quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

O dia em que envelheci

Sei muito bem o dia em que envelheci. Foi de repente. Sei o ano, sei o mês, sei o dia e até sei a hora, mas tanta exactidão não vem aqui ao caso. Sei o local e sei as circunstâncias. Foi no Hospital de Gaia, numa consulta de medicina do sono, creio que a coisa se chamava ou chama assim. A dado passo da bateria de exames e do minucioso inquérito, a médica perguntou-me, surpreendentemente: - Quando era novo, o Sr. Américo já sentia este cansaço?..
Eu ia caindo de cu. Primeiro. Esta mania de me tratarem pelo meu primeiro nome, Américo, nas consultas e, em geral, em todos os serviços públicos ou privados que exigem a competente apresentação de credenciais. Não sei, chamam-me Américo e eu, que estou tão habituado a chamar-me Hernâni, procuro sempre outro indivíduo ao meu lado, no meu próprio lugar. Sinto-me outra pessoa, um estranho de mim mesmo. Tratar-me por Américo é um privilégio que está reservado ao meus companheiros da escola primária, em Fafe, e mesmo com esses poucos que ainda se lembram de mim nunca sei se é comigo que estão a falar quando falam comigo. Segundo. "Quando era novo", disse ela. Quando era novo?! Porra, eu ainda sou novo, tentei corrigir gentilmente a senhora doutora, atirando ao ar duas ou três larachas e apanhando-as, a todas, sem deixar cair, disparando-me da marquesa num acrobático salto encarpado, com duas piruetas à retaguarda.
Mas não adiantou. Pelo contrário. A doutora insistia, parecia-me agora que com algum prazer, com uma certa maldade, "quando era novo" para aqui, "quando era novo" para ali, "quando era novo" acima, "quando era novo" abaixo, e quem sou eu para contrariar o veredicto da medicina, a sábia decisão da ciência?
E foi assim. Nesse dia, naquele preciso momento, fiquei velho para toda a vida, por indicação médica e sem remédio. Eu acabara de fazer 41 anos.

(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!)

Teatro de sombras

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Na baliza, sem presunção de inocência

É goleiro no Brasil e guarda-redes em Portugal, o que em certa medida explica logo à nascença a suprema necessidade e a utilidade sem medida dessa coisa escaganifobética e sonsa a que certos doutores chamam acordo ortográfico. Falando à nossa moda, o guarda-redes é-o, regra geral, porque, no que diz respeito à bola, não serve para mais nada, não joga um caralho, não dá uma para a caixa, é um trambolho, um cepo, um arrocho, e por isso vai para a baliza. Exactamente: o arrocho vai para a baliza. Ali pelo menos não estorva. E grita a torto e a direito "Sainde da frente!, Sainde da frente!", desarrumando imaginárias barreiras no miserável recreio da Escola Conde de Ferreira, no largo da Feira Velha ou entre as aprazíveis tílias do Santo Velho, fazendo todo o cuidado aos vidros da Milinha Modista, isto era em Fafe mas podia ser no Maracanã ou no Prater de Viena, era só pensar e escolher. Sei muito bem do que falo, da maneira de ser arrocho. E falo orgulhosamente por experiência própria, não sendo o único.
Albert Camus, Arthur Conan Doyle, Karol Wojtyla, conhecido como papa João Paulo II, que foi eleito santo, Che Guevara, Julio Iglesias e até Luís Marques Mendes tentaram ser ou foram mesmo guarda-redes. Do Luisinho lembro-me eu muito bem, nas camadas jovens da nossa AD Fafe, que agora tem uma extraordinária SAD que parece que vai para Felgueiras, suponho que na velha carreira, ida e volta todos os dias, como faziam antigamente as pessoas sérias, isto é, as pessoas que têm só uma família e trabalham...
Duas das melhores definições sobre o guarda-redes, digo eu, terão sido elaboradas pelos escritores Eduardo Galeano e Nelson Rodrigues. "Carrega nas costas o número 1. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito", sentenciou o uruguaio. Já o brasileiro Nelson Rodrigues afirmou um dia - "Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários."
Por mim, o que continua a interessar-se particularmente no ofício de guarda-redes é tentar perceber esse mistério do homem que entra em campo como "guardião", sim, chamam-lhe guardião, e sai do campo como "frangueiro", sim, chamam-lhe frangueiro, ao ex-guardião. Frangueiro e filhodaputa. E penso na desgraça que aí vai a respeito de Adán, o intermitente guarda-redes do Sporting.

É preciso que se note, o menosprezo pelo guarda-redes não é de agora, vem desde o tempo da invenção do futebol. O guarda-redes nunca constou de esquemas tácticos, não entra nos fundamentos do jogo. Eram "onze contra onze", ficou estabelecido, mas o guarda-redes, nem que fosse "o melhor do mundo", não contava para o totobola. O guarda-redes era uma espécie de Santa Bárbara (embora esse fosse do andebol), só se lembravam dele quando acontecia penálti. De resto, havia o 1-1-8, o WM, o 4-2-4, o 3-4-3, o 4-3-3 e o 3-5-2. Sobretudo. E é só fazer as contas, somar os algarismos e ver que dá dez, não onze. Até W mais M é igual a dez. O "onze contra onze" é uma fraude - eram dez contra dez e era um pau, e a bola era redonda mas nem sempre. Essa é que é essa. E hoje em dia, por mais losangos, faixas e terços do terreno que inventem, a desconsideração continua. O guarda-redes só é necessário porque é preciso um bode expiatório. E, no entanto, ele houve e há grandes guarda-redes, autênticos salvadores da pátria, valha-me Deus!

David Alves ensinava: o melhor guarda-redes do mundo era Clemence, o inglês. Nem o checo Plánicka, nem o russo Yashin, nem o alemão Sepp Maier, nem o italiano Dino Zoff, nem outros de semelhante calibre - antes, durante e depois. Era Ray Clemence, que nos anos setenta e oitenta do século passado brilhou ao serviço do Liverpool e da selecção inglesa. E o David sabia do que falava: ele próprio tinha atrás de si uma interessante carreira como guarda-redes, posto que de mais recatados recursos. Sendo de Fafe, fizera a sua formação nos juniores do FC Porto, passou algumas temporadas no Paços de Ferreira, se não me engano, e ainda o vi jogar pelo Desportivo das Aves, creio que no tempo em que por lá andava também (ou andou pouco tempo depois) um famoso defesa central chamado Kentucky, que só me lembrava os Definitivos, pecados velhos. Por outro lado, o David Alves foi o primeiro José Mourinho que eu conheci. Isso mesmo. O David era inteligente, culto e visionário, carismático, tinha mundo, era um estudioso e metódico transgressor, promovia a acção psicológica: com um par de décadas de avanço, inventou em Portugal aquilo que hoje em dia é corriqueiro em todo o lado. Pensador por natureza, pedagogo, ele passava o futebol ao papel, e do papel passava o futebol ao campo. E no campo era bonito de se ver. O treino era ciência, os treinos eram aulas - ele levava-me muitas vezes para assistir. E era uma prazer ouvi-lo. Se não me engano, o David começou a carreira de treinador no Maria da Fonte, da Póvoa de Lanhoso, e eu pressentia que ele iria longe, muito longe, primeira divisão, estrangeiro até. A vida, porém, não lhe deu tempo para levantar voo...
Por aquela altura, o meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente um frangueiro de créditos firmados. Era um acrobata voador, um contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até - guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos, voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca, pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola, ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo, era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para explicar. Para ensinar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático, sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos grandes jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu em 2020, tinha 72 anos. Lembrei-me dele e deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, numa idade em que devia ser proibido morrer. O David morreu e ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...

Já disse. Qualquer dia, quando eu estiver pronto, espero escrever a sério sobre David Alves, o nosso David Alves, guru natural e sem querer de uma ou duas gerações de jovens fafenses. Fomos uns sortudos!

E, para fechar com chave de ouro, uma extraordinária curiosidade. Dino Zoff e Sepp Maier, dois dos melhores guarda-redes de todos os tempos, nasceram no mesmo dia, com uma diferença de dois anos. E estão hoje de parabéns. O italiano, o mais velho jogador de futebol a ser campeão do mundo, nasceu no dia 28 de Fevereiro de 1942 e disputou 112 jogos pela Squadra Azzura. O alemão nasceu no dia 28 de Fevereiro de 1944, jogou sempre no Bayern Munique e actuou 95 vezes pela selecção de seu país.

(Texto publicado originalmente, assim revisto e compilado, sob o título "A culpa é do guarda-redes", no meu blogue Tarrenego!)

Que a mãezinha logo vem

Foto Hernâni Von Doellinger

Cuidado com as carteiras!

Os carteiristas. Para quem não saiba, passo a informar e é de graça: os carteiristas são presença habitual, diria até obrigatória, nas campanhas eleitorais. Fazem parte. Sim, os carteiristas! Sorrateiros como uma corrente de ar, rápidos como um piscar de olhos, trabalham aos pares, às vezes em trio, organizados, distribuindo tarefas, exponenciando sinergias, intercomunicando-se via telemóvel, tomando conta das costas uns dos outros, de bandeira ao ombro e autocolante na lapela, fazendo-se passar por militantes ou simpatizantes, acompanhando as caravanas em todas as paragens e aproveitando-se das arruadas mais frequentadas, as passagens pelas feiras, como hoje em Fafe, ou comícios de maior aperto para então, como quem não quer a coisa, dar livre curso à insustentável arte do gesto leve. Sim senhor, os carteiristas! Como se já não bastassem os políticos propriamente ditos...

Eram uns atrás dos outros

Quartilhos. Depois de três ou quatro, ou cinco ou seis, consoante a disposição e a companhia, bebia-se o último, depois o da porta e depois o da sossega e depois o da saída e depois o último e depois o da porta e depois o da sossega e depois o da saída e assim sucessivamente. Beber, em Fafe, era uma história interminável...

Águas mil

Era um bêbedo que realmente sabia estar. Cada vez que se urinava pernas abaixo, ele dizia, sem perder a compostura: - Rebentaram-me as águas. Levem-me à maternidade, por favor!

Quando se perdia a mondinense

Há muitas maneiras de o dizer, deste e do outro lado do mar: beber, alcoolizar-se, emborrachar-se, embriagar-se, inebriar-se, tachar, tomar, encharcar, chumbar-se, avinhar-se, enfrascar-se, ficar de pileque, alto, grosso, mamado, tomar um porre, praticar desporto líquido, molhar os pés, ficar como um escalo, como uma nabo, como um cacho, como um avião, ficar doente, indisposto, apanhar uma ramada, uma piela, uma perua, uma bebedeira, uma carraspana, uma borracheira, uma cardina, um pifo, uma tosga, uma touca. Mas: perder a mondinense, suponho que só em Fafe se dirá. Ou dizia. Perder a mondinense.
A Mondinense disputava então com a João Carlos Soares o negócio do transporte rodoviário colectivo de passageiros entre Porto e Fafe e vice-versa. Eu era passageiro. Sou passageiro. Os asmáticos autocarros da Mondinense, que, se não me engano, faziam a viagem pela serra da Agrela, via Santo Tirso, numa espécie de breve apresentação turística à Rota da Prostituição de Baixa Montanha, tinham escritório numa obscura garagem à beira do desabamento e tresandando explosivamente a mijo, vomitado, fumo e gasóleo, ali para os lados do portuense Jardim de São Lázaro. A Mondinense era isso. E a João Carlos Soares é Arriva.
Mas a explicação da expressão nossa? Perder a mondinense. Quer-se dizer: bebia-se e perdia-se a memória e esqueciam-se as horas. Esqueciam-se as horas e bebia-se e perdia-se a memória. Perdia-se a memória e esqueciam-se as horas e bebia-se. E assim se perdia a mondinense.

P.S. - Publicado no dia 22 de Novembro de 2022, a propósito do Dia de Dar Uma Volta. Hoje é Dia da Ressaca.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O Amigo Bastos

Foto Tarrenego!
Descíamos no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo. Era aquela caloraça das ilhas, aquele esplêndido exagero de luz, o ar quase sólido que sufoca a respiração dos menos habituados, o bom odor de salsugem, que peço emprestado ao mestre. Eu de barrete branco enfiado na cabeça e lenço tabaqueiro atado ao pescoço, as barbas suando em bica, ele no seu fato impecável, o laço "de fazer" milimetricamente composto, dizia-me "Oiça lá, você parece o Hemingway!...", e soltava uma enorme gargalhada, exabundante, para ser ouvida pelos passantes e sobretudo pelas passantes, porque, estivesse onde estivesse, sempre fez questão de que se soubesse, sobretudo elas, que por ali andava o famoso Baptista-Bastos.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, flatulando améns, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia: "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, dizia, eu e o mestre, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira, invadida por poderosas pick-ups de matrícula americana.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: afinal, AB.) E creio que percebi bem.

- Mas oiça lá: "à sua beira", foi o que disse? Que expressão tão bonita! "À sua beira"...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical!

Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e simpatizantes, de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam mutuamente por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.

Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora na terceira página, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias! Todos os dias!...
Não esqueço, Amigo Bastos.

P.S. - Texto publicado neste blogue no dia 7 de Agosto de 2022. Armando Baptista-Bastos nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1934. Faria hoje 90 anos. E é por isso.

E a culpa é do vinho?

Dizer-se que alguém tem mau vinho é um insulto ao vinho e uma grande injustiça. Há quem seja filhodaputa mesmo em jejum e abstinência, e que culpa é que tem o vinho? Mau vinho é outra coisa, e ainda assim serve para vinagre...
(No próximo programa abordaremos as não menos fracturantes problemáticas do mau fígado, do mau-olhado e do mausoléu.)

P.S. - O escritor norte-americano John Steinbeck, autor de "As Vinhas da Ira" e Nobel da Literatura em 1962, nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1902.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Gaivotas atiram-se ao Minho

Foto Hernâni Von Doellinger
As gaivotas resolveram atacar o Minho e em força. O Minho interior, por assim dizer, e sem mar que se veja, esborda de gaivotas, assim gaivotas até dar com um pau. Primeiro foi Braga, depois o centro da Póvoa de Lanhoso e agora Barcelos, e logo na Rotunda do Galo, o que só pode dar cagada. Em Fafe, a minha mãe já me tinha avisado que também, parece que aos sábados ou aos domingos, vá lá saber-se porquê...

Ora bem. Como sabem (sei que não sabem, mas podiam saber, se quisessem), as câmaras do Porto, de Matosinhos e de Gaia emitiram uma fátua contra as gaivotas, apelando ao seu (das gaivotas) extermínio. Foi na Páscoa de 2016. Para lhes tirar a tosse (às gaivotas), anunciava-se, mais civilizadamente era impossível, a proibição de alimentar as aves, a colocação de pinos em edifícios e a mobilização de falcões para a frente de batalha do rio Douro.
Duas das medidas a aplicar pelo Porto - que, entre Gaia e Matosinhos, é sempre o paradigma - seriam então, segundo li, "a georreferenciação de pedidos de intervenção relacionados com gaivotas para estabelecer um plano de controlo do sucesso das medidas preventivas e a realização de acções de sensibilização quando se identificam situações irregulares de alimentação dos animais com entrega de brochuras". Nunca percebi o que este palavreado queria dizer, mas gosto muito da "georreferenciação", e gosto sobretudo de "brochuras". Por outro lado, esta merda cheira-me a Eichmann...
Não sei se a Protectora, a Quercus, o PAN e os pans mais pequeninos tomaram posição sobre o assunto. Se tomaram, talvez tenha sido: devemos amar e respeitar os animais, se forem muitos (e mesmo animais) é que não. Que se lixem as gaivotas de uma forma geral e os garranos de Paredes de Coura em particular, salvemos os gatos lambe-cricas, o lince da Malcata e os cães zicos, choremos os simbas, lutemos pelo lagarto de água de Gaia, dignifiquemos as pegas se forem pássaros, e sobretudo morramos pelos toiros de lide.
Orwell já tinha avisado: todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros e as gaivotas ainda vêm a seguir.
É público e às vezes notório que eu tenho duas gaivotas. Era uma mas agora são duas, tal qual os amores do Marco Paulo eram dois. Um destes dias a minha mulher põe-me fora de casa por causa das gaivotas, que me cagam generosamente a varanda e enxovalham a roupa a secar. Mas a verdade é esta: apesar de cagonas, eu quero-as; e a minha mulher enxota-as. Serão ciúmes? É preciso que se note que as minhas são as duas mais belas gaivotas do mundo - vejam só o retrato lá em cima. Eu, por mim, ficava com elas...
Aos puristas escandaliza-os certamente a minha preferência pelas gaivotas em desfavor, por exemplo, dos toiros. Mas, valha-me Deus, imaginem dois toiros - ou, vá lá, uma toira e um toiro - a voarem-me por cima da varanda e a cagarem-me a roupa do estendal, e esforcem-se um bocadinho para tentarem perceber se eu tenho ou não tenho razão...

Quase oito anos passados, não sei em que ponto vai a matança das gaivotas, se corre bem ou se corre mal. Os presidentes de câmara que tiveram a tão luminosa ideia são os que ainda estão lá, menos um, por razão de força maior - Rui Moreira, Eduardo Vítor Rodrigues e Luísa Salgueiro em vez de Guilherme Pinto -, mas parece que nunca prestaram contas sobre o assunto. Eu conto-as todos os dias, e posso garantir que, pelo menos aqui em Matosinhos, as gaivotas estão a ganhar...

Não é para me gabar, mas gaivotas é comigo. Estou agora a escrever e estou a ouvi-las, a vê-las à minha frente, do lado de lá da janela. Eu e as gaivotas somos inseparáveis, cúmplices, somos um para as outras. Fui o primeiro a alertar para os perigos que corre o extraordinário gaivotal da Riguinha e Carcavelos, orgulho e emblema da Praia de Matosinhos. As gaivotas interessam-me. Cagam-me em cima, é certo, mas muito menos do que o Paulo Portas e o Passos Coelho me cagaram em cima, e eu não os conhecia de lado nenhum e não me interessavam para nada. Gaivotalmente falando, levo já mais de 25 anos de trabalho no terreno, eu e elas, evidentemente contra a vontade da minha mulher, por causa da limpeza da varanda. Estou portanto em condições de afirmar, sem temer desmentidos, que sei de gaivotas como se fosse gaivoto. Houvesse um presidente da república das gaivotas, como já houve das cagarras, e seria eu.
Ora bem. Outro especialista, mas este da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, afirmava aqui atrasado que as gaivotas andam a mudar-se do mar para a cidade. Pois andam. O caro colega afiança também que o "fenómeno" começou exactamente há dez anos, mas que, atenção, está a aumentar com "o calor elevado que se faz sentir neste momento".
Não sei se o "fenómeno" começou mesmo há dez anos - não os contei, não sei sequer se o "fenómeno" é fenómeno realmente, mas afirmar que as vagas de calor puxam as gaivotas ainda mais para terra é ciência de atirar à sorte a ver se acerta. E não acertou. Ou então as gaivotas de Matosinhos são umas desalinhadas, só para chatear.
Explico. Hoje havia um nevoeirinho manso ali na praia, uma brisazinha de norte passava aqui pela rua como quem não quer a coisa, e elas aí andavam, as minhas gaivotas, nos telhados, na varanda, conversadeiras e cagonas, aproveitando a fresca como eu. Mas nos dias de brasa de Julho, Agosto e Setembro, não. Pelo contrário. A canícula devolveu-as ao mar e estragou a teoria de sofá do ilustre ecologista. Quem as quisesse ver, era na água, bandos imensos, uns cem metros para dentro da linha de rebentação. Porque não são parvas. É. Já escrevi e repito: as gaivotas têm merda na barriga, não na cabeça. O mesmo não poderei dizer sobre certos eleitores...

Artur Jorge e o jornalista que adivinhava

Conta-se. Naquele tempo, os jogadores e treinadores de futebol eram pessoas livres, cidadãos inteiros, e falavam com os jornalistas sem pedir licença ao dono. Artur Jorge era então treinador do FC Porto, e um famoso jornalista pediu-lhe uma entrevista nas vésperas e a propósito de um grande jogo qualquer. Homem inteligente, culto, reflexivo, avesso ao circo da banalidade e com mais que fazer na vida, Artur Jorge terá dito ao jornalista para escrever o costume, aquilo que os treinadores de futebol costumam dizer nestas circunstâncias, que é sempre a mesma coisa e nada. A entrevista não se fez, mas saiu. E saiu muito bem. Ou por outra. Aproveitando-se do facto de tertuliar bissextamente com Artur Jorge, o jornalista famoso abusou da confiança do então treinador do FC Porto, não lhe pediu a entrevista, não lhe fez a entrevista, não o avisou sequer da entrevista, mas a entrevista saiu. E Artur Jorge não gostou. Conta-se.
Eu conheci Artur Jorge, de vista, do lado do admirador, e conheci muito bem o famoso jornalista, do lado de dentro. A respeito da tal "entrevista", sei, das duas, qual é a versão verdadeira, sei como se passaram realmente as coisas. Mas o que é que isso interessa agora?...

(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!)

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Os engolidores

Engolidores, há-os. Como por exemplo engolidores de sapos, metaforicamente falando, engolidores de fogo, que na verdade não engolem mas borrifam, e engolidores de espadas. Engolidores de copas e engolidores de ouros não sei, mas engolidores de paus também há-os.

P.S. - Hoje é Dia do Engolidor de Espadas.

Quem com ferros ferros com ferros ferros

O grande problema do engolidor de espadas era a azia. Mudou de ofício, por indicação médica...

Espla... nada

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Elas, as fanecas

O sedutor
Ele era um sedutor
de mão cheia.
Adorava apalpar rabos.

Bem boas que elas andam, as fanecas. Já repararam? Se calhar a mãe Natureza resolveu chamar à razão a nem sempre atinada lei das compensações, mas a verdade é que durante a quase década baixa da sardinha que tivemos de gramar, uma desgraça, a faneca comportou-se sempre com uma categoria de que eu já nem me lembrava. Regalei-me.
Gosto delas fritas. Só com sal e passadas por farinha milha, à tasco, isto é, à Fafe, ou então mais à minha moda, tratadas também com pimenta e limão e depois envolvidas com farinha triga e ovo. Sem outros truques ou invenções. Há derivas que aceito e como, mas estão longe de me satisfazer. Insisto: a faneca só me enche as medidas quando na sua pureza original. Frita.
Uma vez há muitos anos, pela madrugada, deixei que me metessem num barco e fui à pesca da faneca com o grupo do meu saudoso amigo Adélio Santos. Quer-se dizer: eles foram à pesca e eu fui vomitar uma noite de copos e sem passagem pela cama. Não sei se a nojeira serviu de engodo, mas o certo é que aquilo era peixe até dar com um pau. Seríamos uns seis ou sete naquela companha de ocasião e toda a gente teve direito a um ou dois baldes cheios de fanecas e cavalas, até eu, que pelos vistos também tinha feito a minha parte e não sabia. Estava na idade da toléria e tão tolo era que desprezei então as cavalas, hoje em dia com lugar cativo, ainda que bissexto, na minha exigente lista de pitéus.
Mas voltemos às fanecas. O meu amigo Lopes, que é tão fanequeiro como eu, diz, no seu mar de sabedoria, que "a faneca é um peixe muito honesto". E é. Em diversos sentidos e apesar de já ter andado por aí na boca da malandragem armada em carapau de corrida. A este respeito (ou a respeito da falta dele), torno a Fafe, à década de setenta do século vinte: quem é desse tempo e não se lembra de aproveitar a barafunda das quartas-feiras para passar por elas, pelas moças, em Cima da Arcada, roçar-lhes o cotovelo pelas mamas como quem não quer a coisa, dizer-lhes entredentes "Ah, faneca, comia-te toda!" e levar um estalo na cara que acabava logo ali com todos os tesões? Quem não se lembra, nem era homem nem era nada. Ou então sofre de Alzheimer e está desculpado.
Entretanto o piropo foi criminalizado em Portugal, e até poderá dar cadeia. A mim não me faz diferença. Eu gosto muito de fanecas e de mamas, mas seduzo apenas por telepatia.
O Lopes tem razão: a faneca é um peixe muito honesto. Depois, há fanecas mais honestas do que outras. Em minha casa, por exemplo, só entram fanecas do alvor, pescadas já dentro da manhãzinha, como daquela vez com o Adélio mas agora por mãos que sabem. Um luxo. Mordomia matosinhense, reservada a quem mora ao pé da doca e conhece um bocadinho. São fanecas do mar que eu vejo da minha varanda. Madrugo também, compro-as vivinhas da silva, ainda sem terem passado pelo castigo do gelo e isentas de outras burocracias normalizadoras e estragativas, amanho-as eu, eu é que sei. Não menos importante: comemo-las no próprio dia. Exactamente. Elas andaram e andam bem boas, mas é preciso saber dar-lhes as voltas...

P.S. - Hoje é Dia da Sedução.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Aí para as curvas

Foto Tarrenego!

Uma vez, em 1991, Basílio Horta foi candidato à Presidência da República e fazia frio em Portugal, porque era Janeiro e o tempo naquela altura não era ainda tão tolo e incerto como é agora. O tempo. O Doutor Horta, que já vai nos oitenta e, entre outros afazeres, é um filósofo, quero dizer, um filósofo praticamente como eu, acaba de explicar em entrevista ao Expresso que realmente "há quem olhe para a vida como uma linha reta", mas ele não. "Eu não abdiquei das curvas", enfatizou o ex-União Nacional, fundador do CDS e actual militante do PS, ministro em quatro governos, pela direita, conselheiro de Estado, deputado, embaixador na OCDE, presidente da AICEP, pela esquerda, e agora presidente da Câmara de Sintra, dizia eu, enfatizou, como quem não quer a coisa, como quem oferece o título para a prosa e não se fala mais nisso.
Quanto à fotografia, bem, Basílio Horta lá vai, aqui no meio, por entre bandeiras da AD, da AD verdadeira, mas que já não havia nem o apoiava, e o jornalista a tomar conta, bem à direita, o que não deixa de ser paradoxal e embaraçoso, mãos nos bolsos, estantio, olhar enfastiado e bem agasalhado, porque, é o que eu digo, o tempo naquele tempo ainda era de confiança, e fazia frio em Portugal. Frio à moda de Fafe.
A seguir, se bem me lembro, fui ao Restaurante Maia, no Sameiro, consolar-me com o inevitável bacalhau com natas, que era então uma verdadeira especialidade.

(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!)

Pensamento do dia

- Gosto muito de pensar.
- O mundo?
- O gado.

Sempre alerta

Nas desbragadas palavras do humorista brasileiro Juca Chaves, os escuteiros são "um bando de garotos vestidos de idiotas, comandados por um idiota vestido de garoto". E consta que o famoso menestrel teve de pedir desculpas pela piada.
E o que é que eu acho? Eu gosto de ver os escuteiros, a toque de caixa, ribombantes e descompassados, abrindo a procissão da Senhora de Antime. E rio-me um bocadinho, confesso...

P.S. - Hoje é Dia do Pensamento ou Dia Mundial do Pensamento. E tem mais a ver com escuteiros e escutismo do que assim de repente se possa pensar.

Sapadora em acção

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Contra fatos

Eu tenho um fato. Um. Comprei-o pronto a vestir em 1987, se não me engano, para um casamento, isso é certo. O casamento para o qual eu comprei o meu fato já teve pelo menos dois divórcios, só do lado do noivo. O meu fato, não. Mantém-se fiel. Eu tenho um fato que é um facto à moda antiga. E nem sei se ainda me serve, sequer se estará em condições de ser vestido. Mas é o meu fato. E contra fatos...

Sou esbraguilhado por opção. Ao longo de quase quarenta anos, usei o meu fato mais quatro ou cinco vezes nos casamentos de mais quatro ou cinco amigos, sobrinhos e primos, num par de ocasiões solenes em Fafe, para agradar à minha mãe, numa excursão copofónica a Lisboa para acompanhar a entrega do Prémio Gazeta ao nosso Agostinho Santos e numa ida à televisão por dever de ofício. É, portanto, um fato praticamente novo, mas ando preocupado: quando eu morrer, o casaco de trespasse estará outra vez na moda?...

P.S. - Para quem se interesse por estatísticas: também tenho um par de sapatos. Um. E quatro bonés.

Esta maneira fafense de sermos

Vou a Oliveira de Azeméis, por exemplo, e levo uma data de "Ó jovem!", geralmente debitada por pessoas de bandeja na mão e com idade para serem, vá lá, meus netos. Afino! Ai, se soubessem como eu afino! Vou ao Porto ou a Lisboa, por exemplo, e atiram-me "Ó chefe!" acima e "Ó chefe!" abaixo, pessoas que não me conhecem de lado nenhum e com idade, vá lá, para terem juízo. Fico fodido! Ai, se soubessem como eu fico fodido! Por outro lado: vou a Fafe, por exemplo, e as pessoas, algumas com idade para serem, vá lá, meus filhos, chamam-me "Meu rico menino!", e eu aprecio, gosto. Fico feliz da vida! O carinho interessa-me, faz-me jeito. Quer-se dizer: todas as terras são por exemplo, mas algumas são mais por exemplo do que outras. E neste particular, deixem-me que vos diga, Fafe é, modéstia à parte, uma terra por exemplíssimo.

É. E já repararam no modo carinhoso como tratamos a comida, isto é, a comidinha. Esta maneira tão fafense e antiga, de indesmentíveis raízes galegas, que nos põe a falar mansamente da vitelinha, do pãozinho, das tripinhas, do cozidinho, do arrozinho, da massinha, do bacalhauzinho, das batatinhas, do azeitinho, da saladinha, do cabritinho. E como nós gostamos de falar de comida! E falamos de comida enquanto comemos. E no entanto, nós, os fafenses, pelos menos os já usados, somos tão capazes de manter conversas interessantes e profundas sobre gajas e carros como o resto dos portugueses. Creio até que ainda hoje ninguém nos bateria num debate sobre motorizadas, desmontando peça a peça e sem sobras o eterno dilema mural Zundapp vs. Sachs.
É. A felicidade é coisa pouca e tudo. Digo melhor: a felicidade é questão de um gajo se habituar. E para os fafenses, nisto da felicidade e de bons hábitos, a mesa é sagrada. É o altar da família, da amizade, do carinho partilhado. Dos carinhos. Dos miminhos. Da liturgia de todos os inhos. Também do bifinho para o menino, que anda com fastio e faz 32 aninhos, coitadinho. Sim, bifinho, um bifinho em prato-travessa, porque se coubesse num prato normal seria apenas bife, mas isso toda a gente sabe. E vinhinho? Está bem, uma pinguinha...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Língua Materna.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Os animais da minha infância

Tive uma infância feliz, em Fafe, rodeado de animais de estimação, ditos agora de companhia. Tínhamos um cão chamado Rin Tin Tin, tínhamos uma cadela chamada Lassie, tínhamos um canguru chamado Skippy e até tínhamos um cavalo chamado Mister Ed ao qual nem faltava falar. Eu ia vê-los ao café, porque em casa não tínhamos televisão.

P.S. - Hoje é Dia do Animal de Estimação. E também Dia Mundial da Justiça Social.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

O homem que se esqueceu de dizer virilhas

O homem que se esqueceu de dizer virilhas sou eu, passe a imodéstia. Hoje é o meu primeiro dia como reformado profissional, e deu-me para aqui. Por razões que não vêm ao caso, ultimamente tenho de usar muitas vezes a palavra virilhas. Ora acontece que, quando a quero dizer, ela - a palavra, essa mesma, virilhas - não há maneira de me sair, geralmente varre-se-me da memória, e nem sequer posso alegar que a tinha na ponta da língua, porque também é um bocado chato. Nessas delicadas ocasiões vêm-me à cabeça a palavra narinas, sempre gostaria de saber porquê, a palavra tomates, é claro, e a palavra ínguas, sobretudo a palavra ínguas, que emerge do meu antigamente fafense e parece-me que anda por lá perto. Mas virilhas é que nada.
Fico consideravelmente encaralhado, e hoje por acaso não estou a inventar. Estou a ser o mais palavra de honra que há. Palavra de honra.
Que se segue: conto aos meus amigos a aflição deste estúpido bloqueio, e um diz-me - Quantos anos tens? Pois. Não ligues, pá, é normal, pá, é da idade, pá. Até tem piada. Comigo é a mesma merda, mas com a palavra pevides. Isso não é grave.
Não é grave, vírgula - isto já sou eu outra vez. Porque não se pode comparar virilhas com pevides. E pevides de quê? Pevides secas ou frescas? Nacionais ou importadas? Para aperitivo ou sementeira? Por outro lado, quando eu preciso da palavra virilhas é geralmente para a dizer a senhoras. E, na angustiante ausência da palavra, acabo por acudir-me das mãos e do gesto para conseguir explicar-me. Estão a ver onde me agarro? E acham isso bonito?...

Se não fosse o amarelo...

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Fafe e as suas tradições

Em Fafe as pessoas gostavam muito de animais, como por exemplo gatos. Quase todos os lares tinham o seu gato ou a sua gata de companhia, principalmente derivado aos ratos, que também eram muitos e caseiros, mas recebiam visitas. Evidentemente estou a falar da parte de Fafe que me diz respeito e conheço, Fafe dos pobres. Ora, havendo gatos e gatas, havia também ninhadas, porque as coisas são como são e até os bichinhos gostam. Mas alimentar um ou dois gatos, mesmo com sobras, é uma coisa, outra coisa é sustentar uma família inteira de tarecos, ainda por cima largam pêlo como o caralho e nos primeiros tempos, antes de levarem naquele focinho para aprenderem, coitadinhos, cagam e mijam em todo o lado sem respeito nenhum. Que se segue? As pessoas gostavam muito de animais e pegavam na ninhada, deixavam um gatito de reserva e enfiavam os outros todos numa saca de sarapilheira bem fechada e bem atada a uma pedra bem pesada e pegavam na pedra, na saca e nos gatos e atiravam tudo ao rio, que eram vários e lingrinhas. Estou para fora há muito, não sei se Fafe ainda conserva esta tão bonita tradição...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Gato. Que por acaso também é no dia 8 de Agosto.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Eram outros carnavais

Foto Hernâni Von Doellinger
Na minha terra, naquele tempo, festividades assim familiares e praticamente religiosas como por exemplo o Entrudo tinham as suas normas, liturgia própria. Exigiam pompa e circunstância. Em Fafe, pelo Carnaval, a grande tradição eram, se me dão licença, os peidos-engarrafados lançados no Cinema. Uma lixeira de confetes e serpentinas, alguns pares de estalos, encontrões, ameaças e correrias tolas, mas sobretudo peidos-engarrafados, um fedor que não se podia mas uma grande risota, ou se calhar um grande risoto, como hoje em dia será mais fino dizer. Peidos-engarrafados e pimenta. Exactamente, pimenta culinária sacudida dos camarotes para cima da plateia. Enquanto isso, o filme. De preferência uma coboiada, com muitos tiros e estrondosas cavalgadas, mas normalmente não, porque o "programador" tinha uma ideia morcona de divertimento e folia, em nome de Deus, Pátria e Família. Anos sessenta e setenta do século passado - Portugal era assim, regra geral. Um país a bem da Nação. E há por aí uns que tais que querem esta merda de volta.
Durante o resto do ano, no Cinema, só eram permitidos peidos biológicos, caseiros, que, não desfazendo, também eram uma categoria, e para além disso tínhamos o Moisés, que isso então nem se fala! Eram peidos subversivos, contra o governo, que nos alimentava a couves e tínhamos de as comprar, porque nem os ricos as davam - vendiam-nas como se precisassem ou preferiam deitá-las aos porcos, que infelizmente não éramos nós, os pobres, no caso em apreço.

No nosso Carnaval havia corso pelas ruas do centro da vila. E o rei momo era o Tónio da Legião, bonacheirão, afavelmente decilitrado, com coroa, manto e barbas a condizer, e só podia mesmo ser ele, no trono, lá do alto do carro alegórico, palácio ou castelo, olhando de lado para o mundo. Não me lembro se lhe deram rainha. O Tónio da Legião tinha uma queda tremenda para a amizade e para a cozinha, mas isso não vem hoje ao caso. E o Aristides Carteiro, que era um senhor e praticava humorismo nas horas vagas, abria o cortejo mascarado de ciclista, realmente um disfarce à altura do seu insuspeito porte atlético.

Pelo Entrudo, em Fafe, queimava-se o Pai das Orelheiras, velha tradição popular, de afirmação de rua, que andou perdida durante anos e que a Câmara Municipal resgatou em 2017, se não me engano. No nosso Santo Velho nós fazíamos a fogueira e queimávamos o figurão. Era o ponto alto do dia, que por acaso era à noite. As nossas mães diziam-nos para não brincarmos com o fogo, porque senão, quando fôssemos dormir, iríamos mijar na cama. Nós brincávamos na mesma e ao entrarmos em casa para dormir levávamos logo o ensaio do costume, mesmo antes de se saber se mijávamos ou não, e eu achava isso muito injusto e provavelmente ilegal.
Não me vou armar em Freud, mas naquele dia elas vestiam-se deles e eles vestiam-se delas. Era uma ocasião muito esperada. Uma oportunidade. Adultos, casados e afins, saíam para a rua aos pares com as roupas ao contrário e as caras tapadas com caretas de papelão compradas no Rates, que tinha tudo mesmo antes de terem sido inventadas as lojas que têm tudo, farmácias à parte e hoje em dia os talhos. Assim disfarçados e de boca calada, os pares de foliões metiam-se com os vizinhos, e o grande divertimento era tentar descobrir quem seriam os tratantes, desconfiando-se sempre deste ou daquela, tu a mim nunca me enganaste...
A coisa às vezes acabava à pancada, mas quê, era Carnaval e ninguém levava a mal. Além disso, estávamos em Fafe e tínhamos os peidos. Os peidos-engarrafados, quero dizer.

É, bons tempos: pobretes mas alegretes. Fafe tinha belas tradições. Era tudo muito bonito e os peidos eram o nosso escape natural, o epítome do divertimento que se podia.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O Secónego

Foto Hernâni Von Doellinger
O Secónego era uma sumidade arqueológica. Um sábio. Sabia das lendas, da História, das pedras, das palavras, dos nomes e dos sítios, dos livros. Sabia das origens todas. Sabia. Estão a ver o José Hermano Saraiva na televisão? Pronto, o Secónego era a mesma coisa, mas sem televisão e a sério, com base científica. Ainda por cima, tinha piada fina. O Secónego comprazia-se em explicar aos seus alunos porque é que a terra de cada um se chamava como se chamava e porque é que uns eram Silva e outros eram Lopes. Explicou-me porque é que Fafe é Fafe e eu expliquei-lhe que não tenho culpa de ser Von Doellinger.
O Secónego tinha uma maneira de falar muito cómica. Falava como quem não abre a boca, às vezes com a mão à frente, com medo talvez de que se lhe evadisse a placa. Chamava-nos a todos "Ó menino!", embora já fôssemos uns respeitáveis gandulos, e ria-se satisfatoriamente.
Quando me chegou às mãos, o Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras" institucionalizadas para as aulas do Secónego. E os coninhas, que, borrados de medo, até respiravam pelas orelhas frente aos outros professores, pintavam a manta com o Secónego, numa coragem cobarde que ainda hoje me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena. Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia apenas "Leia, menino", apontando para ninguém. E nós lemos, mandei eu, e mandei também chamar quem o tirasse dali. Lemos: três ou quatro de nós, uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo. E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez, numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas ordens, porque eu sentia que o som das nossas vozes apaziguava a alma cansada e ausente do velho professor. E ele merecia.
Depois levaram-no.

O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da cidade de Braga para o Bom Jesus. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo: "Ó Secónego, que pena, uma casa tão bonita e quem por ali passa de carro só lhe vê o cume". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda nem o cume vê"...

(Quando acompanhava o seu próprio corpo, o que era cada vez mais raro, o Secónego sabia mesmo muito sobre os antigamentes de Fafe, e eu regalava-me a ouvi-lo. O Secónego, assim chamado, era o cónego Arlindo Ribeiro da Cunha (1906-1976), autor, entre outras obras, de "A Língua e a Literatura Portuguesa" e de uma "Gramática Latina" que chegou à sétima edição, tendo participado como colaborador regular na Grande Enciclopédia Luso-Brasileira e na Enciclopédia Verbo. Vimaranense de São Torcato, é nome de rua em Braga. E já agora: o parágrafo anterior deve ser lido em voz alta, como quem conta uma história, sobretudo o discurso directo da última frase. Fica melhor.)

Aqui chegados, como diria o nosso Luisinho Marques Mendes, que também é um latinista, li hoje no Público que "mais de quatro anos depois de sucessivas queixas, a estrada de acesso ao Bom Jesus de Braga vai ser requalificada pela Infra-estruturas de Portugal (IP) a partir de Abril ou de Março, caso o clima o permita". Lembrei-me, portanto, do Secónego, e Deus queira que não chova!

E hoje é o quê?...

Ontem foi o Dia dos Namorados. E hoje? Com a velocidade a que os tempos correm e mudam as vontades, nunca sei como é que se diz: se hoje é o ex-Dia dos Namorados ou o Dia dos ex-Namorados.

P.S. - Para que conste, hoje é Dia Internacional da Criança com Cancro.

Acabou-se a mama

Ontem foi Dia dos Namorados. Hoje não. Acabou-se a mama!

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Amor sem dia marcado

Casámo-nos no Dia dos Namorados. Faz hoje exactamente um número respeitável de anos. E é como de fosse ontem. Como se fosse amanhã. Naquele tempo nem se sabia que havia Dia dos Namorados e não fazia falta nenhuma: ainda não tinham sido inventadas as lojas de inutilidades nem as ementas de namorados em restaurantes fatelas e oportunistas. Havia o amor. E o amor não precisava de dias marcados no calendário. Namorava-se a cotio e pronto, e namorar era bom. Namorar é bom!
Mas o que eu quero dizer: o Dia dos Namorados é uma treta; o aniversário do nosso casamento, não.

P.S. - Hoje é Dia dos Namorados ou Dia de São Valentim. E Dia do Amor.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Várzea Cova FM

Ele tinha dois rádios muito jeitosos. Depois de um ligeiro acidente na descida para Várzea Cova, o rádio do braço esquerdo, coitadinho, só apanha a onda curta.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Rádio. Continue connosco...

Ligava-se o rádio e abria-se o pano

Foto Hernâni Von Doellinger
Todas as noites. A nossa mãe pegava em nós - na Nanda, no Nelo e em mim - e colocava-nos de joelhos e mãos postas, virados para a parede. Não era castigo, era amor. Na parede do quarto da nossa mãe, por cima da cama de casal, estava pendurada uma daquelas gravuras do anjo da guarda à la menino da lágrima. Rezávamos: "Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia."

(Morávamos na casinha amarela do Santo Velho. O quarto da nossa mãe, logo à entrada, era também a sala, a urgência, o consultório das aflições e desgraças da rua inteira. A minha mãe curava. Cura. Eu era então o mais novo e os mimos eram todos para mim. Os mimos que a pobreza honrada permitia. Éramos remediadamente felizes, mas ríamo-nos muito, graças a Deus. Umas senhoras da Granja que trabalhavam no Posto Médico e passavam pelo nosso Santo Velho diziam que eu "até a chorar era bonito" - contava-me a minha mãe, cheia de vaidade, fazendo-me festinhas nos caracóis, e eu gostava. E eu gosto, mãe. Quando a minha mãe se zangava comigo - e eu enchia-a de razões para isso -, dizia-me que eu tinha sido deixado lá em casa pelos ciganos...
Depois nasceu o Lando e acabaram-se-me as mordomias.)

Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito "sem aldrabices" por ordem expressa e vigilante da nossa mãe, íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma cama para a Nanda e a cama maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Dramalhão. Mas tudo dentro dos conformes, pela moral e pelos bons costumes, tudo muito a bem da Nação. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora má e ciumosa que fazia a vida negra ao senhor viúvo e bom que gostava da menina tísica e bela que tomava conta dos quatro filhinhos dele, senhor viúvo e bom, a qual senhora má e ciumosa, todos concordávamos com a nossa mãe, era realmente "uma grande cabra", embora eu não visse nisso grande defeito. Na escola já tinha feito algumas redacções sobre "A cabra" e por isso sabia que a cabra é um animal doméstico e serve, nomeadamente, para a nossa alimentação, que era assim que a coisa se rematava.

O teatro terminava, vinha a ficha técnica - porventura autoria ou adaptação de Odette de Saint-Maurice, certamente as vozes de Jorge Alves, Manuel Lereno, Carmen Dolores, Rui de Carvalho, Eunice Muñoz ou Canto e Castro... nos papéis de -, mas a nossa mãe só desligava depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis", que ainda era mais mágico. Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer.

Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz. Radioso.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Rádio.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Quando o cancro era proibido

Foto Hernâni Von Doellinger
Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita. Evidentemente eu não posso dizer se Fafe era uma terra mais ou menos hipócrita do que as outras terras, porque eu só conhecia Fafe, mas que Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita, disso tenho a certeza absoluta, porque eu estava lá e não sou parvo. Provavelmente Portugal completo era um país um bocadinho hipócrita, se calhar inteiramente hipócrita, mas disso eu não sabia ainda, não fazia sequer ideia, porque, é como digo, eu estava em Fafe, e em Fafe desconhecia-se o mundo abaixo de Arões, sobretudo derivado àquilo de que Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita. Mas, verdade seja dita, éramos razoavelmente felizes e saudáveis.
Em Fafe, por exemplo, ninguém padecia de cancro. Porque em Fafe não existia a palavra cancro. Cancro. A palavra cancro não se dizia. O cancro era crime e castigo. Pecado e culpa. Vergonha, tabu. Assim como as viúvas. Dizia-se que Fulano ou Sicrana tinham - aqui baixando a voz ao nível do sussurro, do segredo ao ouvido, do cochicho maledicente, da coscuvilhice beata - um psdtrff. Um psdtrff, com sinal da cruz e tudo. Sim, estava no hospital, no Porto, com um psdtrff, muito malzinha ou malzinho, consoante fosse Sicrana ou Sicrano, Deus lhe perdoe. Muitos fafenses morreram, naquele tempo, com psdtrff, mas nunca ninguém morreu com cancro. E não havia Sicranes.
E mamas? Mamas, dizia-se. Havia mama e havia mamas em Fafe, embora não fosse geral, como já aqui informei com todo o rigor. Tanto quanto me lembro, predominava um certo convencimento de que as raparigas e mulheres de Fafe possuíam realmente mamas, porém nem todas queriam que isso se soubesse. Mas cancro e mamas ou mama é que nunca poderiam coincidir numa mesma frase: cancro da mama, vamos um supor, seria impossível, desde logo porque é obsceno, e a pornografia constava que era só em Guimarães, e, em todo o caso, como se viu, a palavra cancro não existia em Fafe. Psdtrff da mama, com todo o respeito, até admito que possa ter havia, mas eu nunca ouvi dizer, devo confessar.
E depois do cancro, a sida, a mesma hipocrisia, a mesma pequena hipocrisia, a mesma enorme ignorância. Ignorância e indizível maldade. Naquele tempo, o cancro esteve para a sida como João Baptista serviu para Jesus Cristo, mas não adiantou, ninguém acreditou, essa parte não vinha no catecismo de sacristia, rançoso e cruel, e bondade e compaixão eram apenas palavras da boca para fora. Como psdtrff...
Assim eram as coisas nos bons velhos tempos, e eu limito-me a contá-las tal qual as sei. Fafe está aqui como mero pretexto, mais nada. Fafe é hoje uma terra completamente diferente e absolutamente igual. Porque Fafe, sendo talvez às vezes uma terra um bocadinho hipócrita, é com certeza e sempre uma terra do caralho. Quero dizer, do c******.

O Homem-Prazol

Os super-heróis. Fui um apreciador, confesso. Desde os meus tempos de miúdo, em Fafe, à pala da televisão a preto e branco do Peludo, das borlas no Cinema ou dos livrinhos de cobóis levados à troca no postigo por baixo da Arcada, onde agora funciona o Turismo. Apreciava o homem-aranha, o homem-formiga, o homem elefante, o homem-rã, o homem de gelo, o homem de ferro, o homem de lata, o homem-bala, o homem-estátua, o homem invisível, o homem que veio de longe, o homem-sanduíche, o homem-crocodilo, o homem-tocha, o homem-máquina e até o homem-bata, que quase existia. Apreciava, sim senhor. Mas. Derivado a pecados velhos e por indicação médica, hoje em dia sou mais dado ao homem-prazol.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Doente. As melhoras!...

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Regresso às raízes

Chegou aos 66 anos e quatro meses, reformou-se e resolveu voltar às raízes. Mandioca, cenoura, beterraba, batata-doce, inhame, gengibre, nabo, rabanete - à base disso.

P.S. - Hoje é Dia Mundial das Leguminosas.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Serviço e toalha

Gosto muito de ténis. De ver na televisão. Não sei jogar, nunca joguei. Suponho que nem seria capaz de acertar com a raquete na bola, quanto mais executar um approach ou um lob, meter um passing shot ou um slice, esmagar com um smash - logo eu que sou um zero a inglês. Mas há uma pancada do ténis moderno em que sou craque: a limpeza-do-suor-com-a-toalha. Como é do conhecimento de todos os seguidores da modalidade, a limpeza-do-suor-com-a-toalha é, hoje em dia, a principal pancada do ténis. Até havia chegadores de toalhas, apanha-bolas nos tempos livres. Qualquer jogador que não limpe-o-suor-com-a-toalha de trinta em trinta segundos nem é jogador nem é nada. Num encontro que dure duas horas, por exemplo, hora e meia é gasta a limpar-o-suor-com-a-toalha. E os duelos de limpeza-do-suor-com-a-toalha são interessantíssimos. E as toalhas são de desenho exclusivo para cada torneio. Lembro-me de quando não era assim e era uma chatice. Não sei quando é que esta revolucionária pancada começou, mas podia ter sido inventada por mim. Haviam de me ver, pratico-a de forma exímia. Mesmo nesta idade. Principalmente nesta idade e cada vez melhor. Que pena o ténis não ser só limpar-o-suor-com-a-toalha.

P.S. - A Taça Davis foi criada no dia 9 de Fevereiro de 1900.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

E não há nada que se beba?

Isto passou-se na Brecha, palavra de honra, em dia de bolo com sardinhas, portanto num sábado, se não me engano. E as sardinhas eram evidentemente fritas, como manda a tradição. Fafe tinha conversas assim, elevadas, necessárias, e era uma terra geralmente muito bem frequentada. E daquela vez em especial. Como se fosse uma anedota, juntaram-se um alemão multinacional, um americano, um inglês, um francês, um italiano, um espanhol e um português, todos gente de rebimba o malho. E diz o Albert Einstein: "A imaginação é mais importante do que o conhecimento". E diz o Mark Twain: "O homem que não lê bons livros não tem nenhuma vantagem sobre o homem que não sabe ler". E diz o Charles Dickens: "Nunca nos devemos envergonhar das nossas próprias lágrimas". E diz o Antoine Lavoisier: "Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". E diz o Leonardo da Vinci: "Do mesmo modo que o metal enferruja com a ociosidade e a água parada perde a sua pureza, assim a inércia esgota a energia da mente". E diz o Miguel de Unamuno: "Viaja-se não para encontrar o destino, mas para fugir de onde se parte". E diz o nosso Anacleto Silveira: - Não há nada que se beba?...

P.S. - Charles Dickens nasceu no dia 7 de Fevereiro de 1812.

Os Bítalas

Nunca será demais dizê-lo: os Bítalas eram um conjunto e cantavam obladi obladá. Eram quatro, sendo que o do bombo tinha cara de morcão, e chamavam-se Bítalas exactamente por terem cabelo grande, mas que afinal não era assim tão grande, como os hippies vieram posteriormente a demonstrar - era apenas um cabelinho amaricado, aparadinho, muito anos vinte, muito tipo Beatriz Costa. Os Bítalas eram ingleses de Liverpool e do mundo. Em Fafe, no tempo em que imperava o corte à tigela (ou malga, se fosse mesmo à nossa moda), quem tivesse o cabelo a roçar as orelhas era Bítala. Eu fui, mas cantava num orfeão de manifesto pendor sacrista e por isso passei ao lado de uma grande carreira.

P.S. - Os Beatles estrearam-se na televisão dos EUA no dia 7 de Fevereiro de 1964. Foram vistos por 73 milhões de pessoas.

A última impressão

"A última impressão é a que fica", dizia repetidamente. E sabia do que falava. Ele era tipógrafo, especialista em offset.

P.S. - Por falar nisso. Hoje é Dia do Gráfico ou Dia Nacional do Gráfico. No Brasil.

Fulanos, sopranos e beltranos

Foto Hernâni Von Doellinger
Os sopranos têm, por definição, o tom de voz mais agudo e com mais alcance de mulher ou de rapaz muito novo. Se os sopranos forem homens, os puristas preferem chamar-lhes contratenores, que há quem confunda com contentores. Os sopranos dividem-se essencialmente em sete partes: soprano ligeiro, soprano lírico-ligeiro, soprano lírico, soprano lírico-spinto, soprano lírico-dramático, soprano dramático e soprano ultraligeiro. Também podem ser saxofones ou clarinetes, por exemplo. Nos Estados Unidos, os Sopranos ainda piam mais fino: são mais que as mães, maus como as cobras e convictos frequentadores de meretrizes. São extremamente mafiosos e profundos conhecedores, estes sim, de contentores, blocos de cimento e rios. Quando inadvertidamente apanhados por famílias inimigas, e desmembrados como manda a lei, os Sopranos são chamados, por divertimento, meios-sopranos. Os Sopranos americanos fizeram uma excelente série de televisão e posteriormente derem em filme, que deveria ter por título, corrigido, digo eu, "Os Contratenores". O melhor Soprano do mundo (portanto, o pior) chamava-se Tony e padecia de ansiedade.

Outra coisa. O musicólogo alemão e construtor de instrumentos Adolfo Sax, criador do saxofone, morreu no dia 7 de Fevereiro de 1894, aos 79 anos. Como já aqui contei, o meu pai era músico e tocava saxofone na Banda de Revelhe. Isto antes de ir para França. O que não tinha contado é que o meu irmão Lando também. Também foi músico e também tocou saxofone na Banda de Revelhe. Isto antes de se dedicar a outros consertos.

O verdadeiro drama brasileiro

O verdadeiro drama é este: já falta menos de uma semana, e milhões de brasileiros, sobretudo brasileiras, ainda não sabem de que se vão despir no Carnaval.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Comíamos Planta e já éramos ricos

Não sei como dizer isto sem ferir susceptibilidades, mas não há como fugir à agenda: hoje é Dia Mundial da Nutella. Também não sei a que é que sabe a nutella e até suponho que não me faz diferença não saber. Na infância tive decerto a minha pequena dose de tulicreme nalgum fortuito episódio de fartura doméstica de que não guardo grande memória, já me explicaram que nutella e tulicreme não são a mesma coisa, antes pelo contrário, mas não estou apetrechado para milimetrar a comparação nem para o debate que o assunto obviamente impõe. Por outro lado: quando a manteiga entrou em nossa casa chamava-se Planta, era bem boa e nós já achávamos que éramos ricos. Naquela altura, uma rulote muito jeitosa estacionava no nosso Santo Velho e umas senhoras muito simpáticas e de bata branca ou avental chique explicavam muito bem explicada a margarina Vaqueiro, que era outra novidade para o povo, davam a provar a quem passava, iam a casa fazer demonstrações por medida, e eu achava que a nossa Milinha de cima, a Milinha Vaqueiro, é que tinha mandado vir. Não sei se tinha...
Sei é isto: há exactamente dois anos, na Póvoa de Varzim, icónica Rua da Junqueira, uma excelentíssima bola tipo berlim com creme normal custava um euro, um euro certo, e a merda de uma bola tipo berlim com nutella custava um euro mais vinte cêntimos. Meto-me no metro e vou lá um destes dias ver em que param as modas, e se as bolas com nutella forem este ano mais baratas, ou até dadas, compro na mesma das de creme normal...

P.S. - Para que conste: na verdade, costumo ir à Póvoa, de propósito, só para comprar bolas de berlim. 

domingo, 4 de fevereiro de 2024

O cão, esse ancestral e fiel alcoviteiro

Foto Hernâni Von Doellinger
O cão é, desde tempos imemoriais, uma das mais consistentes artimanhas do homem para a queca. Quem tem tesão compra um cão, diz o povo e com razão. Porque o animal - aflito, ziguezagueante, ganinte, de orelhas, rabo e tudo arrebitado -, parecendo embora que sai à rua em busca desesperada por parceira ou parceiro de quatro patas onde possa aliviar o stresse, vem mas é tratar do cio do dono. Ou da dona. Por procuração.
Largado à frente, sem trela, "Vai, Corisco, vai, arranja-me uma gaja! Um gaja boa!", o cão é um batedor sexual para prazeres alheios. Evidentemente tem de se entender com o outro animal, mas isso é truque, pretexto para o dono chegar à dona, como todos sabemos, e depois eles, dona e dono, ou dono e dono, ou dona e dona, depois de conversarem resumida ou detalhadamente sobre raças e rações, que se entendam e se acamem. E muitas vezes entendem-se e acamam-se. Olhemos à nossa volta, sem falsos pudores: quantos namoros e casamentos, que nós tenhamos conhecimento ou desconfiemos, não foram intermediados por cães? Quantos engates e quantas pinocadas avulsas?!...
Passear o cão, é assim que se diz, mas querendo dizer outra coisa. Há até quem dê treino específico ao cão, para loiras ou morenas, gordas ou magras, inteligentes ou burras, e assim sucessivamente e vice-versa. É verdade, ele há cães especialistas. Cães de um certo tipo, de uma determinada caça.
O cão é, portanto, um alcoviteiro. Mas já foi mais, no tempo em que não havia Facebook. No tempo em que se mandava uma cadela ao espaço e a cadela chamava-se Laika. Hoje chamar-se-ia Like. É. As chamadas redes sociais na internet são agora, particularmente para casados, o principal móbil do engate, o menu do sexo à mão de semear, e esta nova realidade veio prejudicar sobremaneira os cães, cada vez mais substituídos, abandonados e abatidos, por aparentemente já não serem precisos.
Correndo o risco de fazer um título à Correio da Manhã, eu diria que o Facebook está a matar o cão. Aos poucos. E, todavia, acho que compreendo esta paulatina porém irreversível substituição do "animal doméstico" pela "aplicação social", porque a verdade é só uma: comprar ou adoptar um cão dá provavelmente mais trabalho e despesa do que criar um perfil no Facebook, sendo que o resultado final é o mesmo. Nestes tempos conturbados, o meu mais descarado elogio vai, pois, para as almas caridosas, afogueados adúlteros, que acumulam cão e Facebook, pelo sim e pelo não, e só temos de lhes agradecer, em nome dos animais.
Salvemos o cão! Porque ainda há algumas diferenças a considerar entre o cão e o Facebook, a não ser que Facebook seja o nome do cão. Para além de que o Facebook, o da internet, tem aquele perigo (há casos!) de a mulher andar a pôr os cornos ao marido e o marido andar a pôr os cornos à mulher - cada qual com o seu perfil secreto, mais ou menos falso e sobretudo deveras criativo -, até ao dia em que se engatam como desconhecidos e depois se encontram para o que já sabemos. É então que marido e mulher reciprocamente infidelíssimos descobrem que afinal foram feitos um para o outro.

P.S. - O Facebook foi lançado no dia 4 de Fevereiro de 2004, faz hoje 20 anos. E foi aí que começou a amizade. Antes do Facebook, não havia amigos.

Eu seja ceguinho, disse o invisual

Havia um cego que tinha olho. Era de fora, o cego, não me lembro de onde é que vinha nem quem o trazia, mas ele fazia a feira de Fafe, todas...