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sábado, 13 de julho de 2024

Portugal gaiteiro e excursionista

Foto Tarrenego!
O meu avô da Bomba jurava que nunca pôs nem nunca na vida poria pé na praia. Que era muito sol ao desamparo, areia demais para a sua camioneta. Queixava-se: a água estava constantemente molhada e, ainda por cima, salgada. O meu querido avô era "uma pessoa muito doente" e precatada quanto ao sal. Portanto, o sol e o sal. "Se ainda ao menos houvesse a sombrinha de uma árvore", dizia, molageiro, aí que contassem com ele nem que fosse só para a soneca da tarde. Mas o meu avô era um exagerado, um mentirosinho sem tenção de ofensa - e aquela jura eu sabia que era a mangar.
Para o avô da Bomba, como para todo o fafense que então se prezasse, a palavra praia queria dizer Póvoa de Varzim. Exactamente. Ir à praia e ou ir para a praia (conceitos que importa diferençar) era ir à Póvoa ou ir para a Póvoa, via Famalicão. E no entanto o meu avô conhecia também satisfatoriamente os longínquos areais de Ofir, da Figueira da Foz e da Nazaré, o que já não era brincadeira! E de onde é que lhe vinha esta extraordinária mundivivência, este cosmopolitismo fafense tão antes do tempo? Pois bem: o meu avô organizava excursões - dois dias ao Alto Minho, com pernoita em Viana do Castelo, dentro do autocarro, no Largo da Agonia a esbordar de camionetas e parolos como nós, e umas senhoras cá fora a fazerem café de cafeteira em máquinas a petróleo, à luz do petromax até que o sol nascesse. Três dias a Fátima, pelo 13 de Maio. Ano sim, ano não. Partida e chegada no quartel dos Bombeiros, sempre, então na Rua José Cardoso Vieira de Castro, ao lado da garagem do Zé Bastos e entre os dois palacetes. Com as estradas que tinha, Portugal era naquele tempo um país imenso. Ir de Fafe aos Arcos de Valdevez ou a São João da Madeira, por aquela altura, era como embarcar por engano numa expedição de Júlio Verne ao fim do mundo. Agora imaginem uma viagem praticamente de circum-navegação com escala no Portugal dos Pequeninos e no Mosteiro da Batalha, e com procissão de velas e tudo. Era um verdadeiro acontecimento, um marco de vida!

O meu avô era um videirinho, já aqui contei. Tinha casa e salário de quarteleiro dos Bombeiros, não sei se era muito ou pouco, mas não perdia oportunidade de fazer dinheiro extra no que lhe estivesse mais à mão: o tasquinho na cave do quartel, os tremoços, os bolinhos de bacalhau e o vinho na Festa da Bomba, a aguardente e o vinho, sempre o vinho, nas sessões nocturnas do cinema ao ar livre na parada das traseiras, muito antes de a sétima arte descer ao campo de futebol, a banca de sapateiro por baixo das escadas que subiam para o salão de festas, umas refeições especiais encomendadas por um certo grupo de amigos, respeitosos admiradores das mãos de ouro da minha avó para a cozinha. Uma vez há mais de cinquenta anos o papa Paulo VI veio a Fátima e pouca gente tinha televisão em casa. No salão dos Bombeiros foram montados um projector e uma tela para a transmissão em directo e em "ecrã gigante", com entradas a pagar. A sala encheu, o dinheiro da receita revertia naturalmente para a Associação Humanitária, mas de certeza que o avô também conseguiu sacar dali algum, nem que fosse a vender rebuçados para a tosse ou cascas de amendoins...
Ora é aqui que encaixam as excursões, que os candidatos a excursionistas pagavam em suaves prestações semanais desarriscadas nuns cartõezinhos que o meu avô mandava fazer na tipografia. Isto para aí durante um ano. O avô da Bomba fazia a cobrança aos sábados ou domingos de manhã, não sei precisar. Ia de motorizada e às vezes levava-me, primeiro numa Florett e depois na Lambreta, uma Vespa azul, antes e depois de haver sentidos proibidos nas ruas de Fafe. Para o meu avô nunca houve, o caminho foi sempre o mesmo e tinha sempre razão quando lhe apitavam ou gritavam para não ir por ali. Eu, nem pio...

(A Florett tem muito que se lhe diga em Fafe, era um veículo de pecado, mas por ser verdade aqui declaro que o meu avô nunca foi dado a essas actividades por assim dizer extracurriculares. A Florett calhou-lhe, e só isso...)

Mas as excursões. Eram viagens épicas, cheias de cheirinho bom a merendeiro e muitas paragens para "mudar a água às azeitonas", enjoos e borracheiras de caixão à cova. Cheiravam também a gomitado, a naftalina, a sapatos novos, a botas ensebadas de fresco, a chulé, a urina, a tabaco, a suor, a desodorizante Lander, a perfume barato, a brilhantina, a laca, a mundo. A coberto da noite soltavam-se uns traques enfeitados com risinhos solertes que ajudavam à festa. Era uma convívio muito grande. A camioneta avariava, pessoas perdiam-se. Cantava-se o "Treze de Maio", o "Queremos Deus" e "O carrapito da Dona Aurora". Rezava-se o terço ao passar a Ponte de Fão, sobre o rio Cávado, porque constava que a estrutura estava a cair de podre. Morreríamos todos muito bem - iríamos para o céu, se Deus quisesse, embora o grupo excursionista do meu avô se chamasse, com todo o mérito, "Grupo Excursionista "Os Arrebenta Pipas" - Fafe", assim tal qual, num pano hasteado por dentro no vidro traseiro da camioneta. Na Póvoa as mulheres arregaçavam saias e combinações, os homens arregaçavam calças e ceroulas e os miúdos ficavam em cuecas ou em pelote, consoante a idade, e todos se agarravam com quanta força tinham à grossa corda que ligava o mar ao areal, brincando aos sustinhos e trambolhões de felicidade histérica ali no sítio onde o mar enrola na areia, que também se cantava.
Sei disto tudo porque estive lá. Que me lembre, fui uma vez a Fátima e outra ao Alto Minho, esta ainda com o meu pai. O meu irmão Lando ainda não tinha nascido. Eu, o Nelo e a Nanda queríamos ir sempre, mas não podia ser. O meu avô não dava borlas, nem aos netos. (Na verdade, o meu avô não dava nada a ninguém. Isto é: dava os bons-dias mas pedia recibo com número de contribuinte.) Ia portante só um, e no colo da mãe, mais do que isso seria prejuízo.
O meu pai, que gostava de fazer rir a minha mãe, dizia aos dois que ficavam: "Não é preciso chorar, vós também ides. Na sombra..."

Tanto relambório para chegar aqui: herdei do meu avô o horror à praia em dias de sol e gente, mas tenho a árvore que ele reclamava. Uma árvore na praia. Encontrei-a aqui em Matosinhos, mesmo ao pé da porta, encostada à esplanada do Lais de Guia. Passo por lá todos os dias e vejo o avô à sombrinha, com os pés mansamente enfiados na areia morna. Gosto de o ver assim, peço-lhe a bênção e beijo-lhe a mão. Sossego as saudades. O avô da Bomba era molageiro e videirinho, forreta do piorio, mas é meu.

P.S. - A terceira aparição de Fátima ocorreu no dia 13 de Julho de 1917.

domingo, 14 de maio de 2023

Aparições e leitão da Bairrada

O peregrino chegou a Fátima, a mais de mil à hora, seriam talvez umas cinco da manhã, ainda a religião nem tinha aberto. Estacionou chiando pneus e perguntou, desnorteado e ofegante, como se tivesse ido a pé: - Nossa Senhora já apareceu?
- Isso foi ontem. - informou o segurança.
- E hoje?... - insistiu o peregrino.
- Não está previsto. - reportou o segurança.
- Nem um bocadinho?... - tentou o peregrino.
- Nicles batatóides! - confirmou o segurança.
- Vim de tão longe... - lamuriou-se o peregrino.
- Não posso fazer nada... - desculpou-se o segurança.
- Carago!... - protestou o peregrino.
- É a vida... - filosofou o segurança.
O peregrino cabisbaxou finalmente, disse "Prontos!..." como se isso o animasse, mas não animou e ainda por cima dizer "Prontos!..." é uma estupidez, deixou o número de telemóvel ao segurança, desse-se o caso de Nossa Senhora aparecer, deu meia-volta, meteu-se outra vez no carro e desandou para cima, nas calmas, vidro aberto, braço de fora, Mira de Aire, Alcobaça, Batalha, Nazaré, Figueira da Foz, Coimbra, Buçaco, Luso e Curia até à Mealhada. E ao leitão. O leitão, graças a Deus, aparece sempre.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O destino está no nome

Lúcia de Jesus dos Santos morreu no dia 13 de Fevereiro de 2005. Tinha 97 anos. Nascida com um nome assim, tão predestinado, a Irmã Lúcia viu Nossa Senhora em cima de uma azinheira, guardou o segredo de Fátima, entalou Salazar e a Igreja, escreveu livros de memórias, encontrou-se com papas e foi beatificada. É praticamente santa. Eu nasci Américo Hernâni Von Doellinger e, espero que me perdoem, com um nome assim escaganifobético, não tive, não tenho hipótese...

sábado, 21 de janeiro de 2023

A sagrada comunhão

Era uma vez. A minha sogra estava a ver na televisão a missa do 13 de Outubro no Santuário de Fátima. A santinha, isto é, a minha sogra, que graças a Deus não padece de fastio, antes pelo contrário, costuma almoçar cerca das 11h30, nunca mais tarde, mas a missinha tomara realmente conta dela, ensimesmada numa tremenda devoção, sem sequer deitar os olhos ao aparelho. Resolvi ainda assim espreitar à porta da sala e perguntar-lhe a medo, num sussurro, se quereria comer à horinha ou se esperávamos pelo fim das cerimónias. - No fim da santa missa!, respondeu-me com rispidez, como sempre e como se por um segundo eu lhe tivesse interrompido o Céu. Pronto: a mesa podia esperar.
Os ponteiros do relógio andaram um quarto de hora, mas a televisão não: a missa continuava no mesmo sítio. Era a comunhão e a fila de comungantes não havia maneira de chegar ao fim. A minha sogra agitava-se, os impasses incomodam-na sobremaneira, especialmente se lhe atrasarem o tacho. Levantou-se então do trono, com aqueles ruídos que fazem parte, e ordenou a todos os seus súbditos, que sou apenas eu, miseravelmente eu: - Vamos mas é comer, que isto é povo sem jeito para a sagrada comunhão!...

domingo, 21 de agosto de 2022

Não aldrabem o sinal-da-cruz, valha-me Deus!

Foto Hernâni Von Doellinger
Outro dia, nas cerimónias de Fátima, vi pela televisão e nem queria acreditar. Um sacerdote a fazer um sinal-da-cruz tão aldrabado, tão aldrabado, que se a minha mãe o visse naqueles atabalhoados preparos o mais certo era enfiar-lhe duas ou três lamparinas bem mandadas. Um padre, e ainda por cima no altar, no altar do mundo, a dar o mau exemplo, a gatafunhar um sinal-da-cruz como se fosse jogador de futebol entrando em campo. Só faltou fazê-lo três vezes a trezentos à hora, destrambelhadamente, e depois beijar o dedo ou o pulso, levantar e assoar-se à sotaina e apontar para o emblema. Bem sei que a Igreja portuguesa anda um bocadinho nervosa derivado a isso da pedofilia e outros abusos, mas, valha-me Deus, é o nosso santo-e-senha, é o sinal-da-cruz... 

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...