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quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

O Amigo Bastos

Foto Tarrenego!

Descíamos no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo. Era aquela caloraça das ilhas, aquele esplêndido exagero de luz, o ar quase sólido que sufoca a respiração dos menos habituados, o bom odor de salsugem, que peço emprestado ao mestre. Eu de barrete branco enfiado na cabeça e lenço tabaqueiro atado ao pescoço, as barbas suando em bica, ele no seu fato impecável, o laço "de fazer" milimetricamente composto, dizia-me "Oiça lá, você parece o Hemingway!...", e soltava uma enorme gargalhada, exabundante, para ser ouvida pelos passantes e sobretudo pelas passantes, porque, estivesse onde estivesse, sempre fez questão de que se soubesse, sobretudo elas, que por ali andava o famoso Baptista-Bastos.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, flatulando améns, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia repetições: "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, dizia, eu e o mestre, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira, invadida por poderosas pick-ups de matrícula americana e nas narinas o aroma intenso, miscigenado, a especiarias e a mundos libertados pelas portas provocantemente escancaradas do loja antiga e encantatória.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: afinal, AB.) E creio que percebi bem.

- Mas oiça lá: "à sua beira", foi o que disse? Que expressão tão bonita! "À sua beira"...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical!

Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e simpatizantes, de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam mutuamente por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.

Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora na terceira página, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias! Todos os dias!...
E eu não esqueço, Amigo Bastos.

P.S. - As primeiras forças militares norte-americanas desembarcaram no porto de Angra do Heroísmo no dia 9 de Janeiro de 1944. Em plena II Guerra Mundial, 532 técnicos envolveram-se nos trabalhos de terraplenagem e foram os responsáveis pela actual configuração do aeroporto das Lajes, com cinco pistas, a mais extensa das quais com quatro quilómetros. Não curiosamente, o nosso Baptista-Bastos foi prefaciador de Hemingway em Portugal. E a loja antiga e encantatória, em Angra, chamava-se, se não estou em erro, Basílio Simões & Irmãos.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O Amigo Bastos

Foto Tarrenego!
Descíamos no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo. Era aquela caloraça das ilhas, aquele esplêndido exagero de luz, o ar quase sólido que sufoca a respiração dos menos habituados, o bom odor de salsugem, que peço emprestado ao mestre. Eu de barrete branco enfiado na cabeça e lenço tabaqueiro atado ao pescoço, as barbas suando em bica, ele no seu fato impecável, o laço "de fazer" milimetricamente composto, dizia-me "Oiça lá, você parece o Hemingway!...", e soltava uma enorme gargalhada, exabundante, para ser ouvida pelos passantes e sobretudo pelas passantes, porque, estivesse onde estivesse, sempre fez questão de que se soubesse, sobretudo elas, que por ali andava o famoso Baptista-Bastos.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, flatulando améns, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia: "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, dizia, eu e o mestre, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira, invadida por poderosas pick-ups de matrícula americana.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: afinal, AB.) E creio que percebi bem.

- Mas oiça lá: "à sua beira", foi o que disse? Que expressão tão bonita! "À sua beira"...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical!

Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e simpatizantes, de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam mutuamente por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.

Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora na terceira página, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu tonitruante o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias! Todos os dias!...
Não esqueço, Amigo Bastos.

P.S. - Texto publicado neste blogue no dia 7 de Agosto de 2022. Armando Baptista-Bastos nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1934. Faria hoje 90 anos. E é por isso.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Bicho bom é malcriado para todos

José Henrique, primeira figura que se preza, garante que sozinho lida melhor. Toiros, há-os "bons e os que não prestam". Mas raramente é surpreendido: "Conheço-os a todos e eles conhecem-me a mim. O toiro sabe por onde eu vou e eu sei por onde ele vai. Por isso posso muitas vezes pôr-lhe a mão em cima da testa", que é do que o povo gosta. A alguns animais foi ele quem os toureou na "primeira corda, na segunda e na terceira". E chega a lidá-los até cinco vezes.
Mas o que verdadeiramente dá gozo a José Henrique, capinha, é que os toiros lhe apareçam "bravos", que lhe saiam "o 309 ou o 314, o melhor, que é malcriado para todos". O que se compreende: afinal, já lá vai quase uma dúzia de anos e, não sossega o gabanço, nunca foi "pegado".

Passou um quarto de hora, e dois foguetes ordenam a recolha do primeiro da tarde. Por momentos a rua volta a encher-se de heróis refractários que, sumários minutos escorridos, ao aviso estrondoso de mais um foguete, outra vez voam supersónicos a esconderem-se no quentinho dos abrigos. Aí vem o segundo. E tudo se repetirá mais duas vezes, que a função completa é assim, quatro-toiros-quatro.

Tourada à corda, um espectáculo de reis. D. Carlos e D. Amélia estiveram uma vez na corrida de São João de Deus. Um espectáculo de rua e de mar, para onde se atiram toiro e homem, no Porto de Pipas, para o banho sacramental. E um espectáculo para todos na RTP Açores, que transmite em directo as principais corridas.
Ao vivo, é a delícia de uma multidão paciente, conhecedora, apaixonada. Devota. Na Terceira vai-se aos toiros praticamente desde que se nasce. Incontornável ponto de encontros, à sombra daquele desbragado sol selam-se amizades de vidas, e muito casamento é ali mesmo que se ajeita. Convívio, é isso. As corridas à corda são também por fora: muito convívio a fazer a festa da festa.
Com 70 anos bem medidos, João Gatim, pescador na reforma, vê toiros desde que se lembra de enxergar alguma coisa. "Nos toiros, por este nome, toda a gente sabe quem sou", faz questão de avisar. "Ando aqui porque gosto, e pronto, muito mais do que das corridas na Praça. E aí vou eu, com os meus amigos, já há muitos anos, por esses arraiais fora", diz-me, encolhendo os ombos.
Claro que, no seu tempo, Dom Gatim também deu o seu gostinho à sapatilha à frente dos toiros e trambolhou vira-cus que são o seu orgulho. Recorda: "Fui pegado três vezes - da primeira estive quinze dias de cama, mas das outras duas, é claro, já sabia mais e saí-me limpinho".
Mestre João Gatim contenta-se agora como espectador. Não um qualquer, atenção! Peregrina, batendo-as a todas. Mais sôfrego por corridas à corda que o Libaninho do Eça por missas, papa quantas pode. Por ano, vai aos toiros aí umas cem tardes. Santo consolo...

P.S. - Sétima e última parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha.

segunda-feira, 12 de junho de 2023

A arte dos capinhas e o passe de guarda-sol

Os capinhas, em pose inicial algo parecida com a do forcado da cara nas corridas à portuguesa, enfrentam o toiro, citam, provocam, correm-lhe ao encontro, ensaiam o "temple", "aguentam" ou, momento supremo, "adornam-se", tocando-lhe entre hastes. E raspam-se a mil à hora. E reincidem. Sempre pela frente. "Passar por detrás do rabo de um toiro é desconsideração, é uma falta de respeito ao animal", elucida-me um purista, velho aficionado. Compete aos capinhas "levantar" o toiro, fazê-lo dar o máximo ao espectáculo.
E aqui é que bate o ponto. Algumas más-línguas desconversam que estes espontâneos em full-time recebem dinheiro dos ganadeiros para fazerem brilhar especialmente os seus toiros ou, coisa medonha, são pagos por criadores terceiros para reduzirem ao fiasco a exibição dos animais da concorrência...
Maldades ditas do piorio. A pés ambos, José Henrique e Noé - dois dos quatro ou cinco capinhas sobreviventes em toda a ilha ("Há por aí uns rapazes a aprender") - juram que não, e que não, e que não: "Não há negócio nenhum, nem com os ganadeiros nem com as comissões de festas". Pois...
"É só por gosto, a gente gosta. Tourear toiros é bonito. Isto para mim é como o futebol, o meu verdadeiro futebol", explica-me José Henrique, na arte há onze anos e em vésperas de pendurar as sapatilhas.
José Henrique considera-se "um toureiro toureiro realizado", faz questão de frisar apontando para os meus apontamentos. Toureiro toureiro, assim mesmo, não foi engano. "Já toureei na América, toda a gente que vem aos toiros me conhece", acrescenta, com orgulho internacional. Passou pela escola de toureio da Praça de Angra do Heroísmo, mas "não tinha gosto nem vagar". Ainda assim não resiste a dar lá uns saltos, à Monumental, para expor a sua valentia, desafiando toiros "sem muleta, sem capa, de peito aberto".
Conta-me: "Uma vez, eu, o Ananias, o Dimas, o Magalhães e o Rosas lá estivemos. Eram toiros bem bravos, o 163 e o 164. Toureiros do Continente e de São Miguel nem lhes conseguiam chegar, e a gente ali, a ajudarmo-nos uns aos outros, a escorregarmos quando calhava, mas a fazermos ver àquele povo. É bonito é ir ao meio da praça e chamar o toiro com o guarda-sol"...
Note-se que raros capinhas se aventuram hoje em dia ao famigerado passe de guarda-sol, executado em duo: um, empunhando o guarda-sol propriamente dito, e o acólito ao lado, com a samarra nas mãos; um a servir de engodo ao toiro e o outro a rematar o número em beleza; ou vice-versa. São raros. E por via disso é que os mais antigos recordam com saudade e emoção as grandes tardes do Prosa, exímio executante daquela arte.

P.S. - Sexto fascículo de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

domingo, 11 de junho de 2023

Há que tê-los, como os toiros...

A entrada em cena da fera espanta a preguiçosa turbamulta, que corre agora a esconder-se por trás dos taipais e a empoleirar-se nas cristas dos muros. No entanto, quer parecer de repente que há ali valentes - muitos, alguns, cada vez menos -, que, desajeitados, de largo, arremedam manobras patuscas a que o bicho faz o favor de não deitar sentido. Mas não. Era afinal a armar à precária coragem de encomenda. Logo que se encurtam as distâncias, ala que se faz tarde, os heróis de pacotilha enxotam-se rua fora em carreiras destrambelhadas. É. Para enfrentar o toiro, há que tê-los. Mas não estão à venda...
Em menos de um susto, o terreno fica limpo, entregue aos que verdadeiramente lhe têm direito: o toiro mais os pastores e os capinhas - um, dois ou, no máximo, três. Capinhas? Vá-se lá saber o porquê do nome. Estes jovens não vestem "trajes de luzes", não usam capote nem manejam a espada. Sem farpela especial, precisam, isso sim, de umas boas sapatilhas. E ali estão! Agora é que é, assunto para esclarecer entre verdadeiros artistas, os capinhas e o toiro. E então se enovela uma dança-luta de prender atenções e cortar respirações, arca por arca, mano a mano, sem truques.
Nada na mão, nada na manga. Ordena o Regulamento das Touradas à Corda da Região Autónoma dos Açores que "todos os participantes na lide ou corrida não podem utilizar instrumentos susceptíveis de provocar ferimentos no toiro, como "aguilhões", podendo, todavia, fazer uso dos instrumentos consagrados como tradicionais, nomeadamente o bordão, blusa ou pano, a varinha e o guarda-sol."

P.S. - Quinto episódio de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

A primeira pertence ao toiro

Quem quiser assistir a uma lide à moda antiga, sob a ortodoxa liturgia das origens, deverá deslocar-se à Canada das Cales, nos Altares. Mas quem pretender viver uma das corridas mais interessantes e famosas, então terá de ir à Ladeira Grande. "Os melhores animais estão reservados para ali. Aquilo é uma montra de toiros", dizem-me os da tarimba. Mas, a verdade é esta, também não se enfastiará quem resolver vadiar aos toiros pelas Doze Ribeiras, por Vila Nova ou pelas Lajes.
Ligada tradicionalmente às festas e romarias da freguesia ou do sítio, a tourada à corda é corrida em plena rua, na estrada, com portas e cancelas convenientemente resguardadas com taipais de madeira atamancados à medida, num percurso que não poderá exceder os 500 metros, e os seus limites estão marcados, em ambos os extremos, por dois riscos brancos, pintados no chão com um intervalo de cinco metros entre si. Estas linhas servem também para discriminar responsabilidades em caso de estragos e prejuízos: a cargo dos mordomos da festa, se dentro; por conta do ganadeiro, quando fora.
A rua esborda de uma multidão passeante que o calor abafado empurra a entornar-se na cerveja e no vinho de cheiro. Às cinco da tarde em ponto, uma solitário foguete rasga o céu anunciando com estrondo a saída da primeiro toiro. Comandam-no os pastores, com uma corda de 90 a 95 metros, espécie de arreata que, por assim dizer, conduz e mantém o animal nas balizas do arraial.
Os pastores, homens do ganadeiro, vestem para o acto chapéu de feltro preto, camisola branca com feitio e calça preta ou cinzenta. Como manda a lei, deverão ser sete, divididos pelo meio e pelo fim da corda, mas o povo não gosta de lá ver muita gente. À frente, o rodador, que "vira a mão" consoante o toiro vai "pedindo", ajudado pelo resto do grupo da "pancada", para suster o animal no limite da corda durante toda a corrida. A pancada, há que saber dá-la: nunca por nunca "de estaca", isto é, de supetão, porque então o toiro tombaria. E isso seria uma vergonha!
Entre estes homens guarda-se e respeita-se uma tradição que vai marcar o desenrolar da lide e que ordena que "a primeira é do toiro e a segunda é dos pastores". Quer-se dizer: o animal é livre de arremeter o primeiro ataque, porque "só assim a luta é leal", ensinam-me os mais antigos, mas na segunda investida já poderá ser refreado pelos pastores.

P.S. - Quarto fascículo de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

"Mulato", o ídolo das multidões

Tudo começa pelo cedo, no "mato", horas antes da tourada propriamente dita. Sob o olhar interessado e crítico de muitos aficionados, os pastores (espécie de campinos apeados) apartam e conduzem para o redondel do ganadeiro contratado um lote de animais de onde sairão, após vistoria veterinária, os quatro para a lide.
Não se trata, em boa verdade, de uma escolha. De facto, os toiros são conhecidos e requisitados consoante a fama que os precede. Depois de corrido na praça, o toiro é tratado para regressar à pastagem. É, apesar de tudo, um "puro", e estará então pronto para a sua "primeira corda". Daí para a frente, dos três aos nove anos, será o seu valor (que "a corrida é boa quando o toiro é ruim") a determinar o número de funções e de temporadas em que se manterá em cartaz. E mesmo depois, com dez ou doze anos, já passado e em idade de aposentação, ainda colaborará em corridas de segunda ou de oferta benificente do ganadeiro. Reclamam, solenes, os fundamentalistas, que não estão virados para vacadas com recurso a decadentes velhas glórias...
O nome próprio do toiro da corda é um número. Os bons desempenhos e o sucesso poderão conferir-lhe, por distinção, o privilégio da alcunha. O "Descornado" ou "Galho e Meio", no activo pelos anos 50 e 60 do século passado, é dos mais famosos: tudo o que é bom - garentem alguns entendidos - descendeu dali. Mas era o "Mulato" ("o velhaco", "o traiçoeiro", "o sabido") que por aquela altura convocava as multidões. Toda a gente o queria ver, se bem que ao longe. Dele se afirma, quase por unanimidade, ter sido "o melhor de todos". Ao "Mulato" podem juntar-se, na selecta tribuna dos notáveis, o 90 e o 14. Nos últimos tempos, o 309 e o 314 são do melhor que por ali se corre - diz quem sabe.
A questão tem mesmo muito que se lhe diga. Na verdade, é singularmente à volta do toiro, e de mais nenhum dos intervenientes na corrida, que as opiniões dos entendidos se extremam, se incendeiam. Espontâneas tertúlias maliciosamente picadas por infiltrados amigos da onças, marralham, discutem, barafustam quase em vias de facto pela imposição dos melhores, dos seus melhores. Exactamente: na corrida à corda, os aficionados são pelo toiro...

P.S. - Este é a terceira parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Os toiros é que eram o verdadeiro futebol

A história das touradas na ilha Terceira é rica em peripécias. Para que conste e se não incomodem em desgostos os pouco secretos participantes em recente vernissage de morte, foi aqui, a 13 de Setembro de 1895, que pela primeira vez um artista espanhol, Mateíto, matou a estoque um toiro em Portugal. Deu-se o caso no pátio da Quinta do Rosário, na Terra Chã, propriedade do conde de Barcelos.
No último quartel do século XIX, a função à corda deverá ter-se revestido de alguma selvajaria, já que não faltam relatos e denúncias de maus tratos aos animais. Em 1900, uma certa "inovação" numa corrida em São Carlos, nos arrabaldes de Angra, veio alterar os ânimos da imprensa local - à época, atenta e vigilante -, que logo bradou contra o "abuso" de se lidarem dois toiros ao mesmo tempo. Contam os arquivos: "Em São Carlos deu em resultado ficar bastante magoado um indivíduo que, procurando desviar-se de um dos animais, foi apanhado pelo outro". Depressa acabaram as modernices.
De 1910 ficou notícia de uma tourada como paga de promessa pela cura de um pequeno ferido numa corrida da temporada anterior. E da maneira como esta tradição se impregnou nas gentes terceirenses é bom exemplo o acontecido em 1916, tempo de guerra: o general Augusto de Oliveira Guimarães, governador militar dos Açores, proibiu as corridas à corda; a sua autoridade é que não resistiu às pressões da população, e logo dois meses passados eram concedidas "algumas" licenças para desaugar o povo.
Em 1919 as touradas voltaram em força. Às vezes quatro no mesmo sítio, umas atrás das outras. O povo deslocava-se em multidões, em lanchas e barcos, carros e camionetas e, em 1922, uma dessas excursões serviu até para a viagem experimental do primeiro auto-omnibus das ilhas. O ritual do cortejo, desde o campo até ao terreiro, mantém-se ainda hoje, porém já com o folclore a desbotar-se-lhe.
As restrição nunca vingaram. Na Terceira era este, definitivamente, o divertimento do povo. Apesar de, por exemplo, o jornal A União prosseguir severa cruzada, afligindo-se então que as touradas à corda "são uma vergonha; o mesmo que impelir para o abismo uma população inteira".

P.S. - Este é o segundo capítulo de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Da vaca das cordas à farra do boi

Dos terceirenses costumam dizer os açorianos das outras ilhas, se calhar com uma pontinha de inveja, que são gente branda para o trabalho mas lesta para a folia. E tudo, afinal, só por causa das suas Sanjoaninas - consideradas "a mais pujante festa popular do arquipélago" e que, na última semana de Junho, constituem, a bem dizer, o modo de vida de toda a gente -, também derivado à sua maneira muito especial de festejar o Espírito Santo, que aqui rende duração extraordinária, desde o domingo de Pentecostes até ao fim do Verão, mas principalmente à conta das suas touradas à corda. "Soltem-lhes um toiro na rua - acirram os vizinhos do outro lado das ondas -, e o dia está-lhes ganho. O resto cá ficamos nós a trabalhar por eles". Um exagero...
A verdade, no entanto, é que não basta aos da Terceira a já de si singular extravagância regional das clássicas corridas de toiros à portuguesa, na Monumental de Angra do Heroísmo, durante a época estival. O temperamento festivo e extrovertido deste povo bom ganha identidade própria somente nesta manifestação bizarra e excitante que é a tourada à corda.
E não o fazem por pouco: de 1 de Maio a 15 de Outubro, cerca de 150 corridas ditas tradicionais, fora as avulsas, cobrem as freguesias dos concelhos de Angra do Heroísmo e Praia da Vitória, com surtidas, entusiasticamente acompanhadas, às Velas e à Calheta, na vizinha ilha de São Jorge.
A primeira referência a uma "tourada de corda" remonta a 1622, por ocasião dos festejos jubilosos da canonização de São Francisco Xavier e Santo Inácio de Loiola, oferecidos pela Câmara de Angra. No entanto, e curiosamente, já em 1588 D. Frei Jorge de Santiago, terceiro prelado diocesano, proibira as touradas nos adros das igrejas.
Os animais talvez tivessem vindo do Algarve, da zona de Sagres, donde partiram as primeiras naus, mas também terá chegado algum gado mirandês, o que nem dará para admirar, pois entre os primeiros colonos havia muita gente do Norte.
O gado bravo, esse, há quem admita ter sido expedido de Espanha, logo após o estabelecimento dos castelhanos, no tempo do domínio filipino, mas mais criterioso será afirmar que o primeiro toiro bravo de estirpe terá sido importado somente há pouco mais de 70 anos - ensinam-me os entendidos.
Não estão também esclarecidas as origens da tourada à corda. Apesar das suas parecenças com o gallumbo y el toro del aguardiente de Espanha, ela assentou arraiais na Terceira, pode presumir-se, antes da chegada dos castelhanos. E de uma forma, por assim dizer, espontânea, genuína. No "mato", que é como os locais chamam ao interior da ilha, haveria já quem, assim para matar o tempo, tentasse as suas habilidades com os toiros. Pois bem: foi só pegar nessas proezas ocultas e transportá-las para o espectáculo franco dos terreiros.
Ponte de Lima mantém uma evento congénere, com realização anual na quarta-feira anterior ao Corpo de Deus, isto é, amanhã: chama-se ali "vaca das cordas". E no Brasil sobrevive também anualmente uma aparentada "farra do boi", na ilha de Santa Catarina. Mas, a tão grande escala, os toiros à corda da Terceira são, sem dúvida, um acontecimento único. E de exportação, para onde quer que haja um terceirense.

P.S. - Esta é a abertura de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Situemo-nos, por isso, no tempo. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira era o "verdadeiro futebol" da ilha. E amanhã há mais.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Em nome do Espírito Santo 6

No sábado, o recato das oito da matina é hora da distribuição de esmolas, e na segunda-feira, derradeiro dia das festas, no fim da manhã serve-se o bodo de leite e ao princípio da tarde prossegue o leilão de alfenim ao domicílio começado na véspera. De casa em casa, com música e cantigas. Tudo faz receita.
Explique-se: o alfenim é um doce feito com açúcar, água e óleo de amêndoa que mãos hábeis de pasteleiras domésticas adaptaram às linhas de flores, peixes, pombas, galinhas, cisnes, veados, coelhos ou outras. Às vezes serve como ex-voto, para resgate de graça, e, sendo esse o caso, toma então a forma da parte do corpo milagrada.
Quanto ao bodo de leite, perdeu, se calhar, alguma da sua pureza original. De facto, ao leite e ao pão tradicionalmente postos à disposição de todo o povo no final de uma procissão sumária, acrescem agora - fruto do indulgente correr dos tempos - os mais que óbvios copinhos de vinho, enquanto a mesma charanga paisana que, grave e lenta, acompanhava o cortejo religioso de há bocado, cumpre agora, toda gaiteira, de grupo de baile, debitando de um fôlego o repertório completo das suas modinhas. Sob a bênção cúmplice do padroeiro, que, do alto do andor florido, ali mesmo a tudo preside (parece que com um sorriso maroto...), come-se-lhe, bebe-se-lhe e dança-se-lhe como manda a ventarola. Que Deus lhes perdoe, mas há qualquer coisa de báquico no ar.
O programa remata com chave de ouro: a incontornável tourada à corda. Era o que faltava! Falamos da Terceira e por lá os toiros, só por si, são a festa. Acontecimento incrível, verdadeira instituição, capaz de arrastar e arrebatar as mais entusiasmadas multidões, a corrida à corda é o ponto alto e o fecho. Ou talvez não.
Deste este mesmo domingo que está escolhida a nova Comissão, para o próximo ano. Afinal, tudo torna ao princípio: a festa, a bem dizer, não acabou, está por começar. Renova-se o ciclo de devoção e da folia, tudo em nome do Espírito Santo. Que governa, imperial, a alma "cândida e tenaz" do povo das Ilhas Azuis.

P.S. - Escrevi originalmente este texto talvez em 1992 ou 1993, para publicar não sei onde. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela por acaso e só me envergonhei um bocadinho. Termina hoje, assim. Amanhã voltarei aqui aos Açores, mas para as touradas à corda.

domingo, 4 de junho de 2023

Em nome do Espírito Santo 5

Está então aí a deliciosa maré para confeccionar as tradicionais sopas do Espírito Santo e a perfumada alcatra, que, à moda da Terceira, constitui uma das principais jóias da preciosa cozinha açoriana.
A quinta-feira é dia de Pezinho. Em nome da Comissão, um rancho de cantadores e tocadores de viola vai de porta em porta agradecendo e, em muitos casos, recolhendo ainda ofertas retardatárias para a festa grande. Na sexta-feira, pelo meio-dia, as portas da despensa do império abrem-se à distribuição do pão e da carne, repartida em doses ricas, para consumo de toda a freguesia mas cuidando particularmente para que não faltem aos mais pobres. Todos os lares estarão precatados para receberem fidalgamente familiares, parentes, compadres, vizinhos, amigos e penetras.
De súpeto espetam-se no fim os dias contados dos dois, três ou mais animais que a Irmandade, comprados ou por oferta prometida, há um ano cativara e cevara para o efeito. Fatal como o destino, não há milagre que lhes valha. São cozidas centenas de quilos de pão branco para a sopa e em massa sovada. Requisita-se o melhor vinho da ilha. Venham então essas sopas do Espírito Santo, que já se irrequieta o pessoal, com os pés metidos debaixo da mesa. Mestre Nemésio conta, de fazer água na boca, em "Mau Tempo no Canal":
O bezerro esquartejava-se para esmolas de pão e carne estendidas em bancas improvisadas na rua com tabuões e toalhas, e postas nos seus pratos de barro coroados de ramos de hortelã. O pobre que dá ao pobre cobre a sua alma e empresta a Deus. Fartura é naqueles dias! Cozido e alcatra a amigos e compadres, nas panelas de arroba mexidas pela "mestra da função"... as mesas postas, carniça, potes de rosas, e os copos mostrando à transparência de vinho os confeitos de funcho e açúcar jogados pela vereança aos peitos das raparigas. Vivo e coberto de fitas, tonto das boninas e da pólvora do foguetório, o bezerro, à frente do cornetim e da rabeca do Pezinho, cheirava a pêlo e a chícharo, à jarroca das grotas sem fundo, trazido do lado de lá do nevoeiro que engorda os pastos e vela a alma da ilha. Ainda quente do breu que lhe segura a rosa de papel entre os cornos, ajoelhavam o bicho à força à porta do "imperador", como se o Espírito Santo quisesse lembrar aos ilhéus que são do mesmo barro que a vaca bafejou no filho da Virgem pobrinha.
Tal qual.

P.S. - Escrevi originalmente este texto talvez em 1992 ou 1993, para publicar não sei onde. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela por acaso e só me envergonhei um bocadinho. Amanhã há mais.

sábado, 3 de junho de 2023

Em nome do Espírito Santo 4

Em Angra do Heroísmo, já pelo ano de 1492 se fazia um "esplêndido império", então chamado "dos nobres". Hoje, só nesta ilha são mais de cinquenta e, rivalidades à parte, um deles, o de São Carlos, nos arrabaldes da cidade, para si granjeou no antigamente a fama de ser "dos ricos". É claro, possui também o seu caso, muito falado.
Assunto sério, assombro de varar qualquer, acudimo-nos de atestado assim passado, a páginas tantas, por Alfredo da Silva Sampaio:

[...] por tradição se sabe que, pouco tempo depois de ter rebentado o fogo no local denominado Entre o Pico e a Serra, em 1761, desenvolveu-se um fumo denso que, descendo a cumeada da serra de Santa Bárbara, veio ter ao local onde hoje está o império. Assustados os Terceirenses com tal fenómeno, foi conduzido por alguns devotos para este último ponto um estrado de madeira onde colocaram uma coroa do Divino Espírito Santo, e em volta dela o povo implorou protecção. Durante semanas se conservou este fumo, sem passar aquém do estrado, até que, no domingo seguinte ao dia em que a Igreja venera o apóstolo São Mateus, desapareceu por completo este fenómeno sem deixar vestígios, e assim começou a ter lugar aquele festejo...

Pois neste império, exactamente plantado no sítio onde calhou o milagre da extraordinária barragem à ameaça vulcânica, a festa é da graúda. Apontada para a última semana de cada Agosto - do domingo até à outra segunda-feira -, com números organizados e variados, são, ainda assim, os espontâneos cantares e as músicas dos constantes foliões, os cantadores e contadores, a camaradagem imediata e genuína que verdadeiramente aquecem a alma a esta gente aberta e aconchegam o forasteiro.
Multiplicam-se os concertos e as tocatas por filarmónicas, os bailes de rua, os bazares, as ceias. Sucedem-se as noites: a noite da música popular, a da juventude, a do fado, a da morcela e por aí fora. Pretextos para descaminhos é o que são.
Apesar de tudo, as estrelas mais brilhantes que alumiam estes saraus são ainda os velhos cantadores de "Velhas" - a música mansa (triste?) das Ilhas, mais dita do que cantada, num marralhado ao jeito dos cantares ao desafio minhotos (e, no entanto, completamente diferente), afinado, afiado, irónico e crítico, colhendo assunto no quotidiano do ilhéu e misturando-o com os enredos e desenredos das telenovelas brasileiras dos pioneiros tempos.
Conversas de pé-de-orelha, versinhos assim que emparelham a alta do custo de vida com as agruras da Escrava Isaura, Sassá Mutema ou Dona Chepa; modinhas em que se casam os amores atribulados de Seu Nacib e Gabriela com manobras de cala-te boca nos bataclãs locais; rimas que acertam as desventuras de jagunços, caboclas e bóias-frias com as aventuras dos figurões da praça açoriana. Dos entretantos aos finalmentes.
Aqui atrasado, à boleia da festa, fizeram-lhes uma homenagem, aos mais famosos cantadores de "Velhas" vivos: ao António Plácido e a mestre João Ângelo, o maior. Humildemente ouvidos os elogios da praxe e depois de largar um "Boa noute, apreciadores" que embrulhou no mesmo abraço homenageadores, cantadores da nova vaga, que fizeram questão (estavam lá, entre outros, o Mota e o Eliseu), e, minhas senhoras e meus senhores, o público em geral, mestre João Ângelo, como um alho, mangando esgravatar o repente da inspiração, mete-se num entre parênteses mais que ensaiado, desamarra-se do cigarro e, aos primeiros acordes da viola da terra, logo atira:

Agradeço aos cantadores
E também aos autores
Que fizeram esta homenagem.

Até talvez esteja certo
Porque cada um deles está perto
Daquela última viagem.

Não sei se é tarde ou cedo,
Eu cá por mim tenho medo
Daquela última viagem.

À homenagem apressada
O nosso povo vigia:
Quando a esmola é avultada
Até o cego desconfia.

P.S. - Escrevi originalmente este texto talvez em 1992 ou 1993, para publicar não sei onde. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela por acaso e só me envergonhei um bocadinho. Amanhã há mais.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Em nome do Espírito Santo 3

Com mais ou menos respeito pelos cânones litúrgicos e rigor na tradição, todas as comunidades açorianas festejam o Espírito Santo como o seu mais importante acontecimento sócio-religioso. De Santa Maria ao Corvo, cada qual à sua moda, nos Estados Unidos da América, no Canadá, no Brasil e, desde há uns poucos anos, em Lisboa e no Porto. Ninguém passa sem o seu "império", mais ou menos rico, com mais ou menos dias de programa. Consoante as posses.
Será decerto na Terceira, porém, que as festas alcançam a sua expressão mais vibrante. Ricas em especificidade, têm aqui uma maior duração, prolongando-se, em votos e promessas ao Divino, desde o Domingo de Pentecostes até aos finais do Verão. São os meses da "primavera das Ilhas". Este afã de folia bem o entendeu Vitorino Nemésio, ilhéu e terceirense:

Esta nossa ilha Terceira
Sempre foi alto lugar:
Em amores, bodos e toiros
Fica sempre a desbancar.


Ou:

Alcatra, confeitos, vinho,
Enchei o meu coração.
Que faz mais barulho ardendo
Que um tambor de folião.


Tudo começa pelo Domingo da Trindade, com o sorteio daqueles que serão os mordomos na função do ano seguinte. Aqui que ninguém nos ouve, sempre será de confidenciar que o dito sorteio está, na verdade, condicionado à partida pelos interesses de ilustres pagadores de promessas ou de notáveis da paróquia. Isto é, antes do sorteio já se sabe quem é que vai ganhar. Seja como for: o primeiro, consintamos, bafejado pelos desígnios da "sorte" recolhe na sua casa as insígnias dos Espírito Santo - a coroa e o ceptro - até à Pascoela, ponto do início dos festejos.
Na igreja da freguesia realiza-se então a coroação, cerimónia na qual a coroa é colocada na cabeça de uma criança ou adulto - o imperador -, que depois a leva em procissão a casa de um outro mordomo, que a guarda por uma semana. Mordomos, coroas, alvas rainhas em mantos magníficos, foliões, tambores, pandeiros, ferrinhos, bandeiras vermelhas, estandartes, quadros, varas, bandas de música compõem um cortejo garrido, sonoro, alegre.
Domingo após domingo renova-se a cerimónia, passando a coroa e o ceptro pelas casas dos vários mordomos aprazados, até ao dia grande da festa, em que são expostos no império. O império é uma pequena construção acapelada, ingénua, típica da arquitectura popular açoriana, e também chamada de teatro do Espírito Santo. Distingue-se pelo frontão trabalhado e colorido, em geral rematado por uma coroa e pomba simbólica. Aqui são saldadas as promessas, depositadas as esmolas, adquiridas as relíquias e entregues as oblatas que a seu tempo irão servir aos mais necessitados.
Enquanto no lar de cada qual, coroa e ceptro merecem as maiores reverências. Da família, têm garantida a melhor divisão da casa, um trono, a reza diária do terço ao Senhor Espírito Santo, é preciso que se note. E das visitas, todas, crentes ou agnósticas, o respeito e a deposição de uma esmola e de um ósculo no Divino, "aberto numa pomba de prata ao topo de uma coroa real".

P.S. - Escrevi originalmente este texto talvez em 1992 ou 1993, para publicar não sei onde. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela por acaso e só me envergonhei um bocadinho. Amanhã há mais.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Em nome do Espírito Santo 2

As irmandades promovem a celebração das festas, ano após ano, sempre como manda o figurino: empresa a merecer desde logo, para afinação de prolegómenos, convocatória em jornal, assembleia geral e tudo. O espírito que lhes preside é ainda o da caridade cristã, em escrupulosa obediência às suas origens. Na verdade, chamando ao caso a Rainha Santa, reza a velhinha Revista dos Açores que, condoída com "a parte desgraçada dos seus súbditos que, cobertos dos humildes andrajos e com a escudela, aguardavam o pão da caridade às portarias dos conventos e mosteiros [...], a piedosa Soberana, amante do seu povo, quis que os pobres também um dia se banqueteássem, quis que tivessem um dia jubiloso, um dia verdadeiramente popular". Ora aqui está: por invocação e louvor do Paráclito, assim nascia o bodo aos pobres.
Ao par, desenvolvem-se rituais gentios, manifestações exteriores de grande colorido e riqueza etnográfica cujo cunho ousadamente profano bastas vezes serviu de justificação à intromissão disciplinadora da autoridade eclesiástica (que proibiu nos templos a presença das folias, mais os seus cantares e danças) ou a outros insucessos tutelares votados a "desterrar da região insulana aquelas estranhas práticas". Jamais, no entanto, apareceu quem ousasse interferir na realização das coroações, dos impérios ou dos arraiais do Espírito Santo. Ademais, hoje em dia, do melhorzinho que os festejos têm para oferecer é exactamente essa estimulante dualidade preservada de rituais, sacros, pagãos, que convivem e se completam.
Da festança, além dos cerimoniais santos e dos divertimentos populares, faz parte, em lugar cimeiro, uma farte e colectiva refeição comida à base do pão e da carne, também partilhados em esmola pelos mais precisados. São as tão apreciadas sopas, assim chamadas, embora do cardápio conste a carne cozida, que se ajunta à sopa propriamente dita, seguindo-se a carne assada à maneira e a alcatra, que nalguma ilhas se acompanha com a típica massa sovada, esse pão tão especial. Mandando o serviço, assistindo de mesa em mesa, cuidando para que nada falhe: a figura omnipresente e eficaz do "marchante".

P.S. - Escrevi originalmente este texto talvez em 1992 ou 1993, não sei para quem. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela e só me envergonhei um bocadinho. Amanhã há mais.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Em nome do Espírito Santo

Envolta na bruma das lendas, adornada pela magia das superstições e abonada por insondáveis espantos, impera há séculos no coração do povo das Ilhas a devoção ao Senhor Espírito Santo. Uma contínua, sempre renovada e abrangente procissão de beatos, fiéis, crentes, simpatizantes e até incréus vela por que não se extingam os sinais singulares desta tradição santa-profana que individualiza os Açorianos, na sua terra ou pelas lonjuras da diáspora.

Esta é uma crença muito antiga. As folias ao Espírito Santo, ainda que aparentem uma origem pagã no druidismo, ou na superstição grega, chegam a Portugal pelas mãos da Rainha Santa Isabel e são levadas para os Açores logo pelos primeiros povoadores. Convertidas na maior devoção e piedade, conservam-se até aos nossos dias: chamam-se, ali e agora, os impérios do Espírito Santo.
Os Açorianos são uma gente católica, extremamente crente e devota, e mesmo os mais fundamentalistas em matéria religiosa ou os ateus desobrigados fazem fé nos casos relacionados com o Divino Espírito Santo e temem as Suas "vinganças". É, como quem diz, uma questão de respeito.
Infinito é o rosário das salvações, grandes assombros ou modestos arranjos que o povo atribui à intervenção providencial do Divino - como gosta de chamar-Lhe, carinhoso, numa antiga e meiga confiança de nome próprio. Crises sísmicas e vulcões, pestes, o ror de maleitas e apertos do dia-a-dia, a vida difícil e o isolamento congregaram os ilhéus numa devoção que depressa se espalhou por todas as cidades, vilas e aldeias. E recorre-se-Lhe por tudo, coisa assim pataqueira ou missão a meio do impossível: simplesmente implorando melhoras em pró-forma de clínica geral ou prescrevendo cirúrgico tratamento de especialista; requerendo que o filho atine com os livros ou suspirando que calhe indulgência aos professores; convocando bênção para casamento novo ou clamando por intervenção de emergência em avaria conjugal; pedindo feliz termo para a viagem, que culturas e gado medrem, que as vinhas farturem, que o negócio corra, que o dinheiro não falte. Tudo, edecétrea atrás de edecétera, até aos limites de encomendas de alto lá com elas. O Divino por tudo olha, tudo remedeia - que não é Pessoa de desmanchar contratos, e isto é o povo a fazer constar.

Estamos em tempo de Espírito Santo e de Açores. Os parágrafos acima são o primeiro "fascículo" de um trabalho jornalístico que terei escrito talvez em 1992 ou 1993, não sei para quem. É prosa claramente datada, em todos os sentidos, mas outro dia reencontrei-me com ela e só me envergonhei um bocadinho. Sou apaixonado pelos Açores e mantenho uma relação muito especial e próxima com a ilha Terceira. Por isso voltarei ao assunto. Hoje é Dia do Espírito Santo ou Dia do Divino Espírito Santo, sobretudo no Brasil, para onde os portugueses levaram esta peculiar devoção lá pelos inícios dos século XVI.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Tempo e resultado

Na sacramental ronda pelos vários campos, o pivô da emissão radiofónica pergunta ao repórter de serviço: - Tempo e resultado?
O repórter de serviço informa, conciso e preciso: - O tempo está bom e o resultado mantém-se.
Conta-se que foi nos Açores, ilha Terceira. Em Fafe não se diria melhor...

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...