, mas geralmente era um moço ou uma rapariga mais ou menos da nossa idade, o senhor respondia, rimando: - Foi um peido que me fugiu...
Quer-se dizer: olhe o que lhe caiu - foi um peido que me fugiu. Estais a ver a piada? Estais a ver a categoria? Aquilo é que era, antigamente! Era assim todos os anos, à esquina, que bem que passávamos o Dia dos Enganos! Era de rir. Ríamo-nos muito com divertimentos assim de peidos, biológicos ou engarrafados, ali no nosso cantinho, para que é que precisávamos de brinquedos a sério e de mundo?
Para além disso, tínhamos a velha nota de vinte escudos largada no passeio como que perdida e presa por uma invisível sediela que, escondidos, puxávamos repentinamente e às prestações mal algum transeunte ensaiava o gesto para apanhá-la, em frente à porta envidraçada do novíssimo Café Chinês. Ele a baixar-se e a nota a fugir-lhe à frente dos pés, parava, a baixar-se outra vez e ela a fugir-lhe outra vez, aos saltinhos, como se fosse viva, e outra vez, e outra vez, como num filme do Charlot ou do Pamplinas mas ao vivo e a cores. Ai, era realmente de rir! Claro que também era um risco: os vinte paus deviam ser devolvidos a casa, de onde alguém os desencaminhara como quem não quer a coisa, e às vezes nunca se sabe. Vinte escudos era a nota mais pequena e significavam muito dinheiro para quem não tinha nada. Vintes escudos desaparecidos eram como hoje um desfalque de milhões, davam para muito pão, havia fome e a pobreza morava com a gente.
Ah, o Dia dos Enganos! Era tão bonito! Agora é todos os dias, e já ninguém liga.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Grândola é na Galiza

Houve quem ficasse muito admirado, mas sem razão. No último sábado, em Vigo, na Galiza, num jogo de futebol da primeira divisão espanhola, adeptos do Bétis, de Sevilha, entoaram cânticos fascistas e fizeram a saudação nazi. À saída, para além da derrota por 3-2 com o Celta, levaram também com "Grândola, Vila Morena" e a voz de Zeca Afonso ecoando no Estádio de Balaídos.
Não foi por acaso. Para começar, é tido como certo que a canção "Grândola, Vila Morena" foi estreada por Zeca Afonso, isto é, cantada em público pela primeira vez, exactamente na Galiza, em Santiago de Compostela, no Burgo das Naçons, no dia 10 de Maio de 1972. O Zeca, é também assim que ele é conhecido e referido pelos galegos de média cultura, passou largas temporadas na Galiza, deu por lá inúmeros concertos, andou e cantou por Lugo, Ourense, Pontevedra, Vigo e outros adiantes, fez imensos amigos, tinha e tem uma legião de fiéis admiradores, as comemorações e homenagens sucedem-se ainda hoje. Em Compostela há o Parque José Afonso e mantém-se em actividade a AJA Galiza - Associaçom José Afonso. Nos bares e ruas de Compostela canta-se e festeja-se "Grândola" como quem canta e festeja a "A Rianxeira". Não sei como é agora, mas ainda aqui há uns anos havia um pub lá para as traseiras da famosa catedral, a Casa das Crechas, que passava constantemente a música de Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Francisco Fanhais, Luís Cília, Fausto, Vitorino e por aí fora, mas Zeca Afonso sempre! Porque na Galiza pensa-se e sente-se que o 25 de Abril também lhes pertence.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

As paredes tinham ouvidos. E os soalhos também.

No tempo em que as pessoas falavam, as paredes tinham ouvidos. E os soalhos também. Mas as pessoas falavam, mulheres e homens, porque era preciso, falar era respirar, era prova de vida, e não vai assim há tanto tempo. Os cafés, as mesas de restaurante costumavam ser sítios de conversa, de tertúlia, de crítica, de protesto, de esgrima de argumentos. De vida. Ainda os nunos rogeiros e os marcelos rebelos de sousas não tinham sido inventados pela televisão e já nós sabíamos tudo de tudo, primeiro no Peludo e depois no Peixoto, evidentemente em Fafe, que era o centro do mundo. Guerra, França, futebol, política, Mário Soares e Álvaro Cunhal, pesca e caça, religião, padres fodilhões, música, alterações climáticas, vinho, teoria da relatividade, teorias da conspiração, medicamentos, bolo com sardinhas, gajas e automóveis, festival da canção, rácios bolsistas e sobretudo motorizadas, Zundapp vs. Sachs, sabíamos na ponta da língua e cada qual dava a opinião que se impunha, a opinião definitiva. Fumava-se provisórios...
Tínhamos pontos de vista, prismas, ópticas, enfoques, perspectivas e até ângulos. Amontoávamo-nos em duas ou três mesas, perdíamo-nos noite dentro naquela conversa transversal, ecuménica, polifónica, finamente regada, em que toda a gente metia o bedelho, até os filhos da puta dos bufos da Pide, que aproveitavam para incendiar o assunto a ver o que aquilo dava. De uma forma geral, os bufos da Pide não eram nada bufos da Pide: autoproclamavam-se, gabavam-se, ameaçavam, faziam-se passar por bufos da Pide, salazares dos pequeninos, só para meterem medo, que era a coisa mais parecida com sexo que conheciam, ou para pavonearem um poder que nunca tiveram, nem em casa, onde levavam nos cornos e bico caldo. Eram filhos da puta, isso é certo, e em Fafe havia diversos.
O 25 de Abril de 1974 veio realmente liberalizar o paleio à roda do cimbalino, mas nós nem precisávamos. Já há muito que falávamos pelos cotovelos e comíamos tremoços. Ou cascas, cascas de tremoços, à falta de conteúdo e de dinheiro no bolso. Mas não interessava - a conversa, para nós, era tudo.
Portanto agora dá-me pena: de conversa, que é livre e de graça, estamos conversados - acabou-se, até no café, parece-me impossível. Eu, que actualmente não frequento, passo pelas montras e vejo: uma pessoa em cada mesa, cabeça enfiada no computador portátil, telemóvel colado ao ouvido, dedo saltitante a gatafunhar mensagens analfabetas e com carinhas redondas e amarelas e corações e dedos assim ou assado, ninguém conhece ninguém, ninguém fala com ninguém, parece que estão todos proibidos uns dos outros. Que desperdício de liberdade!...
Nos restaurantes, o mesmo desconsolo. A família senta-se à mesa e ninguém pia. Vai-se ao bolso, rapa-se do telemóvel (permitam-me que continue com a generalização, para mim aqueles aparelhos que não distingo são todos telemóveis) e ignora-se com assinalável obstinação o irmão do lado direito, o padrinho do lado esquerdo, o pai e a mãe em frente, a avó na cabeceira para pagar a conta, ainda por cima. E não são só os miúdos. Também os graúdos, nomeadamente graúdas, cinquentonas, casadas assim assim ou tias praticamente por estrear, esfregando, esfregando o ecrã da lamparina mágica, vai ser desta que vão ser felizes.
É. As pessoas julgam que falam umas com as outras, mas não falam. Aquela ideia romântica de conversa morreu e foi enterrada. As pessoas hoje em dia são perfis, esgotam-se na "conversa" com os "amigos" do Facebook que não conhecem de lado nenhum, talvez valha uma pinadela. As pessoas esbanjam todas as suas doutas opiniões, todos os seus espertíssimos achismos, na Antena Aberta da rádio Antena 1 e no Fórum Sport TV. (Desculpem-me o parêntese: para mim nem é dia nem é nada se não ouço o que têm a dizer o senhor José Fonseca, 45 anos, informático, da Amadora, sobre a problemática do Cristiano Ronaldo e da Selecção Nacional, ou o senhor Afonso Palheta, 53 anos, aposentado, do Marco de Canaveses, a propósito da política de reflorestação do País.). Depois, as pessoas chegam ao café, chegam à mesa do restaurante, ou chegam a casa, sítios da conversa antiga, cara a cara com outras pessoas de carne e osso, e ficam caladas e sós. Sós umas das outras. São criaturas sem assunto, estão vazias: já disseram tudo e não era nada.

Mas tornando à mesa do café. As cascas de tremoços eram roubadas da mesa do lado e são, é preciso que se note, o melhor que há logo a seguir aos tremoços propriamente ditos, sobretudo em caso (e era o caso) de cotão nos bolsos. Melhor, só mesmo lamber e raspar com os dentes o papel do pão-de-ló, que era a segunda coisa melhor logo a seguir ao pão-de-ló propriamente dito, que eu via ao longe uma ou duas vezes ao ano.

P.S. - A Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) foi criada no dia 22 de Outubro de 1945, alargando a acção repressiva da então extinta Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE).

sábado, 14 de setembro de 2024

O bom ladrão

Fafe, algures pelos finais da década de sessenta do século passado. Na sala de aula da agora desaparecida Escola da Feira Velha, no meio da parede, por cima do quadro negro, um Cristo crucificado. Carmona à direita da cruz, Salazar ironicamente à esquerda. Eu, que naquela altura já tinha umas luzes bíblicas, nunca percebi qual destes dois era o bom ladrão...

P.S. - Hoje é Dia da Santa Cruz.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Da pornografia às artes performativas

Foto Hernâni Von Doellinger
Riscado da lista de pagamentos da Capital Europeia da Cultura 2012, o Teatro Jordão está para ali, com todo o aspecto de abandonado e esquecido, a um mês de fazer 75 anos. É mais uma triste metáfora do desgraçado país que somos. Já li sobre reabilitações, orquestras sinfónicas, bandas, academias, artes dramáticas e visuais, universidades, estudos, anteprojectos, projectos - e nada. Tretas e mais metáforas. Havia umas obras marcadas para terem início em 2013 e eu não sei porquê mas não acredito nelas. Já não há metáforas que aguentem. Não sei o que Guimarães pensa ao certo do caso, mas a mim parece-me que o azar do Jordão é a vizinhança: o mau-olhado do Centro Cultural Vila Flor que lhe fica resvés e come tudo, tudo, tudo, como o Sebastião da ancestral cantiga.
Também não sei o que o Teatro Jordão significa realmente para os vimaranenses e se a cidade reivindica a preservação física da velha sala de espectáculos. Sei o que o Jordão significa para mim, mas a minha memória vai para além das pedras. A casa pode vir abaixo, que as recordações daqui não saem.
De Fafe, ia-se ao cinema a Guimarães. "Chove em Santiago", o filme de Helvio Soto sobre os últimos dias do governo de Salvador Allende e o golpe militar no Chile, vi-o pela primeira vez no Jordão de casa cheia e a explodir de repente numa enorme manifestação antifascista, comício de ignição espontânea, de raiva, o pessoal de pé em cima das cadeiras, de punhos cerrados e erguidos, com uma única e cada vez mais vociferada palavra de ordem - Filhos da puta! Filhos da puta!! Filhos da puta!!!
Andávamos ainda com o fogo do 25 de Abril no rabo e ninguém nos aturava. Bons tempos aqueles, havia sonhos.
O "Jordáohe", como se chama em "Guimaráes", tinha um excelentíssimo restaurante nos fundos e foi também o cinema dos meus primeiros filmes pornográficos. Era a novidade. A pornografia acabara de chegar a Portugal, com a bendita liberdade, que afinal é sempre um pau de dois bicos. Devo esclarecer, por falar nisso, que os filmes pornográficos do Jordão faziam muito mal aos intestinos, pior do que garrafão de vinho doce bebido de uma assentada. Nos intervalos era um ver se te avias para ir à retrete, filas imensas de braguilhas aflitas à porta das sentinas, porque os urinóis para o caso em apreço não serviam.
Quando me internacionalizei, um ou dois anos depois, em França, pude verificar que com os estrangeiros, muito mais batidos na matéria, a coisa funcionava de maneira diferente. Para além de cada qual poder escolher o lugar que quisesse na sala praticamente às moscas, não era preciso esperar pelo intervalo nem ir à casa de banho para esgalhar o pessegueiro - era ali mesmo, à Lagardère. Já se sabe: os castiços dos franceses, toujours en avance...

Já agora: ao contrário do que muito boa gente pensa que sabe, incluindo alguns figurões com alegadas responsabilidades literárias, "Chove em Santiago", célebre verso de abertura de um belíssimo poema de Federico García Lorca, não se refere a Santiago do Chile, mas a Santiago de Compostela. À minha querida Santiago de Compostela, pela qual o poeta e dramaturgo andaluz também se enamorou.
Lorca publicou em 1935 um pequeno livro a que deu o nome de "Seis Poemas Galegos". Em galego o escreveu e o poema mais conhecido do opúsculo é exactamente este:

Madrigal á cibdá de Santiago

Chove en Santiago,
meu doce amor.
Camelia branca do ar
brila entebrecida ô sol.

Chove en Santiago
na noite escura.
Herbas de prata e de sono
cobren a valeira lúa.
Olla a choiva po-la rúa,
laio de pedra e cristal.
Olla no vento esvaído,
soma e cinza do teu mar.

Soma e cinza do teu mar,
Santiago, lonxe do sol;
ágoa da mañán anterga
trema no meu corazón.


Agora para os mais distraídos. O texto supra, como é de norma referir, publiquei-o em Outubro de 2013 no meu blogue Tarrenego! Entretanto, o Teatro Jordão foi finalmente recuperado e reabilitado, como bem merecia. E foi inaugurado em Fevereiro de 2022. Ali funcionarão, suponho, a Escola de Artes Performativas e Artes Visuais da Universidade do Minho e a Escola de Música do Conservatório de Guimarães. Pelo menos. Por outro lado, e este é o nosso pretexto, Salvador Allende foi eleito presidente do Chile no dia 4 de Setembro de 1970.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

"Memórias da Ditadura", em Fafe


O livro "Memórias da Ditadura - Sociedade, Emigração e Resistência" é apresentado amanhã, sexta-feira, 9 de Agosto, pelas 21h30, no Salão Nobre do Teatro-Cinema de Fafe.
Esta edição bilingue, realizada com o apoio institucional da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril, é concebida pelo historiador Daniel Bastos, a partir do espólio inédito de Fernando Mariano Cardeira, e traduzida por Paulo Teixeira.
A iniciativa, antecedida pela inauguração de uma exposição fotográfica de Fernando Mariano Cardeira, alusiva à emigração portuguesa dos anos 60, que será protocolarmente doada ao Museu das Migrações e das Comunidades, integra-se na Festa do Emigrante que decorre de 2 a 10 de Agosto, em Fafe.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Lágrimas parvas por Marcelo

Junho de 1973. De visita a Londres, Marcelo é recebido por uma manifestação de protesto contra a presença de Portugal nas então chamadas províncias ultramarinas e, de uma forma geral, contra a política africana do Governo português. "Portugal no more massacres. Get out of Africa now!", lê-se em alguns cartazes de más-vindas. Eu nem queria acreditar. Fiquei de todo. Os meus olhos, virgens e patrióticos como eu inteiro, viam a preto-e-branco o que se passava no televisor do bar dos Bombeiros de Fafe, que eu tinha só para mim naquela clandestina hora do meio-dia, e a revolta transformava-se-me inesperadamente em choro. Chorei de raiva, dorido pelo Senhor Presidente do Conselho. Como se atreviam aqueles gajos?! Que vergonha! Que falta de respeito! Angola é nossa e ponto final, ainda que o caso fosse particularmente Moçambique.

No regresso a Lisboa, Marcelo foi graças a Deus surpreendido por uma manifestação espontânea muito bem organizada, uma manifestação a bem da Nação, de desagravo pessoal e de apoio às políticas africanas do Governo, uma manifestação contra as manifestações de Londres, mas com muito mais povo, muitas mais camionetas, muitos mais letreiros, muitos mais garrafões de vinho e salpicões e muitos mais Vivas!, toma lá ò camone a ver se gostas...
De certeza que foi gente de Queimadela. Queimadela estava sempre presente! "Não esperava esta manifestação, mas compreendo-a", dizia Marcelo, modestíssimo, do alto da varanda do Palácio de São Bento, rodeado pelos pândegos mandadores de Vivas!, assim à moda do nosso Velhinho, o Castro Mendes de Travassós, o trabalhista fafense, "ide por esses tascos abaixo, comei, bebei e pagai". E depois Marcelo falou de política, mas isso já não me interessava. Eu estava outra vez comovido, ranhoso, mas agora de auto-satisfação nacionalista, de respeitoso respeito a Sua Excelência. Quem me dera estar lá também com o garrafão. Ainda por cima eu nunca tinha ido a Lisboa e o vinho, certamente como a viagem, devia ser também de graça. Chorei, pois claro que chorei, e as lágrimas já me toldavam o preto-e-branco do aparelho, mas saí dali de alma lavada e, se querem que lhes diga (e ainda que não queiram), também eu algo desagravado. E então ri-me. Junho de 1973. O Marcelo era Caetano e eu, burro como uma porta, pensando que sabia tudo, ainda não sabia nada.

P.S. - Marcelo Caetano iniciou a sua visita de três dias a Londres no dia 15 de Julho de 1973, faz hoje anos. Durante a sua presença na capital inglesa, manifestações constantes condenaram o massacre de Wiriamu, em Moçambique, revelado pelo jornal britânico Times.

terça-feira, 9 de julho de 2024

O trabalhista fafense

Sei de um fafense antigo que, se fosse vivo, andaria agora por aí todo contente a festejar de porta em porta a vitória dos Trabalhistas ingleses. O famoso Castro Mendes de Travassós, o Velhinho, figura incontornável e carismática do antes e após 25 de Abril, desses intensos, gloriosos e dramáticos dias fafenses, era o nosso "trabalhista" de estimação e gritava "ganhámos!", "ganhámos!" sempre que o Labour vencia as eleições ou formava governo no Reino Unido.
O nosso herói era "trabalhista" porque, sendo salazarista, era trabalhador e pelos trabalhadores, isto é, pelo corporativismo fascista, o raciocínio pode parecer demasiado elaborado ou, por outro lado, simplista em excesso, mas não é, nem uma coisa nem outra. Vejamos: Trabalhistas portanto trabalhadores, viva Salazar!, e não era preciso ir mais longe.
A evangélica frase, na hora dos festejos, "Ide por esses tascos abaixo, comei, bebei e... pagai!" é historicamente atribuída a este extraordinário Castro Mendes, que eu ainda contactei no Liceu de Braga, onde ele era funcionário, se não estou em erro, e aliás acamaradei no seminário com um dos seus filhos.
O Velhinho era um figurão. Irredutível nas suas convicções, fiel aos seus inegociáveis princípios, toda a vida foi da situação, fosse qual fosse a situação. Ganhasse quem ganhasse, ele ganhava sempre, estava sempre ao lado dos vencedores. Era, a esse propósito, um intrépido praticante de varandismo e inflamado mandador de Vivas! Já no tempo da democracia, cheguei a vê-lo actuar na varanda do PS, em Fafe. Para além disso, sabia muito bem o que fazia e porquê, tinha um enorme sentido de humor e eu achava-lhe um piadão.
O varandista Castro Mendes era irmão do professor António Castro Mendes, considerado uma das maiores autoridades nacionais no ensino do Português, Latim, Grego ou Aramaico. Eram muito parecidos fisicamente, na marotice e até na tessitura vocal, abrangente, metálica, megafónica. Antigo padre e pregador afamado, o Dr. Castro Mendes foi meu mestre e amigo no Liceu de Guimarães. Falava, cheio de orgulho, do seu "melhor aluno de sempre", que não era eu, obviamente, eu era uma nódoa a Latim, mas um "rapazinho" também de Fafe chamado Luís Marques Mendes e a quem o experimentado professor, há quase 50 anos, augurava um grande futuro, apontando-o aos lugares mais altos da Nação. E estava certo.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Nós, os imigrantes

O meu pai foi emigrante, e nós - a minha mãe, os meus irmãos e eu - fomos quase emigrantes, só não abalámos porque entretanto o meu pai morreu de véspera, na emigração. Tive e tenho tios e tias e primos e primas emigrantes. Tenho sobrinhos emigrantes. Somos uma família de emigrantes, como Portugal é um país de emigrantes, estabelecidos pelos quatro cantos do mundo. Fafe é uma terra de emigrantes. Incomoda-me visceralmente o ódio e a estupidez que por aí medram contra os emigrantes como nós mas que vêm de fora, isto é, os imigrantes, como eram imigrantes os meus antepassados alemães e depois brasileiros, como são imigrantes todos os nossos emigrantes nos países onde trabalham. Mete-me nojo. E portanto, o seguinte, ó fascistas de carregar pela boca: "nem mais um", como vos mandam dizer e dizeis, a puta que vos pariu!

(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!)

terça-feira, 4 de junho de 2024

"Memórias da Ditadura", no Porto


O livro "Memórias da Ditadura - Sociedade, Emigração e Resistência" é apresentado no Porto, no próximo sábado, dia 8 de Junho, pelas 16 horas, na Livraria Unicepe, à Praça de Carlos Alberto. A obra, concebida e realizada por Daniel Bastos, a partir do espólio fotográfico inédito de Fernando Mariano Cardeira, antigo oposicionista, militar desertor, emigrante e exilado político, tem edição bilingue (português e inglês), traduzida por Paulo Teixeira, e é prefaciada pelo historiador e investigador José Pacheco Pereira, que se encarregará da apresentação.
Escreve Daniel Bastos: "No ano em que se assinala meio século de liberdade e democracia em Portugal, a publicação deste livro, que conta com o apoio institucional da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril, constitui uma oportunidade simbólica de revisitar o país como era há 50 anos. Mormente o quotidiano de pobreza e miséria em Lisboa, a efervescência do movimento estudantil português, o embarque de tropas para o Ultramar e os caminhos da deserção, da emigração "a salto" e do exílio, uma estratégia seguida por milhares de portugueses em demanda de melhores condições de vida e para escapar à Guerra Colonial nos anos 60 e 70."

terça-feira, 28 de maio de 2024

Mais rápido que uma linha recta

A menor distância entre dois pontos é uma recta? Nem sempre. Às vezes a menor distância entre dois pontos pode ser uma curva. Aqui não se trata de ciência, é mero exercício de memória. Por exemplo: lembram-se do Generoso? Claro que não se lembram do Generoso. Mas eu explico: o Generoso era um extremo brasileiro que jogou no SC Braga bem no início da década de setenta do século passado, por alturas da segunda divisão, se não me engano. O Generoso (e decerto um nome assim nunca foi tão bem empregue), o Generoso, dizia eu, era tão rápido, corria tanto, que, quando atacava e levava um adversário à ilharga, despossuído de outros e melhores argumentos técnicos, chutava a bola para a frente, saía do relvado, contornava o defesa pela pista de cinza, e - espantem-se! - ainda chegava lá primeiro.

Vem hoje a propósito. Para que nos entendamos, o relvado e a pista de cinza eram no Estádio 28 de Maio, em Braga. Sim, antes do 25 de Abril de 1974, o Estádio 1.º de Maio chamava-se Estádio 28 de Maio. O que só demonstra (raciocínio palerma e suinamente fascistóide) que a Outra Senhora levava 27 dias de avanço em relação a Esta Senhora e que as revoluções cometem-se sobremaneira para mudar os nomes das ruas, praças, pontes, estádios e outro imobiliário. Mas eu também vi o Generoso executar a sua supersónica façanha no então pelado do meu Fafe, onde o resvés com os pilares de cimento e com os tubos metálicos da vedação conferia um toque extra de emoção e perigo ao espectáculo. O Generoso, sempre na mecha e a passar calafriantes tanjas ao excelentíssimo público e ao desastre, trazia-me à cabeça o encantatório e fanhoso reclame altifalante das barulhentas motas do poço-da-morte, nos dias dos 16 de Maio e da Senhora de Antime, primeiro no Largo ou na Feira Velha e depois no sítio onde agora está o Pavilhão Municipal. Também ali, no campo da bola, havia "arrojo, coragem, audácia, cooommm-ple-to desprezo pela vida". E eu, palavra de honra, sempre achei que o Generoso devia jogar de capacete... 

P.S. - Publicado aqui originalmente no dia 13 de Novembro de 2022, a propósito do Dia Mundial da Generosidade. Ou Dia Mundial da Bondade. Ou Dia Mundial da Gentileza, como lhe chamam no Brasil. Generoso chamava-se José Carlos Generoso, jogou pelo SC Braga na época 73/74 e faleceu em Setembro de 2021, com 77 anos.

domingo, 12 de maio de 2024

Crocodilos no Jardim do Calvário

Foto Hernâni Von Doellinger

O Jardim do Calvário, em Fafe, recebe a partir de amanhã um exposição de dinossauros. E isso é porreiro. Quinze dinossauros, concretamente, e em tamanho natural, certamente uma considerável despesa em penso até ao próximo dia 16 de Outubro. E é, de alguma maneira, um regresso às origens. Porque aquele bucólico espaço, cujo lago de bolso, para além de cisnes ou pelo menos patos, já teve barcos ou pelo menos barco, houve uma altura, e não vai assim há tanto tempo, em que tinha também crocodilos. E deviam ser uns crocodilos enormes.
Os crocodilos faziam um barulho medonho à noite e não deixavam descansar o Mecas, que morava ali ao lado, em casa do padrinho, se bem me lembro. O Mecas ia depois para a fábrica (a Fábrica do Ferro, é claro) e, embora fosse por natureza um trabalhador exemplar, passava o dia inteiro a dormir lá em cima dos fardos de algodão exactamente por causa dos estupores dos crocodilos - conforme ele próprio explicava aos chefes, mestres, encarregados, afinadores e até patrões quando o apanhavam na sorna, que era todos os dias.
Sei quase tudo o que verdadeiramente interessa saber sobre o Jardim do Calvário, porque eu e o Jardim somos uma história muito antiga. Foi ali que eu me iniciei no mundo do espectáculo, evidentemente como espectador, com lugar cativo no serão das inesquecíveis Festas da Vila. Ano após ano, antes da marcha e do fogo, passaram-me pelas mãos a Senhora Dona Amália, a Hermínia Silva - que, para além do indispensável Pacheco, trazia atrás o filho, o tenor Mário Silva -, o Rodrigo, a Tonicha, o José Cid, o Paco Bandeira, a Dina, os putos do Mini Pop que tinham ido ao Festival da Canção e depois viriam a ser os Jafumega, o Hugo Maia de Loureiro que era cinturão negro e campeão de judo e ofereceu no focinho aos assobios de uns tantos por causa de um playback mal explicado, o Nicolau Breyner e o Herman José que andavam a passear pelo País a rábula do "Senhor Contente, Senhor Feliz", eventualmente a Lenita Gentil, a Florência, o Armando Gama e o Marco Paulo, e o mais certo é ter levado também com o Nelo Silva e com os Broa de Mel, com o Manuel Morais e com o "Cantinflas Português" que era uma coisa que só vista...
Estão a ver, portanto, o meu currículo. O nosso currículo. Eu e o Jardim do Calvário. Eu entrava à sorrelfa, todos os anos variando de expediente, porque os espectáculos eram a pagar, tinham plateia para a burguesia local, comerciantes e pequenos industriais, respectivas matronas e extremosa prole, que se acadeiravam no espaço de cimento aparentemente afectado por um cataclismo de filme e pomposamento chamado de "rinque de patinagem", os mais ricos dos mais ricos nas filas da frente, e à volta da vedação, de pé, apertadinhos e aos apalpões, era a geral, éramos nós, pessoal do rés-do-chão mas os que batíamos mais palmas quando tínhamos as mãos de vago.
Se não estou em erro, terá sido ali mesmo que começou essa tradição tão festiva e tão fafense do "cuelho", também chamado de empernanço ou, cientificamente falando, "estou a ver passar os ciclistas"...

No Jardim do Calvário iniciei-me também nos concursos do vestido de chita e, confesso, nos fumos. Pelos nove-dez anos, ia fumar para as escadas do inamovível portão das traseiras, o sítio de Fafe onde se faziam as coisas feias. O Bílio - sim, esse Bilinho, meu querido companheiro de infância - aparecia com meio maço de Definitivos, que ali queimávamos num instante, antes que alguém nos visse e fosse contar à minha mãe. Depois eu ia-me confessar. Porque Deus vê tudo e fumar era um pecado muito grande, um dos maiores logo a seguir à masturbação. Não fiquei com o vício. Do cigarro, quero dizer.
Pelos dezoito-dezanove, já nas escadas da frente, lá no alto, fui apresentado à liamba, que tinha vindo de Angola com uma mão à frente e outra atrás e era muito fixe. Nunca percebi a moca dos outros, sempre pensei que estavam apenas a armar-se, porque a mim a coisa não fazia absolutamente nada, tirando os engasgos. E também não fiquei freguês.
Ao longo dos últimos anos, sempre que pude e posso, voltei e volto ao Jardim, para mostrar aos amigos, para ouvir os concertos da Banda de Revelhe (era o sítio certo, valha-me Deus!), ou apenas, e dizer aqui apenas é uma rematada tolice, para, sozinho, envergonhadamente comovido, apaziguar as saudades.

Mas aos dinossauros é que eu não vou. Acho muito bem que os dinossauros estejam em Fafe, já disse, e estimo-lhes os maiores sucessos. Porém é no Jardim e a pagar, e eu não dou para esse peditório. Por uma questão de princípio. Não sei como é que as coisas vão ser organizadas, se os fafenses poderão desfrutar do seu Jardim do Calvário durante o tempo da exposição, se poderão levar os seus filhos aos baloiços, se poderão passear livremente com a família por aqueles caminhinhos de brincar, se poderão ocupar um banco sem serem presos. Isto é: será obrigatório comprar bilhete para simplesmente entrar no Jardim?
O próprio Município cataloga o Calvário como o "mais importante jardim público da cidade". Público. E no entanto o Jardim do Calvário parece às vezes privatizado por pessoas que pensam que o jardim é só delas, e não é, o jardim é de todos, e eu não percebo nada disto. Sempre me incomodou a visão merceeira do serviço público mas pouco, a ausência de bom senso, o quero, posso e mando de quem não respeita o povo nem cuida dos mais pobres. Sempre me fez espécie a esperteza saloia de convidarmos visitas para nossa casa e cobrarmos bilhete à entrada da sala de estar.
Pagar para entrar no Jardim do Calvário, jardim público? Nunca! Quando eu era pequeno e me diziam que estávamos no fascismo, eu suspeitava que fascismo era exactamente aquilo: pagar para entrar no Jardim do Calvário ou para ir ao escorrega. Portanto não vou aos dinossauros. Por uma questão de princípio, repito. E também já não tenho idade para saltar muros...

P.S. - Publicado aqui originalmente no dia 9 de Setembro de 2022, e daí a história dos dinossauros, que é dessa altura e convém contextualizar. Como combinado, estamos a recordar alguns dos meus apontamentos alusivos ou de certa forma ligados aos nossos 16 de Maio, isto é, às Feiras Francas de Fafe, à nossa ruralidade antiga e irrevogável.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Memórias da ditadura


O livro "Memórias da Ditadura - Sociedade, Emigração e Resistência" será lançado depois de amanhã, sexta-feira, dia 12 de Abril, pelas 18 horas, na Associação 25 de Abril, em Lisboa. A obra, concebida e realizada por Daniel Bastos, a partir do espólio fotográfico inédito de Fernando Mariano Cardeira, antigo oposicionista, militar desertor, emigrante e exilado político, tem edição bilingue (português e inglês), traduzida por Paulo Teixeira, e é prefaciada pelo historiador e investigador José Pacheco Pereira. A apresentação estará a cargo de Manuel Pedroso Marques, militar, antigo exilado político e presidente da RTP
Escreve Daniel Bastos: "No ano em que se assinala meio século de liberdade e democracia em Portugal, a publicação deste livro, que conta com o apoio institucional da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril, constitui uma oportunidade simbólica de revisitar o país como era há 50 anos. Mormente o quotidiano de pobreza e miséria em Lisboa, a efervescência do movimento estudantil português, o embarque de tropas para o Ultramar e os caminhos da deserção, da emigração "a salto" e do exílio, uma estratégia seguida por milhares de portugueses em demanda de melhores condições de vida e para escapar à Guerra Colonial nos anos 60 e 70."

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Eram outros carnavais

Foto Hernâni Von Doellinger
Na minha terra, naquele tempo, festividades assim familiares e praticamente religiosas como por exemplo o Entrudo tinham as suas normas, liturgia própria. Exigiam pompa e circunstância. Em Fafe, pelo Carnaval, a grande tradição eram, se me dão licença, os peidos-engarrafados lançados no Cinema. Uma lixeira de confetes e serpentinas, alguns pares de estalos, encontrões, ameaças e correrias tolas, mas sobretudo peidos-engarrafados, um fedor que não se podia mas uma grande risota, ou se calhar um grande risoto, como hoje em dia será mais fino dizer. Peidos-engarrafados e pimenta. Exactamente, pimenta culinária sacudida dos camarotes para cima da plateia. Enquanto isso, o filme. De preferência uma coboiada, com muitos tiros e estrondosas cavalgadas, mas normalmente não, porque o "programador" tinha uma ideia morcona de divertimento e folia, em nome de Deus, Pátria e Família. Anos sessenta e setenta do século passado - Portugal era assim, regra geral. Um país a bem da Nação. E há por aí uns que tais que querem esta merda de volta.
Durante o resto do ano, no Cinema, só eram permitidos peidos biológicos, caseiros, que, não desfazendo, também eram uma categoria, e para além disso tínhamos o Moisés, que isso então nem se fala! Eram peidos subversivos, contra o governo, que nos alimentava a couves e tínhamos de as comprar, porque nem os ricos as davam - vendiam-nas como se precisassem ou preferiam deitá-las aos porcos, que infelizmente não éramos nós, os pobres, no caso em apreço.

No nosso Carnaval havia corso pelas ruas do centro da vila. E o rei momo era o Tónio da Legião, bonacheirão, afavelmente decilitrado, com coroa, manto e barbas a condizer, e só podia mesmo ser ele, no trono, lá do alto do carro alegórico, palácio ou castelo, olhando de lado para o mundo. Não me lembro se lhe deram rainha. O Tónio da Legião tinha uma queda tremenda para a amizade e para a cozinha, mas isso não vem hoje ao caso. E o Aristides Carteiro, que era um senhor e praticava humorismo nas horas vagas, abria o cortejo mascarado de ciclista, realmente um disfarce à altura do seu insuspeito porte atlético.

Pelo Entrudo, em Fafe, queimava-se o Pai das Orelheiras, velha tradição popular, de afirmação de rua, que andou perdida durante anos e que a Câmara Municipal resgatou em 2017, se não me engano. No nosso Santo Velho nós fazíamos a fogueira e queimávamos o figurão. Era o ponto alto do dia, que por acaso era à noite. As nossas mães diziam-nos para não brincarmos com o fogo, porque senão, quando fôssemos dormir, iríamos mijar na cama. Nós brincávamos na mesma e ao entrarmos em casa para dormir levávamos logo o ensaio do costume, mesmo antes de se saber se mijávamos ou não, e eu achava isso muito injusto e provavelmente ilegal.
Não me vou armar em Freud, mas naquele dia elas vestiam-se deles e eles vestiam-se delas. Era uma ocasião muito esperada. Uma oportunidade. Adultos, casados e afins, saíam para a rua aos pares com as roupas ao contrário e as caras tapadas com caretas de papelão compradas no Rates, que tinha tudo mesmo antes de terem sido inventadas as lojas que têm tudo, farmácias à parte e hoje em dia os talhos. Assim disfarçados e de boca calada, os pares de foliões metiam-se com os vizinhos, e o grande divertimento era tentar descobrir quem seriam os tratantes, desconfiando-se sempre deste ou daquela, tu a mim nunca me enganaste...
A coisa às vezes acabava à pancada, mas quê, era Carnaval e ninguém levava a mal. Além disso, estávamos em Fafe e tínhamos os peidos. Os peidos-engarrafados, quero dizer.

É, bons tempos: pobretes mas alegretes. Fafe tinha belas tradições. Era tudo muito bonito e os peidos eram o nosso escape natural, o epítome do divertimento que se podia.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Quando o 1.º de Maio era no dia 28

Antigamente o 1.º de Maio era no dia 28 do mesmo. Quando digo antigamente quero dizer antes do 25 de Abril de 1974, que já é antigamente que chegue - que o confirmem os deputados da nação, cujos mais de metade decerto ainda não tinham nascido quando a coisa se deu, e isso nem é defeito. Um por exemplo: o estádio do SC Braga na Ponte, antes da extraordinária Pedreira do arquitecto Souto Moura, chamava-se Estádio 28 de Maio. E chamava-se assim por questões políticas e não por ordem de calendário litúrgico, rito bracarense. Chamava-se 28 de Maio glorificando o golpe militar que naquela data, em 1926, derrubou a Primeira República e abriu caminho à ditadura do Estado Novo. De corte fascista, o Estádio 28 de Maio, que ainda está de pé e funciona pelo menos para o futebol feminino, tentava aparentar-se e rivalizar com o Estádio Nacional, no Jamor, ou em Oeiras, consoante a dor de cotovelo de cada qual, e foi inaugurado, em 1950, por Salazar e Carmona, que assim dito até parecem uma alegre sociedade de costureiros. Veio a revolução dos cravos e o estádio mudou de nome, passou a chamar-se Estádio 1.º de Maio, viva o Dia dos Trabalhadores, viva a classe operária!, mais ajuizado seria que se tivesse chamado sempre Campo da Quinta da Mitra, como começara por ser.
Em todo o caso, mudar o nome do velho estádio de Braga, de 28 de Maio para 1.º de Maio, só demonstra (num raciocínio assumidamente palerma e suinamente fascistóide) que a Outra Senhora levava 27 dias de avanço em relação a Esta Senhora e que as revoluções cometem-se sobretudo e quase só para mudar os nomes das ruas, praças, pontes, estádios e outro imobiliário.
Querem outro por exemplo? O Estádio 25 de Abril, de Penafiel. Antes da "política", aquele terreiro chamava-se Campo das Leiras. E que mal é que tinha o nome?

O 28 de Maio de 1926 foi praticamente como o 25 de Abril de 1974, mas em versão fascista. Começou em Braga e chegou a Lisboa atrás do cavalo branco de Gomes da Costa, uma espécie de chaimite daquele tempo.
Antes do 25 de Abril, os 28 de Maio eram celebrados com desfiles, por assim dizer, militares: Mocidade Portuguesa, Legião Portuguesa, certamente bombeiros e escuteiros, provavelmente ranchos folclóricos e evidentemente soldados propriamente ditos. A Veneranda Figura lá estava, mas o de Santa Comba se calhar não, porque constipava muito de saísse à rua e o povo fazia-lhe espécie. Havia discursos, condecorações geralmente póstumas, por razão de força maior, isto é, derivado ao Ultramar, criancinhas órfãs vestidas à adulto, jovens viúvas atarantadas e chorosas, pais abruptamente sem filhos mas com medalha espetada no peito, numa dor sem fim, e sobretudo muitas fanfarras, a bem da Nação. O bom povo português assistia a tudo patrioticamente embebecido, se não me engano com aguardente, porque as cerimónias eram de manhã.
Uma vez eu também lá fui. Estava no seminário, em Braga, e os padres levaram-nos. Fomos portanto levados. Gostei muito, porque o meu tio Zé de Basto era corneteiro na fanfarra do Regimento de Infantaria 8 e eu já não o via há uma temporada. Pusemos a conversa em dia.
Resumindo e concluindo: Portugal continua a ser o mesmo, fascistazinho, só o tio Zé é que já não anda na tropa...

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Lá vamos cantando e rindo, outra vez?

Foto Expresso de Fafe
Havia necessidade? Havia mesmo necessidade de acordar fantasmas, de incendiar revivalismos bacocos, de lançar a confusão e alimentar a discórdia, de desensinar, logo agora em tempo de pós/pré-fascismo consoante o ponto de vista? Era assim tão imperioso desenterrar um dos velhos símbolos das bandeiras, estandartes e guiões da Legião Portuguesa e da Mocidade Portuguesa - a Cruz de Avis? Estamos assim tão saudosos da liturgia do Estado Novo? É preciso ser-se muito ignorante ou então distraído ou então tolo. Ou então tudo. E não me venham falar da farpela de Nuno Álvares Pereira, de semióticas e de ordens religiosas ou militares, que eu já dei para esse peditório, e estou farto de histórias. 
Vi esta tristeza há pouco, no Expresso de Fafe. Tanto quanto percebo, o novo velho "monumento" ficou ao léu exactamente no dia 25 de Abril, como um insulto porventura, a propósito da inauguração da Praça Santo Condestável, junto à Igreja Matriz. Mas o que quis com isto a Câmara de Fafe? Reabilitar, isso eu sei. Mas reabilitar o quê? Os antigos campos de milho do Costa do Assento ou a execrável ditadura e respectivo folclore?
Porra!, era mesmo necessário?...

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...