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sábado, 24 de maio de 2025

Éramos pelos touros

Referendo tauromáquico
Fez-se um referendo sobre as touradas - sim ou não? Os touros votaram não.

Sim, creio que se poderá afirmar, sem demasiado escândalo, que havia uma certa afición em Fafe. Uma espécie de penha taurina intermitente e inorgânica, espontânea, funcionava, digamos assim, no Peludo, café do povo, sempre que houvesse corrida na televisão, o que acontecia muito raramente e ainda a preto e branco. Gostávamos, portanto, de touradas. Éramos conhecedores, exigentes, e só nos interessavam as pegas.
As touradas eram entretém de Verão, geralmente à noite, e as nossas noites de Verão decorriam naquele bocadinho de passeio que servia de esplanada ao Peludo, na rua do Cinema e quase em frente, dois bancos corridos, de jardim, encostados à parede, e três ou quatro mesas com cadeiras a atravancarem a passagem. Estava-se bem! A tourada era lá dentro, no televisor pendurado num dos cantos da pequena sala, logo após a porta. O espectáculo começava, cortesias, cavaleiros, toureiros, matadores, bandarilheiros ou simples peões de brega, e o pessoal cá fora como se nada fosse, aquilo não interessava para nada. Porém. Tocava o cornetim a anunciar a pega, e entrávamos todos a correr para ganhar lugar e pedir mais um fino. As pegas é que nos diziam respeito. E éramos, obviamente, pelo touro. Para o nosso grupo de aficionados, uma boa pega, uma pega realmente de encher o olho, era quando o animal, sozinho, conseguia dizimar a formação de forcados inteira, um a um ou todos aos mesmo tempo, o valentão da cara, os ajudas e até o rabejador, tudo levado à frente, tudo pelos ares e, se possível, que não era, a coisa repetida depois duas ou três vezes, em câmara lenta.
Rematada a função, amiúde de cernelha, que tristeza, após três, quatro ou cinco tentativas de pega natural falhadas, tornávamos ao exterior, talvez para mais uma sessão de anedotas com o Tónio Augusto Ferreira ou para ouvirmos as mirabolâncias do Zé Manel Carriço, que aparecia de repente, parecia impossível, só tinha de atravessar a rua. E ali ficávamos no comentário e na galhofa, até à próxima gaitada.

Que Fafe também teve a sua tourada, isso já é outra história. Foi no Campo da Granja, em 1963, provavelmente por ocasião das Festas da Senhora de Antime, que é o mais certo, mas também poderá ter sido por alturas das Feiras Francas, lembro-me é que era um belo dia de sol e, agora que penso nisso com mais vagar, não faço a mínima ideia de como é possível lembrar-me. Uma tourada que terá sido a primeira organizada em terras de Fafe e que, se não me engano, foi igualmente a única, e portanto última, até hoje.O redondel não era assim tão redondo como o nome poderia indicar à partida: digamos que foi construída, com robustos troncos de madeira, uma espécie de lua cheia fanada, cortada em linha recta na zona da bancada, que era para o excelentíssimo público poder estar em cima do acontecimento. As digníssimas autoridades locais e a nossa mais distinta burguesia, orgulhosamente alapadas na bancada de cimento com tecto de chapas de zinco, quero crer que com umas discretas almofadinhas aliviando os respectivos traseiros, e o povo a pé, no meio do campo da bola, encostado às tábuas, mas seria muito pouco, meio dúzia de gatos-pingados, se tanto, e eventualmente já razoavelmente decilitrados, porque os bilhetes, mesmo os bilhetes mais baratos, eram bastante caros. Foram certamente ao engano e, diga-se em sua defesa, o calor era realmente muito e a situação deveras incómoda e eventualmente perigosa. Se naquele tempo já havia praças de toiros desmontáveis e alugáveis, não foi daquela vez que uma delas chegou a Fafe.
A tourada, segundo me lembro, e confesso que continuo sem perceber como é que me lembro, foi uma merda. Os do Peludo, especialistas encartados, nem lá pusemos os pés. Oficialmente. Quer-se dizer: mandaram-me a mim, que era puto, dar uma espreitadela, dei, e por isso é que sei do que estou a falar. Acho eu.

No tempo das feiras de gado, havia uma, valente, na Lameira, acontecimento constado ali à volta. Realizava-se todos os anos "pelos 21", isto é, no dia 21 de Agosto, ponto alto das Festas em Honra de Nossa Senhora da Saúde. Ora bem. Uma ocasião, uma vaca espantou-se não sei com quê, soltou-se do sítio onde estava a guardar e correu o arraial inteiro de uma ponta a outra a espalhar o pânico e o caos em direcção à Pica, escornando e escoiceando a torto e a direito, desfazendo tendas, barracas e ornamentações, tudo em pantanas, invadindo tascos e casas sérias, saltando para cima de carros e outros veículos mais ou menos motorizados e levando a eito aquele povo todo, aflito e tolo que não sabia aonde se havia de meter, anjinhos e mordomos incluídos. Eu, muito bem entrincheirado e de barriga cheia após merenda na Albertininha, ri-me como um perdido. Quer-se dizer: a coisa não constava do programa, mas também foi uma bonita tourada.

(Publicado originalmente no meu blogue Mistérios de Fafe)

terça-feira, 11 de março de 2025

Ligava-se o rádio e abria-se o pano

Foto Hernâni Von Doellinger

Todas as noites. A nossa mãe pegava em nós - na Nanda, no Nelo e em mim - e colocava-nos de joelhos e mãos postas, virados para a parede. Não era castigo, era amor. Na parede do quarto da nossa mãe, por cima da cama de casal, estava pendurada uma daquelas gravuras do anjo da guarda à la menino da lágrima. Rezávamos: "Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia."

(Morávamos na casinha amarela do Santo Velho. O quarto da nossa mãe, logo à entrada, era também a sala, a urgência, o consultório das aflições e desgraças da rua inteira. A minha mãe curava. Cura. Eu era então o mais novo e os mimos eram todos para mim. Os mimos que a pobreza honrada permitia. Éramos remediadamente felizes, mas ríamo-nos muito, graças a Deus. Umas senhoras da Granja que trabalhavam no Posto Médico e passavam pelo nosso Santo Velho diziam que eu "até a chorar era bonito" - contava-me a minha mãe, cheia de vaidade, fazendo-me festinhas nos caracóis, e eu gostava. E eu gosto, mãe. Quando a minha mãe se zangava comigo - e eu enchia-a de razões para isso -, dizia-me que eu tinha sido deixado lá em casa pelos ciganos...
Depois nasceu o Lando e acabaram-se-me as mordomias.)

Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito "sem aldrabices" por ordem expressa e vigilante da nossa mãe, íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma cama para a Nanda e a cama maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Dramalhão. Mas tudo dentro dos conformes, pela moral e pelos bons costumes, tudo muito a bem da Nação. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora má e ciumosa que fazia a vida negra ao senhor viúvo e bom que gostava da menina tísica e bela que tomava conta dos quatro filhinhos dele, senhor viúvo e bom, a qual senhora má e ciumosa, todos concordávamos com a nossa mãe, era realmente "uma grande cabra", embora eu não visse nisso grande defeito. Na escola já tinha feito algumas redacções sobre "A cabra" e por isso sabia que a cabra é um animal doméstico e serve, nomeadamente, para a nossa alimentação, que era assim que a coisa se rematava.

O teatro terminava, vinha a ficha técnica - porventura autoria ou adaptação de Odette de Saint-Maurice, certamente as vozes de Jorge Alves, Manuel Lereno, Carmen Dolores, Rui de Carvalho, Eunice Muñoz ou Canto e Castro... nos papéis de -, mas a nossa mãe só desligava depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis", que ainda era mais mágico. Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer.

Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz. Radioso.

P.S. - A 11 de Março de 1957, no seu quarto dia de emissões regulares, a RTP inaugurou a rubrica Teleteatro, também chamada Noite de Teatro, com a emissão de "O Monólogo do Vaqueiro", de Gil Vicente.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Os animais da minha infância

Tive uma infância feliz, em Fafe, rodeado de animais de estimação, ditos agora de companhia. Tínhamos um cão chamado Rin Tin Tin, tínhamos uma cadela chamada Lassie, tínhamos um canguru chamado Skippy e até tínhamos um cavalo chamado Mister Ed ao qual nem faltava falar. Eu ia vê-los ao café, porque em casa não tínhamos televisão.

P.S. - Hoje é Dia do Animal de Estimação. E Dia Mundial da Justiça Social.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Atenção à nabiça e ao tomate

Dezembro a bater à porta e o Borda D'Água manda resguardar as plantas do gelo. Arrotear terras e mato para as sementeiras da Primavera. No crescente, continuar as covas e a estrumagem. As sementeiras de trigo e centeio continuam se não houver geadas, bem como a de cebola, couves, beterraba, nabiça, pimentos, tomate e salsa. Em sítios abrigados pode-se ainda semear agrião, espinafre, alfaces, fava e ervilha. Plantar ainda macieiras e pereiras. Cortar madeiras, no minguante. Continuar a poda das vinhas e mergulhia das vides. Fim da apanha da azeitona e limpeza dos lagares. No jardim, prossegue a plantação de roseiras, gladíolos, cíclames e lírios, a proteger das geadas. Semear ervilhas-de-cheiro, goivos e jacintos. Quanto aos animais, abrigue o gado do frio e chuva, e acarinhe-o.
Quer-se dizer: em Dezembro descansa mas não durmas, como recomenda, por seu lado, O Seringador.
E pronto. É este tempo, senhores. O tempo. Ou, como dizia o outro na rádio a preto-e-branco: na aldeia do Senhor Costa, assim vai a agricultura. E quem diz Costa, diz Montenegro.

Isto a propósito do engenheiro Sousa Veloso. José de Sousa Veloso, engenheiro agrónomo e mítico apresentador do programa TV Rural da RTP. Durante três décadas, o Senhor Engenheiro deu as notícias e a táctica aos lavradores e outros telespectadores portugueses. Morreu no dia 27 de Novembro de 2014, com 88 anos. Conheci muito bem o engenheiro Sousa Veloso. Ambos frequentávamos o velho café Peludo. Ele no televisor pendurado logo à entrada, do lado esquerdo, por cima dos bolos-reis previamente encomendados e comprados fora para o Natal, e eu sentado no canto contrário, atento à TV e aos bolos, ouvindo uma e desejando os outros, nem que fosse só um bocadinho. No final, o Senhor Engenheiro dizia, num largo sorriso, já em cima da música: "Despeço-me com amizade, até ao próximo programa". Era para mim.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

A felicidade das galinhas

Nos intervalos das transmissões da Volta a Portugal em Bicicleta, na RTP, passa muito um reclame aos Ovos Matinados, ditos "os ovos das galinhas mais felizes de Portugal". Felizes? As galinhas? Aos engraçados autores da tirada publicitária, proponho um breve exercício. Tentem pôr um ovo XL com um cu do tamanho de um cu de galinha, ou mesmo com um cu do tamanho do cu que têm, se não for escandalosamente exorbitante, e depois venham-me falar de felicidade...

P.S. - A Volta a Portugal chega hoje, mais uma vez, a Fafe.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Lágrimas parvas por Marcelo

Junho de 1973. De visita a Londres, Marcelo é recebido por uma manifestação de protesto contra a presença de Portugal nas então chamadas províncias ultramarinas e, de uma forma geral, contra a política africana do Governo português. "Portugal no more massacres. Get out of Africa now!", lê-se em alguns cartazes de más-vindas. Eu nem queria acreditar. Fiquei de todo. Os meus olhos, virgens e patrióticos como eu inteiro, viam a preto-e-branco o que se passava no televisor do bar dos Bombeiros de Fafe, que eu tinha só para mim naquela clandestina hora do meio-dia, e a revolta transformava-se-me inesperadamente em choro. Chorei de raiva, dorido pelo Senhor Presidente do Conselho. Como se atreviam aqueles gajos?! Que vergonha! Que falta de respeito! Angola é nossa e ponto final, ainda que o caso fosse particularmente Moçambique.

No regresso a Lisboa, Marcelo foi graças a Deus surpreendido por uma manifestação espontânea muito bem organizada, uma manifestação a bem da Nação, de desagravo pessoal e de apoio às políticas africanas do Governo, uma manifestação contra as manifestações de Londres, mas com muito mais povo, muitas mais camionetas, muitos mais letreiros, muitos mais garrafões de vinho e salpicões e muitos mais Vivas!, toma lá ò camone a ver se gostas...
De certeza que foi gente de Queimadela. Queimadela estava sempre presente! "Não esperava esta manifestação, mas compreendo-a", dizia Marcelo, modestíssimo, do alto da varanda do Palácio de São Bento, rodeado pelos pândegos mandadores de Vivas!, assim à moda do nosso Velhinho, o Castro Mendes de Travassós, o trabalhista fafense, "ide por esses tascos abaixo, comei, bebei e pagai". E depois Marcelo falou de política, mas isso já não me interessava. Eu estava outra vez comovido, ranhoso, mas agora de auto-satisfação nacionalista, de respeitoso respeito a Sua Excelência. Quem me dera estar lá também com o garrafão. Ainda por cima eu nunca tinha ido a Lisboa e o vinho, certamente como a viagem, devia ser também de graça. Chorei, pois claro que chorei, e as lágrimas já me toldavam o preto-e-branco do aparelho, mas saí dali de alma lavada e, se querem que lhes diga (e ainda que não queiram), também eu algo desagravado. E então ri-me. Junho de 1973. O Marcelo era Caetano e eu, burro como uma porta, pensando que sabia tudo, ainda não sabia nada.

P.S. - Marcelo Caetano iniciou a sua visita de três dias a Londres no dia 15 de Julho de 1973, faz hoje anos. Durante a sua presença na capital inglesa, manifestações constantes condenaram o massacre de Wiriamu, em Moçambique, revelado pelo jornal britânico Times.

sábado, 24 de setembro de 2022

O último comunicador

A minha missinha das oito era ouvir o Prof. José Hermano Saraiva (1919-2012) a contar histórias na RTP Memória. Já o sabia de cor como ao padre-nosso, mas gostava de o ter ali, exactamente ali, a servir de música de fundo ao meu jantar. Aqui que ninguém nos ouve, o homem tinha tanto de historiador como eu de monge tibetano, o que lhe dava ainda mais valor: porque não há quem invente História tão bem como ele inventava, não há quem estraçalhe com tanto panache tudo o que os verdadeiros especialistas escreveram com rigor, substituindo-o num estalar de dedos pelos seus próprios supores, e não há quem depois diga tudo o que acha com tanta graça, com tanta clareza, com um português tão perfeito e tão acessível e com tanta convicção como ele dizia. José Hermano Saraiva era único. Ele era o comunicador.
O professor sabia compor os "factos" como ninguém, sabia pintar a "realidade", conseguia fazer com que a sua História fosse sempre melhor e mais bonita do que aquilo que efectivamente se passou. E era cativante a contar. Vendia bem. Muitas vezes não era verdade o que ele dizia, mas podia ter sido, e a sua versão era sempre muito mais interessante do que a verdade ela mesma. Quase que se poderia dizer que, inadvertidamente, José Hermano Saraiva foi o inventor do moderno jornalismo português.

Ministro da Educação de Salazar, José Hermano Saraiva esteve no centro do vulcão que foi a crise académica de 1969. Figura polémica, criticado nos meios intelectuais e políticos, o professor ganhou o coração de sucessivas gerações de portugueses através dos programas que fazia para a RTP. Penso, porém, que o fantasma do seu passado fascista às vezes ainda o incomodava. Num episódio onde revisitava os retratos dos vários presidentes da República, no Palácio de Belém, o professor deixou cair um curioso comentário sobre Canto e Castro, creio, que era monárquico convicto e assumido, que foi mesmo deputado no tempo da monarquia (eu percebi "ministro"), mas que ocupou depois, ainda que por pouco tempo, o cargo de chefe de Estado no novo Portugal republicano. "Fez a transição com elegância...", concluiu José Hermano Saraiva, e foi óbvio para mim que ele estava era a falar de si próprio, aproveitando para meter a ficha, como quem não quer a coisa, em mais um pouco de Omo.

José Hermano Saraiva foi considerado, sem favor, uma das "dez caras mais emblemáticas da RTP", num ranking que há uma dúzia de anos elaborei para a revista de fim-de-semana do jornal 24horas. O humorista Nilton dizia-me então que "nem o Google sabia tanto de História". Saraiva era um fenómeno de popularidade em Portugal e em todo o mundo onde se falasse e ouvisse português. Os seus programas na RTP - O Tempo e a Alma, A Alma e a Gente e Horizontes da Memória - foram anos a fio o menos e o mais que muito e bom povo aprendeu da história de Portugal.
Jurista de formação e historiador por vocação, antigo embaixador de Portugal no Brasil, José Hermano Saraiva era personalidade sem consenso sobretudo ao nível das chamadas elites pensantes. Os que não gostavam dele criticavam-lhe uma certa visão fantasista da História e o facto de não possuir qualquer grau académico superior nesta área do saber. Os seus defensores preferiam enfatizar as suas inegáveis capacidades de comunicador e de divulgador cultural junto das camadas menos instruídas da população. Alheio a estas guerras do alecrim e da manjerona, Saraiva continuava a ser uma presença assídua, entusiasta e apreciada na TV.

Comecei por dizer que gostava de ouvir o professor na RTP Memória. Ali, onde ele era ainda um jovem de 80 anos cheio de genica. Incomodava-me ver os seus novos episódios na RTP 2. Não conseguia. Não lhe deviam ter feito aquilo. Não o deviam ter deixado fazer aquilo.
José Hermano Saraiva tinha 92 anos e continuava na TV. Era uma boa notícia em absoluto, apesar dos meus incómodos, que para o caso são irrelevantes. Então como antes, novas gerações poderiam continuar a aprender com ele, se não História a sério, pelo menos a falar bom português e a respeitar e a amar o nosso património. Mas era preciso que se percebesse o que o pobre homem dizia naqueles monólogos já infelizmente inenarráveis.
Sempre gostei de ouvir quem me contasse. Ao longo dos anos fui frequentador assíduo e prazenteiro das palestras televisivas de figuras culturalmente incontornáveis como António Pedro, Vitorino Nemésio, Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Natália Correia, António Victorino d'Almeida ou, numa outra dimensão, das charlas poéticas de João Villaret ou Mário Viegas, sem esquecer os inspirados desempenhos do Landinho Bacalhau, o antigo, e do Zé Fala-Barato, microfónicos fafenses que, mesmo sem honras televisivas e não desfazendo, nunca deixaram os seus créditos por mãos alheias, é preciso que se note.
E acreditem no que eu digo: isto, sim, eram comunicadores. O resto são habilidosos, meros entertainers. Copiam os gestos, imitam os tiques, mas falta-lhes a substância. José Hermano Saraiva saiu de vez dos ecrãs e acabou-se o que era bom. Como ele, já não há mais. Era o último.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Os fundamentos do jogo e a solidão do guarda-redes

Foto Hernâni Von Doellinger
Os fundamentos do jogo são hoje em dia uma acepção filosófica incontornável e seminal. Havia antigamente um entretimento curioso que eram onze contra onze e a bola era redonda, obviamente para se distinguir de outro entretimento curioso que era o cheira-cus, também chamado râguebi, que, ao contrário do que circula em certos meios, ou mêlées, não foi inventado por Cordeiro do Vale aos sábados à tarde na RTP, e são quinze contra quinze e a bola é um melão.
Há registos antiquíssimos de quem chamasse futebol àquela coisa simples dos onze contra onze, mas era apenas premonição, um por acaso feliz, um long shot que correu bem, porém sem base científica nem atestado da Junta de Freguesia. Falava-se então nuns tais "esquemas tácticos", como se isso quisesse dizer alguma coisa, mas ninguém sabia nada de entre linhas, de entrefolhos, de verticalidade, de horizontalidade, de diagonalidade, de palavras cruzadas, de sopas de letras, de soduku, de transições rápidas como pensos ou lentas como valsas, da ocupação do espaço, do triângulo invertido, do ménage à trois, do losango, do ângulo recto e da circunferência, do poliedro, da táctica do quadrado, de Aljubarrota, das linhas subidas e da Linha da Beira Baixa, do ADN, da tibiotársica, do conceito, do preconceito, do duplo pivô, sim, do duplo pivô e do implante, do último terço do terreno e do quarto segredo de Fátima. Este avanço no tutano da inteligência universal, um pequeno passo para o homem mas um passo de gigante para a humanidade, devemo-lo a uma nova casta de comentadores e paineleiros, e não tem preço.

Por exemplo, o guarda-redes. O guarda-redes nunca teve lugar nos tais "esquemas tácticos" amadoristicamente experimentados na pré-história futebolística. Eram "onze contra onze", mas o guarda-redes, nem que fosse "o melhor do mundo", não contava para o totobola. O guarda-redes, naquele tempo de trevas, era uma espécie de Santa Bárbara (embora o Santa Bárbara fosse realmente guarda-redes, mas de andebol), só se lembravam dele quando acontecia penálti. De resto, havia o 1-1-8, o WM, o 4-2-4, o 3-4-3, o 4-3-3 e o 3-5-2. Sobretudo. E é só fazer as contas, somar os algarismos e ver que dá dez, não onze. Até W mais M é igual a dez. O "onze contra onze" é uma fraude - eram dez contra dez e era um pau, e a bola era redonda mas nem sempre. Essa é que é essa. O guarda-redes realmente não era levado a sério (à séria, se lido em Lisboa) naquele curioso entretimento, e nós, os arrochos, os que só servíamos para a baliza nos muda-aos-seis-e-acaba-aos-doze de miúdos, eu no recreio da Feira Velha ou no Largo do Santo, em Fafe, sabemos muito bem do que estou a falar...
Oportunamente tentarei responder à questão magna e que se impõe: o que é que o guarda-redes faz na baliza. E à questão mínima e que nem por isso deixa de se impor: se o guarda-redes souber jogar com os pés, como por exemplo o Fafe teve o Quim, deve ser lançado, no período complementar, a extremo direito, quero dizer, a ala, a ala bem aberto? Na faixa?...

sábado, 13 de agosto de 2022

Mulher, anda ver Fafe na televisão!

Foto Hernâni Von Doellinger
Isto foi exactamente há dez anos, lembro-me como se fosse hoje: a Volta a Portugal chegava a Fafe e eu chamei a minha mulher para vermos a minha terra na televisão. O ciclismo ao vivo, à beira da estrada e do suor, comove-me, comove-nos, faz-me tanta impressão aquele poder, aquele esforço, ainda que vitaminado, que só me dá para tremer e chorar ao vê-los passar rasantes. E não vejo nada. Cuidam que estou a gozar? Não estou. Para já, não. Pegámos nas bandeirinhas e fomos, portanto, para o sofá. É mais seguro. E de homem.
Naquele tempo a RTP "filmava" a Volta com telemóveis e com um helicóptero com um telemóvel - este ano não sei. A qualidade das imagens da corrida era uma merda e as informações gráficas eram borrões. Era a crise, a eterna crise, e contra isso nada. Além disso, há o futebol. Mas o importante era Fafe e lá estávamos nós, eu e a minha mulher, de mãos dadas e corações alvoroçados à espera de nos revermos naquelas ruas, naqueles sítios que tão bem conhecemos e a que gostamos de chamar nossos. Havia a promessa de um circuito à chegada, duas passagens pela meta. Um pitéu! Apesar do desfoque, o País inteiro ia ver como é bela a minha terra, como é única, e essa ideia não me saía da cabeça, entusiasmava-nos a ambos e às bandeirinhas.
Faltavam 17 quilómetros para o fim da etapa e a televisão informava que os corredores já estavam no circuito de Fafe. Eu expliquei à minha mulher que não podia ser, era engano, andei naquelas vidas, sei como estes desculpáveis lapsos acontecem, aquela via-rápida parecia-me mais a entrada em Sobral de Monte Agraço, quem vem de cima. "Vila Verde. Vila Verde, quem vem de baixo", contrariou-me ela, que me contraria sempre por uma questão de princípio. E, sim, de facto aquela estrada sem nada que a recomendasse nem bilhete de identidade podia muito bem ser nas bordas de Vila Verde. Ou de Sobral de Monte Agraço. Ou de Moimenta da Beira.
Os corredores umas vezes desciam não sei de onde e outras vezes subiam não sei para onde. Fafe na televisão era alcatrão e rails de protecção. Da minha terra, nada. No sofá discutíamos ipês e circulares e já íamos em Mértola, eu, e em Bragança, a minha mulher. A estrada impessoal e tão pau para toda a colher estava quase a acabar com o meu casamento quando finalmente dei fé da que já foi a Ponte de Golães. "Agora é que é", sobressaltei-me de alegria, "é mesmo Fafe, não é a Volta à Polónia". E os ciclistas pedalaram Santo Ovídio acima, deixaram a Cisterna para trás, passaram a Rua de Baixo e nós os dois a vermos aquilo na televisão todos vaidosos e a beliscarmo-nos, e nisto, às portas da Sacor, o programa da RTP avariou porque deu a chegada a uma meta em Vila Verde. Ou em Sobral de Monte Agraço. Ou em Moimenta da Beira. Ou em Mértola. Ou em Bragança, não sei bem. Sem o Largo, sem a Arcada e sem o Jardim do Calvário ao fundo, podia ser numa terra qualquer. Mas a televisão insistia que era Fafe.
E se calhar era. Porque apareceu o presidente da Câmara, que foi ao palco ser cumprimentado pelo vencedor da tirada. (Porque para isso é que estas coisas são feitas.) E era um palco de luxo: o presidente da Câmara, o João Baião e o Paulo Futre, que afinal já na altura era artista de variedades. Dinheiro bem gasto.

E agora vou-me lá que são que horas, para a televisão e de bandeirinha. Anda, mulher, os ciclistas estão quase a chegar e até pode ser que este ano dêem com a meta. Era porreiro.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...