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terça-feira, 29 de julho de 2025

Moelas de coelho só no Peixoto!

O requinte e o requente
A diferença entre requintado e requentado passa quase despercebida. No arroz de marisco é que se nota mais. E na sanita, consequentemente.

Embora notoriamente os coelhos não tenham moelas, devo informar que ninguém as cozinhava tão bem como o meu amigo Peixoto, em Fafe. Uma verdadeira especialidade! O Peixoto tinha mãozinha amestrada para a plancha e para a cozinha em geral. Eram famosos os seus pregos, em pão ou aos trambolhões, as suas francesinhas chamavam pessoas de fora, o seu marisco, ou "meterial", estava sempre muito bem trabalhado, uma categoria, mas as moelas de coelho suplantavam tudo o que é possível imaginar. Eram incomparáveis, exclusivas, únicas, um pitéu digno de deuses, indesmentível ambrosia do ramo dos salgados e afins. As moelas de coelho e os ovos cozidos, ovos de galo, às vezes, mas que na semana da Páscoa eram evidentemente ovos de coelha, e lá estavam expostos em cima do balcão, com o cu enfiado em sal grosso como manda a tradição, ao lado da terrina das moelas prontas a aquecer.
Eu ia a Fafe e ia ao Peixoto, como se fosse uma religião. A minha mulher também ia e era muito bem tratada. E o meu filho foi ensinado a ir ao Peixoto desde pequenino. Quando eu ia lá com amigos, tantas e tantas vezes, geralmente a horas escusadas, o Peixoto perguntava-me sempre pela família e mandava-me trazer "cumprimentos para a esposa e para o menino". E eu trazia.
(E é curioso. Porque, pensando bem, o Sr. Peixoto dispensava-nos, a mim e à minha família, um certo tratamento de excepção, uma gentileza indubitavelmente sincera mas que, na verdade, não era lá muito do seu feitio...)
Pois aqui há coisa de três ou quatro anos, talvez mais ou talvez menos, eu e o tempo agora não andamos certos, fui a Fafe e fui ao Peixoto, de fugida, para lhe dar um abraço e duas de letra, mas Peixoto de grilo. Foi um choque muito grande, uma tristeza que ainda me dói. Porque o Peixoto faz-me falta. O malandro passou o negócio, e decerto encheu-se de massa, mas não me avisou. Na verdade, ninguém me avisou. E devia ter saído em edital camarário, com voto de louvor e medalha: afinal, o Peixoto era uma instituição, dizia eu.
Mas lá está, o que eu digo não se escreve, e muito menos em Fafe, a não ser que seja eu próprio a fazê-lo. E portanto cá está.

Por outro lado. A ciência ainda não encontrou uma resposta plausível e, pelo menos, isenta de misoginia acerca de porque é que os ovos de galo são maiores do que os ovos de galinha, mas não é isso que interessa aqui agora. Lembrei-me foi do seguinte: se existe o Dia Internacional do Coelho, que se assinala anualmente no último sábado de Setembro, eu acho que Fafe, pelo menos Fafe, devia festejar o Dia Mundial das Moelas de Coelho, já que as inventámos. E a criação de uma, digamos assim, Confraria Gastronómica das Moelas de Coelho à Moda de Fafe, o seu a seu dono, também não estaria mal vista. A minha terra, diga-se em abono da verdade, é muito dada a isto das confrarias e dos dias internacionais ou mundiais. Lembro-me, por exemplo, que o Dia Internacional do Tigre, que não sei se já tinha sido descoberto para o dia 29 de Julho, era celebrado quando calhava, exactamente no Peixoto, pela madrugada dentro e já com as portas encerradas e vidros tapados. Íamos do Porto, de propósito, eu e a minha equipa, depois do fecho do jornal, e não podia ser de outra forma. O "meterial" era um bom "meterial", mas o molho secreto do Peixoto fazia-o ainda melhor. É claro que estou a falar de camarões, dos enormes, tigres, abertos em dois, grelhados na chapa, e o Peixoto, que me avisava quando os recebia, era realmente um desembaraçado domador. Na hora de pagar, por minha conta e com todo o gosto, lá se ia praticamente a entrada para a compra de uma casa, mas éramos novos e tolos, e o que é que se havia de fazer?...

P.S. - Versão revista e (bastante) aumentada, publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional do Tigre.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Natureza de conserva

Ele era um acérrimo defensor da conservação da natureza. Em lata, mas sobretudo em frasco e em plástico.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Conservação da Natureza.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Sushi à moda de Fafe

Fazei o obséquio de tomar nota! Sob o generoso fio corrente de água fria da torneira, desfiar meticulosamente uma boa posta de bacalhau da peça, sem pele e sem espinhas. Passar os fiapos do bacalhau por mais uma, duas ou três águas, sempre frias, agitando-o, ao bacalhau, e espremendo-o, até que fique no ponto de sal. Regar com azeite do melhor e três ou quatro pingas de vinagre, cobrir e misturar com cebola cortada às rodelas bem fininhas, picar um quase nada de alho, salpicar ao de leve com pimenta branca e enfeitar com azeitonas pretas. Está pronto! Sushi de bacalhau à moda de Fafe - inesperado, inovador e chique. Os antigos chamam-lhe punheta.

P.S. - Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional Sem Dieta.

terça-feira, 22 de abril de 2025

António Rebordão quê?...


Uma vez, há catorze ou quinze anos, eu tive a sorte de almoçar com o escritor António Rebordão Navarro. Eu e mais três amigos e velhos camaradas de ofício, dos jornais, num acidental e feliz reencontro à beira-Douro, lá na Ribeira de Gaia. Falámos sobretudo de banalidades risíveis, como convém à mesa, mas era fatal chegarmos aos livros. Meti conversa, como quem não quer a coisa:
- Sabe que fomos praticamente vizinhos durante alguns anos? O senhor doutor ainda mora lá para a nossa Foz?...
O senhor doutor era para mim senhor doutor porque Rebordão Navarro era formado em Direito e chegou a exercer de advogado e de delegado do Ministério Público, antes de se entregar de corpo e alma à escrita, como ficcionista, poeta e editor. Já quanto à resposta, às respostas que eu, molageiro, lhe pedia, disse-me que não e que sim. Que não sabia que fôramos vizinhos, que aliás não me conhecia de lado nenhum nem isso lhe fazia falta, mas que realmente continuava pela Foz, embora já não na Praça de Liège.
Porém era ali que eu queria chegar. Com esta minha notável capacidade para fazer figuras tristes, que já então se manifestava exuberantemente, eu estava mortinho por demonstrar mais uma vez quão sólido é o cuspo com que argamasso os meus pindéricos alicerces culturais. E acrescentei, todo vaidoso:
- Sabe, eu tenho o livro, tenho "A Praça de Liège". Se soubesse que me ia encontrar com o senhor doutor, até o tinha trazido para que me fizesse o favor de uns sarrabiscos, de um autógrafo. Tenho o livro, está lá em casa...
- Ai tem o livro? Mas eu escrevi mais livros, escrevi para aí uns catorze... - cortou Rebordão Navarro, sem disfarçar o sorriso malandro como o arrozinho de feijão e legumes que lhe acompanhava os bolinhos de bacalhau com que se deliciava.
A minha primeira reacção foi largar o meu habitual "Eu sei!" com que tento sair das enrascadas em que por mania me meto, e recitar ali mesmo, de cor e salteado, da trás para a frente e da frente para trás, por ordem alfabética e depois por ordem cronológica, os outros treze títulos do reputado autor que tinha à minha frente de faca em punho, mas a verdade é esta: eu só conhecia "A Praça de Liège". Optei, portanto, por tornar pública a minha segunda reacção, que também me saiu uma boa merda e que foi "Pois faço ideia, mas lamentavelmente não tenho acompanhado a carreira do senhor doutor"...

"A Praça de Liège" foi um sucesso tremendo aquando da sua publicação, em 1988. Era o livro da moda (pois se até eu o comprei!) e ganhou o Prémio Literário Círculo de Leitores. Na altura em que me encontrei com o autor, contou-me o próprio, no Círculo de Leitores já não sabiam quem ele era, quem era o escritor António Rebordão Navarro. Alguém do Círculo contactou a irmã do escritor por uma razão qualquer, a senhora falou do irmão e do famigerado prémio e obteve como resposta um lamentável
- Quem? Rebordão quê? Não conheço...
Pois é: a memória! As empresas enxotam quem sabe da poda, despedem os funcionários pelas mãos dos quais passaram os factos e as pessoas, preferem juniores renováveis e analfabetos, verdes como os recibos, fiam-se no Google e na inteligência artificial mas não vão lá. E depois ninguém sabe nada de nada, por manifesta estupidez natural.
Há anos que está a acontecer o mesmo nas redacções dos jornais portugueses e até se contam algumas saborosas anedotas a esse respeito. São de rir tanto, as anedotas, que às tantas até são verdade.

No que me diz respeito, e como penitência pela minha ignorância àquela data quanto à dimensão da obra literária de António Rebordão Navarro, que afinal era qualquer coisinha mais do que catorze títulos, aqui deixo o registo essencial, com sinceros votos de que faça também bom proveito à rapaziada do Círculo de Leitores: poesia - "Longínquas Romãs e Alguns Animais Humildes", 2005; "A Condição Reflexa", 1989; "27 Poemas", 1988; "Aqui e Agora", 1961; teatro - "Sonho, Paixão, Mistério do Infante D. Henrique", 1995; "O Ser Sepulto", 1972; crónica - "Estados Gerais", 1991; ensaio - "Juro Que Sou Suspeito", 2007; conto "Dante Exilado em Ravena", 1989; romance - "As Ruas Presas às Rodas", 2011; "A Cama do Gato", 2010; "Romance com o Teu Nome", 2004; "Todos os Tons da Penumbra", 2000; "Amêndoas, Doces, Venenos", 1998; "A Parábola do Passeio Alegre", 1995; "As Portas do Cerco", 1992; "Mesopotâmia", 1984; "A Praça de Liège", 1988; "O Parque dos Lagartos", 1981; "O Discurso da Desordem", 1972; "Um Infinito Silêncio", 1970; "Romagem a Creta", 1964.

P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego! O escritor e editor António Rebordão Navarro morreu no dia 22 de Abril de 2015, aos 82 anos. E Portugal adormecido parece que já não sabe quem é que ele foi, quem é que ele é, o que significa. Actualmente, acho isso mal. Para ignorante, bastava eu.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Sei de sítios

Sou devoto dos prazeres da mesa. Gosto da liturgia de uma boa refeição, em família ou com amigos, gosto de comer, gosto do que é bom, e sei o que é bom. Também sei fazer. Sou um apaixonado pela boa e honesta cozinha portuguesa. Gosto da cozinha portuguesa tal qual ela é, na sua pureza original: tradicional, apurada, robusta, variada, generosa. Um bom prato, uma especialidade daquelas de trás da orelha, é capaz de me fazer andar duzentos ou trezentos quilómetros pelo prazer de o degustar. Sei de sítios como quem sabe de ninhos. Sei de sítios que não conto a ninguém, nem sob tortura, e desde que a tortura não seja a da fome.
Gostamos de dar as nossas voltas. Enquanto posso (e posso cada vez menos, como a maioria dos portugueses), vamos a esses sítios a que nos afeiçoámos e onde já há muito eu e a minha mulher somos tratados como amigos ou família, e com mimos especiais, sítios onde a nossa falta é sentida, porém tenho de admitir que é sobretudo a comida que lá me leva. Vou pelo gosto, é este o meu parâmetro de aferição e escolha fundamental.
Mas respeito quem se deixa seduzir por outras variáveis gastronómicas ou paragastronómicas, como, por exemplo, essa coisa tão vaga ou talvez não como é "o serviço" ou "o atendimento".
Um velho compincha doutras vidas mas também da santa trincadeira - nas imortais palavras de mestre Aquilino Ribeiro, colocadas na boca de um abade, evidentemente - contou-me que estava um destes dias numa bela jantarada, num grupo de gente boa e interessante, quando um dos convivas alvitrou um próximo repasto a realizar em determinado restaurante, que "tem um excelente serviço"...
O meu amigo, que é um brincalhão mas o outro não sabia, perguntou, com matreirice:
- Excelente serviço, pois... Mas o que é que se come? O que é que é lá muito bom? Uns bolinhos de bacalhau..., uns ossinhos da suã?...
- Quer-se dizer, não sei, tem muita coisa, nada assim de especial, mas o atendimento é óptimo... - colocou-se à defesa o homem da ideia.
- Está bem, mas eu não como serviço, o atendimento não me enche a barriga - insistiu o meu amigo e voltou a insistir, perante o cada vez maior embaraço de quem já se tinha arrependido de ter dado apenas uma sugestão e do resto do pessoal à volta da mesa.
Tudo acabou depois na risota, quando todos perceberam que o meu amigo afinal estava na tanga, e até tiveram sorte porque desta vez, tenho a certeza, ele não arrumou a questão com uma expressão que lhe é muito cara e que, neste contexto, seria algo do género:
- O serviço? Dá-me com o serviço nos

tomates aux gésiers de lapin. Eis a minha receita. Livre de gorduras e lave em duas águas as moelas de coelho. Uma da águas pode ser das Pedras. Meta as moelas de coelho numa marinada feita com sumo de pepino nacional, vinagre balsâmico, azeite de trufa, mel de rosmaninho, gengibre, flor de anis, flor de sal, flor-de-lis, flor-de-lótus e flor-de-ferrari. Deixe a repousar esta marinada dentro de uma embalagem para ovos de codorniz enquanto conta de zero a 120 e depois de 120 a zero sempre ao pé-coxinho. Os ovos de codorniz deviam ter sido previamente tirados da embalagem, agora desfaça-se ao menos das cascas. Lave muito bem os tomates, corte um chapeuzinho numa das extremidades e limpe-os de todas as sementes e nervuras internas. Introduza as moelas de coelho nos tomates, misturando-as com uns pozinhos de queijo com o nome mais arrevesado que encontrar no supermercado. Pegue nos tomates e coloque o chapeuzinho, que vai adornar, de lado, com um pequeno cartão a dizer PRESS. Leve os tomates ao forno durante 180 minutos a 15 graus. Excelente. Está pronto. Retire do forno e deite ao lixo. Descongele e aqueça bem a feijoada que sobrou do almoço de domingo, regale-se e seja feliz.

P.S. - Hoje é Dia Internacional dos Monumentos e Sítios. E a verdade é só uma: eu sei de sítios que são verdadeiros monumentos.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

A Esquiça com direito a efeméride

Efeméride. Quer dizer: acontecimento ou facto importante que ocorreu em determinada data. Ou por outra: celebração de um acontecimento ou de uma data importante. A agência de notícias Lusa, a maior em língua portuguesa, disponibiliza diariamente no seu serviço uma lista dos "principais acontecimentos registados", desde sempre, no dia em questão, em Portugal e no mundo inteiro. Acontecimentos tipo a descoberta da pólvora, a invenção da roda, o início da I Guerra Mundial, a chegada do homem à Lua, o 25 de Abril ou a queda do Muro de Berlim. Os jornais replicam mais ou menos esta lista, consoante o espaço disponível e a respectiva "orientação editorial", há quem lhe chama assim. 
Ora bem. Andava eu, ontem, à procura das "Efemérides Lusa" para hoje, 2 de Abril, quando, por engano na busca, coisas da idade, dou de caras, no jornal Sol, com as "Efemérides de 2 de Março" de 2021. E para esse dia, no ano de 2017, o Sol aponta, resplandecente: "A taberna do pai de Jorge Ferreira, árbitro que tinha apitado o Estoril-Benfica, foi vandalizada há 4 anos, durante a noite."
Caramba! Fafe nas "Efemérides"! Eu não fazia ideia da importância para a Humanidade da ocorrência em questão, mas talvez mereça. Merece certamente. Não, de caras, no que diz respeito à façanha pífia da claque antiportista Super Dragões, mas, por outro lado, quanto à Esquiça instituição, a taberna do pai do filho, ela, sim, um acontecimento digno de registo, sobretudo derivado às tripinhas e à vitela, que já lá não vou há que tempos, caseiras, honestas e acessíveis, merecedoras realmente de figurarem nos anais da História. E, até à próxima, daqui vai um abraço para o Armindo!

quinta-feira, 6 de março de 2025

Só à bolachada

A bolacha maria, torrada ou não, apareceu tarde na minha vida. Bolacha era luxo que não entrava lá em casa, e o mais parecido que a nossa mãe nos dava em pequenos era broa ou biju, e o biju já era um mimo. O caso só mudou de figura quando nasceu o nosso Lando. O Lando é o mais novo de quatro irmãos, decerto por isso teve direito a mordomias que os três anteriores nem sequer suspeitávamos, e as bolachas vieram com ele.
Entre outras alcavalas, o Landinho até fazia anos, coisa extraordinária, enquanto a nós só nos era permitido ficarmos mais velhos, somarmos dias, que remédio e a seco. Ao menino, a nossa mãe organizava-lhe uma festinha de aniversário, havia convidadozinhos, e do pequeno lanche constavam, só me lembro disso, umas curiosas sandes de bolacha maria com marmelada dentro, tipo oreos mas melhores e de fabrico caseiro. Eu, já espigadote, metia a mão sorrateira e rápida à passagem pela mesa, e foi assim que ficámos a conhecer-nos pessoalmente, eu e elas. As bolachas. Que estavam contadas, para mal dos meus pecados...
Mas não era de bolachas que eu queria aqui falar. É de bolachos. E o bolacho, faço deste já notar, é pitéu absolutamente indispensável, muito mais do que mero ornamento, nuns rojões à moda do Minho que se pretendam com todos os matadores. O bolacho é, versão curta e grossa, uma espécie de pão cilíndrico feito com farinhas de trigo, milho e centeio, a que se junta sangue de porco, fermento, caldo de carne, pimenta e cominhos. Depois de levedada, a massa é cozida em água temperada com sal, salsa, folha de laranjeira e louro. Cumprida a cozedura, o bolacho é cortado em rodelas e frito em pingue. O bolacho pode também chamar-se farinhato, pilouco, bica e, principalmente, beloura.
Mas também não era deste bolacho que eu queria aqui falar. É do bolacho de trigo. Do pão de cantos. Do pão de quatro cantos. Do trigo de ovelhinha. Do pão de padronelo. Desse. Esse fantástico pão, duro como cornos, que era vendido porta a porta em Fafe por umas senhoras que, dizia-se, vinham de Amarante. As abençoadas senhoras traziam enormes cestas à cabeça e dentro das cestas, carinhosamente envolto em toalhas de linho, o precioso pão. No dia da feira, às quartas, por Cima da Arcada, diversos tipos de pão regional, incluindo o infalível bolacho, eram vendidos também por um senhor que vestia um avental de peito, comprido até aos pés, impecável de branco e de limpeza. O bolacho, um pão de longa duração que a minha querida avó de Basto guardava com todos os cuidados e também toalhas de linho na caixa de madeira que era o cofre e o frigorífico das coisas valiosas e boas numa terra por onde Jesus Cristo ainda não tinha passado e portanto não havia electricidade. Assim acondicionado, o pão aguentava-se bem uma semana ou mais e só era comido com o matinal café, que era cevada, aos domingos, feriados e dias santos. De resto, broa, que era o pãozinho do Senhor.
Leio agora que o bolacho é de ovelhinha porque teve a sua origem no lugar com aquele nome, Ovelhinha, na freguesia de Gondar, Amarante. E de padronelo porque decerto será sobretudo nesta outra freguesia amarantina, Padronelo, que hoje em dia ele é produzido e comercializado. Quanto a bolacho, é-o não sei porquê.

P.S. - O biscoito Oreo foi criado no dia 6 de Março de 1912, em Nova Iorque, pela Nabisco, que é uma divisão do grupo empresarial americano Kraft Foods. Continuando a citar as Efemérides Lusa para este dia, o biscoito consiste em duas bolachas redondas de chocolate e um recheio doce com sabor de baunilha.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Comida, carros, gajas e... motorizadas

Nós, os do Norte, somos regularmente criticados por estarmos sempre a falar de comida. O que não é exacto nem justo! Na verdade, nós, os do Norte, somos tão capazes de manter conversas interessantes e profundas sobre gajas e carros como o resto da população portuguesa, seja de que região for. Para além disso, se formos de Fafe, ninguém nos bate numa boa discussão sobre motorizadas...

P.S. - No dia 29 de Janeiro de 1886, o engenheiro alemão Karl Benz pôs em funcionamento o primeiro motor automóvel a gasolina.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Deus nos livre dos afrontamentos

Um dominguinho como de costume e Deus manda. Missinha das onze, homiliazinha com palavrinhas a abater e um que outro puxãozinho de orelhas para temperar, uns acenozinhos ao rebanho, umas lambidelas recebidas na mão santa, a do cachucho, e depois... o almocinho. O almocinho de dominguinho: três pratos, tal qual a Santíssima Trindade e o outro assunto que não vem ao caso. Duas horas à mesa e sempre a dar-lhe, como se fosse castigo, penitência. "Ui! Comi que nem um abade" - desabafou, num arroto final. "Nada de modéstias, Vossa Excelência Reverendíssima Senhor Dom, afinal de contas sois Bispo, sois Bispo" - acudiu o solícito secretário, jovem presbítero, com as maiúsculas bajuladoras numa mão e o bicarbonato de sódio na outra.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Comida Picante.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Boas entradas!

Cem gramas de camarão da costa, duas ou três pataniscas ainda quentes, uma posta de bacalhau frito da parte da asa, fria, uma cebola da monda avinhada em verde tinto e sal grosso, duas navalheiras, quatro mexilhões em vinagreta bem puxada, meia dúzia de azeitonas pequenas, pretas, assassinas, moelas se possível de coelho, polvo em molho verde, navalhas na plancha, iscas de fígado de cebolada, petinga de escabeche, uma mancheia de percebes ainda prenhes de mar, cracas, lapas, um bom verde branco do Minho mais alto e não demasiado fresco, isto sim são boas entradas, o resto é treta. E era a continha, se faz favor.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Os tascos e as tascas, questão de género

Aqui o género interessa. Embora ninguém me leve a sério (ou à séria, se por acaso lido em Lisboa), tenho passado a vida a pregar a respeito da irreconciliável diferença entre tasco e tasca (ou tasquinha). Prego aos peixes e prego a fundo. Mas é como já disse: tasco é tasco, sítio do povo com povo dentro, e tasca ou tasquinha é... outra coisa, coisa fina, sítio de moda. O tasco é jurássico, a tasca é cosmopolita. O tasco é rasca, a tasca é chique. A tasca é in, o tasco é out. Sei do que falo. Sou de um tempo e sou de Fafe, terra de tascos e com muito gosto. Sou dos tascos. Só para dar mais um exemplo, hoje não vou mais longe: no tasco bebe-se verde tinto e come-se bolo com sardinhas ou bacalhau frito; na tasca, bebe-se ginjinha e come-se caril de lavagante, como vi outro dia no Expresso. Percebem o que eu quero dizer?

E sim, é provável que já quase não haja tascos, que os tascos puros e duros estejam em vias de extinção, mas isso, de momento, não é para aqui chamado.

P.S. - Ainda e outra vez a propósito dos nossos tascos, os irredutíveis.

E não há nada que se beba?

Isto passou-se na Brecha, palavra de honra, em dia de bolo com sardinhas, portanto num sábado, se não me engano. E as sardinhas eram evidentemente fritas, como manda a tradição. Fafe tinha conversas assim, elevadas, necessárias, instrutivas, e era uma terra geralmente muito bem frequentada. E daquela vez em especial. Como se fosse uma anedota, juntaram-se um alemão multinacional, um americano, um inglês, um francês, um italiano, um espanhol e um português, todos gente de rebimba o malho. E diz o Albert Einstein: "A imaginação é mais importante do que o conhecimento". E diz o Mark Twain: "O homem que não lê bons livros não tem nenhuma vantagem sobre o homem que não sabe ler". E diz o Charles Dickens: "Nunca nos devemos envergonhar das nossas próprias lágrimas". E diz o Antoine Lavoisier: "Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". E diz o Leonardo da Vinci: "Do mesmo modo que o metal enferruja com a ociosidade e a água parada perde a sua pureza, assim a inércia esgota a energia da mente". E diz o Miguel de Unamuno: "Viaja-se não para encontrar o destino, mas para fugir de onde se parte". E diz o nosso Anacleto Silveira: - Não há nada que se beba?...

P.S. - Esta ode aos nossos velhos e irreplicáveis tascos, ainda recentemente republicada, foi o terceiro texto mais visto neste blogue durante o ano de 2024.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Esta maneira fafense de sermos

Vou a Oliveira de Azeméis, por exemplo, e levo uma data de "Ó jovem!", geralmente debitada por pessoas de bandeja na mão e com idade para serem, vá lá, meus netos. Afino! Ai, se soubessem como eu afino! Vou ao Porto ou a Lisboa, por exemplo, e atiram-me "Ó chefe!" acima e "Ó chefe!" abaixo, pessoas que não me conhecem de lado nenhum e com idade, vá lá, para terem juízo. Fico fodido! Ai, se soubessem como eu fico fodido! Por outro lado: vou a Fafe, por exemplo, e as pessoas, algumas com idade para serem, vá lá, meus filhos, chamam-me "Meu rico menino!", e eu aprecio, gosto. Fico feliz da vida! O carinho interessa-me, faz-me jeito. Quer-se dizer: todas as terras são por exemplo, mas algumas são mais por exemplo do que outras. E neste particular, deixem-me que vos diga, Fafe é, modéstia à parte, uma terra por exemplíssimo.

É. E já repararam no modo carinhoso como tratamos a comida, isto é, a comidinha. Esta maneira tão fafense e antiga, de indesmentíveis raízes galegas, que nos põe a falar mansamente da vitelinha, do pãozinho, das tripinhas, do cozidinho, do arrozinho, da massinha, do bacalhauzinho, das batatinhas, do azeitinho, da saladinha, do cabritinho. E como nós gostamos de falar de comida! E falamos de comida enquanto comemos. E no entanto, nós, os fafenses, pelos menos os já usados, somos tão capazes de manter conversas interessantes e profundas sobre gajas e carros como o resto dos portugueses. Creio até que ainda hoje ninguém nos bateria num debate sobre motorizadas, desmontando peça a peça e sem sobras o eterno dilema mural Zundapp vs. Sachs.
É. A felicidade é coisa pouca e tudo. Digo melhor: a felicidade é questão de um gajo se habituar. E para os fafenses, nisto da felicidade e de bons hábitos, a mesa é sagrada. É o altar da família, da amizade, do carinho partilhado. Dos carinhos. Dos miminhos. Da liturgia de todos os inhos. Também do bifinho para o menino, que anda com fastio e faz 32 aninhos, coitadinho. Sim, bifinho, um bifinho em prato-travessa, porque se coubesse num prato normal seria apenas bife, mas isso toda a gente sabe. E vinhinho? Está bem, uma pinguinha...

P.S. - Este foi o segundo texto mais lido neste blogue durante o ano de 2024. Também está bem. E já agora: de que é que falámos à mesa da consoada, em família, nós os daqui, os que somos desta maneira? Sobretudo de comida, faço uma aposta...

sábado, 21 de dezembro de 2024

Bacalhau com natas (à moda de Fafe)

Gosto muito. Bacalhau com natas. Bacalhau recheado, da parte da asa, feito por quem sabe, isto é, por mim, conversado a par e passo com um verde branco honesto e fresco. E depois, antes do café por recomendação médica, uma natinha do Lidl, a 39 cêntimos cada, para escorropichar a garrafa. Foi o que eu disse. Bacalhau com natas.

Ou por outra. Um bom minhoto, um fafense como deve ser, sabe muito bem que bacalhau recheado não é bacalhau recheado. Ou seja, o bacalhau não tem recheio nenhum. É bacalhau frito de cebolada, bacalhau delgado, as badanas ou aparas, rabos ou laterais, e nem é frito frito, mas admitamos que frito quase refogado, com umas voltinhas que são próprias cá de cima. É o bacalhau recheado à nossa moda, recomendadíssimo sobretudo para o tempo de calor e férias, comido se possível com família e amigos à sombra de uma ramada, e o vinho a refrescar no poço. E também concordo que a coisa ficaria muito melhor rematada com dois ou três dos também nossos doces de gema, de Arões ou Fornelos, mas, quer-se dizer, assim já não seria bacalhau com natas...

P.S. - Viva o bacalhau! Viva o Natal!

sábado, 16 de novembro de 2024

Delícias do mar, o raio que vos parta

Foto Hernâni Von Doellinger
Areia macia e morna, água, espuma, o sal da terra, cheiro a argaço, sol quando Deus quer, a brisa nas ventas, o falar das ondas, o silêncio do horizonte a ganhar de vista, madrugadas de pés molhados, ocasos de fogo, um fino bem tirado, pescadores, peixeiras, surfistas, parassurfistas, ciclistas e todos os tipos de nudistas, vagas memórias infantis de uma semana em família na Póvoa de Varzim, a Foz, Matosinhos, a ver navios, os números repetidamente extraordinários do Porto de Leixões, camarão da costa, gambas cozidas e "tigres" grelhados no Peixoto de Fafe que já não é, cracas em São Mateus, alcatra de peixe no Boca Negra, lapas em casa do Victor e da Ana, ilha Terceira, ilha Terceira, ilha Terceira, ecos de Nemésio, mexilhões de vinagreta, masoquistas esturricando agosto e areando os entrefolhos, amêijoas à Bulhão Pato no portinho de Âncora, o bacalhau assado na brasa do Senhor Álvaro em Valença, o bacalhau assado no forno pela minha mãe, o bacalhau de quarto da minha avó de Basto, os bolinhos de bacalhau da Albertininha da Lameira, as patanisca da minha mulher, as sardinhas fritas do Paredes, a punheta de bacalhau do meu cunhado Álvaro, as trutas "do Coura" do querido amigo Vilaça Pinto, que, palavra de honra, era como se fossem marítimas, polvo de molho-verde, o meu polvo frito, as lulas recheadas da minha sogra, as sardinhas assadas da saudosa Dona Dina na Apúlia, o esplêndido rodovalho para "o senhor do rodovalho" que era eu mal entrava a porta, navalhas na chapa, arroz de tomate com petinga, ou com jaquinzinhos, ou arroz de grelos com, ou arroz de feijão com, mas malandro, malandro, malandro, ou, supra-sumo dos supra-sumos, o arroz de feijão vermelho com grelos e bacalhau frito da minha cunhada Isabel, as fanecas do Manel do Campo, biqueirão, marmotinha de rabo na boca, filetes de peixe-galo, a raia frita no Salta o Muro aqui à porta, a lagosta na ilha de São Jorge comida à ganância e à moina, as percebes na ilha do Sal, as bandejas nas rias galegas, fish and chips num velho pub irlandês, carapaus grelhados no quintal do meu sogro, ostras de Setúbal degustadas em Bordéus, a mastodôntica cabeça de pescada que vou cozer para o jantar de hoje, os tremoços da Marrequinha da Recta, as castanhas assadas da Maria Barraca e até bolas de berlim bissextamente compradas na Rua da Junqueira mais famosa do país. Isto são delícias do mar. Outra coisa não:
Fitas de nastro tingidas de cor-de-rosa gomitado, cortadas em palitos empacotados e refrigerados em vácuo e vendidos à babuge nos supermercados não são, por mais que lhes chamem, delícias do mar! Não, não e não! Serão tudo o que quiserem - delícias do mar, não!

P.S. - Hoje é Dia Nacional do Mar.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Então pastéis era aquilo?

Foto Tarrenego!
Conhecia-os de vista. De passar pelas montras ou das mesas do Peludo, mas nunca me tinham sido apresentados. Até que uma vez o meu pai trouxe meia dúzia para casa. Vinham naquela caixinha de papel, obra de engenharia feita na hora, ali mesmo aos olhos do freguês, com a habilidade e o requinte de quem constrói um avião a jacto. Se me estou a lembrar bem, havia, naquele tempo, os bolos de arroz, as bolas de berlim, os queques, os jesuítas, os caramujos, os mil-folhas, as natas e os cocos. As tíbias apareceram depois, já na era das minissaias. O meu pai chegou muito tarde "da música" e se calhar os pastéis vinham por isso, como pedido de desculpas, para adoçar a boca à minha mãe. Não tenho a certeza. Era pequeno demais para então perceber o que agora sei tão bem. Mas gostei da festa que foi: acordámos - a Nanda, o Nelo e eu -, sentámo-nos todos na beira da cama da frente, ao lado da nossa mãe, provámos apressados a novidade, o nosso pai fez-nos rir como de costume e fomos felizes. Então pastéis era aquilo? Era bom. Para mim, quase tão bom como uma côdea de broa coberta com açúcar amarelo, e já lá irei.

Fafe era um terra de antonomásias, estou farto de dizer. No nosso imenso pequeno mundo, tínhamos o Largo, a Avenida, o Monumento, a Recta, o Campo, o Depósito, o Banco, os Serviços, a Bomba, o Jardim, a Quelha, o Santo e o Café, que era o Peludo e que na verdade se chamava Cine-Bar, eventualmente dada a sua proximidade e até uma certa ligação ao Teatro-Cinema e à família Summavielle. Mas cafés, tascos e afins havia muitos. Uma mão-cheia de cafés, e tascos até dar com um pau, para ser mais preciso. Pastelarias, salões de chá ou snack-bares é que nada, até aparecer o Dom Fafe, mesmo no centro da vila, coisa fina e para clientela sem gases. O Dom Fafe, respeitando a tradição, passou a ser "o" Snack-Bar.

Eu era calisto. Calisto televisivo. A preto e branco e com muitos pedimos desculpa por esta interrupção. Para me fazer pagar a moina, o Sr. Avelino do Café, que era o Hoss do "Bonanza" em pessoa menos o chapéu alto, entregava-me umas moedas e mandava-me à cozinha do Hospital buscar uns enormes tijolos de gelo que ele depois partia e metia no barril de tirar finos (imperiais, se lido em Lisboa). No fim do recado dava-me o troco? É o davas. Oferecia-me um pastel? Fodias-te. Eu tinha para aí sete anos, o meu pai ainda não tinha trazido pastéis para casa e o Sr. Avelino punha-me à frente a merda de um cimbalino. Sete anos, e ele dava-me um café (bica, se lido em Lisboa). Se ainda ao menos fosse um cigarro!...
Eu e o Sr. Avelino, o tempo haveria de fazer-nos bons amigos, mas nunca lhe perdoei a desfeita do café.

Não sou de doces. E, dos pastéis que o meu pai trazia para casa, o que eu gostava mais era da festa, do riso. Daquela meia hora extra fora da cama. Da sensação de família e fartura, da felicidade antes do sono. Porque o meu doce preferido era outro: era a côdea de broa, "grande daqui até ao céu", enfiada às escondidas na lata do açúcar amarelo e comida na clandestinidade do fundo do quintal. Subia a um banco para subir à mesa da cozinha para chegar ao armário, abria a lata, passava o pão, fechava a lata e saía dali a cem à hora mas com mil cuidados para não entornar o "recheio". Côdea de broa com açúcar amarelo, isso, sim, era o meu bolo. Havia lá coisa melhor no mundo!? Por acaso até havia: era a gemada. Gemada simples e honesta: gema de ovo batida numa malga com muiiiiiito açúcar. Mas essa só podia ser duas vezes por ano, acho eu, pela passagem de classe e no meu aniversário. Com os ovos, lá em casa, todo o cuidado era pouco. Estavam contados, eram para deitar. E ao açúcar para a broa a minha mãe fechava os olhos. Fazia de conta que não sabia...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Diabetes.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Os paliteiros do Miranda

Os paliteiros do Miranda eram muito jeitosos. Eram uns prismas triangulares direitos ou rectos feitos em cartão coberto por papel colorido com desenhos e dizeres e um furinho na ponta. O prisma é um ponto de vista mas também um poliedro. Os poliedros são sólidos geométricos limitados por faces que são polígonos planos. O prisma triangular é um poliedro chamado prisma triangular porque as suas bases são triângulos. Tem seis vértices, nove arestas, cinco faces e duas bases, as tais. E é considerado direito ou recto porque os seus lados são rectângulos, de outro modo correria o risco de ser oblíquo. A especialidade da casa eram, no entanto, as pataniscas. As famosas pataniscas do Miranda.

P.S. - Hoje é Dia Europeu da Alimentação e da Cozinha Saudáveis.

domingo, 3 de novembro de 2024

Anthony Bourdain não passou por Fafe

Foto Hernâni Von Doellinger
Numa das suas visitas oficiais ao Porto e Norte de Portugal, o saudoso Anthony Bourdain (1956-2018) andou pela Invicta, deu um salto aos vales do Douro e do Tâmega, comeu por lá umas especialidades de carregar pela boca e teve o duvidoso privilégio e manifesto incómodo de assistir a uma matança de porco e às litúrgicas operações de desmancho e salga, acabando o dia a jogar à bola com a bexiga do bicho, como mandava a tradição.
E depois foi-se embora. Atenção: foi-se embora sem antes ir à Conga comer uma bifana. Mas, desta ou doutra vez, comeu bifanas em Lisboa. Isto cabe na cabeça de alguém? As bifanas da capital sempre me mereceram as maiores reservas e, francamente, a equipa do No Reservations deveria estar na posse desta importante informação. Perguntassem-me, porra!
Bourdain, mestre de culinária e estrela de televisão, disse que gostou muito das lisboetas "sanduíches gordurosas de porco", com carne "imunda e cortada em fatias finas". É uma definição elegante e que se aceita, acho eu. Mas havia de ter provado as bifanas à moda do Porto, na Rua do Bonjardim! E não me venham dizer que as bifanas são iguais em todo o lado. Porque não são. E não me venham dizer que é tudo uma questão de picante - mais ou menos. Porque não é. E não me venham dizer que é só temperar com vinho branco e mais não sei quê (o resto fica cá comigo, que também as faço uma categoria). Porque não é. É com o vinho (e com o resto), mas também com cerveja, ou para onde é que vocês cuidam que vão as sobras dos barris e a espuma que esborda dos finos (ou imperiais) mal tirados? Vai tudo lá para dentro, para o caldeirão da molhanga, e aqui é que bate o ponto. Aqui é que a porca torce o rabo. É que as bifanas do Porto chafurdam em Super Bock. E a Super Bock faz toda a diferença.

Por outro lado, Anthony Bourdain não passou por Fafe. O que é absolutamente lamentável. E indesculpável, por maioria de razão. Se o famoso chef americano queria falar de sandes com conhecimento de causa, primeiro haveria de informar-se acerca da posta de bacalhau frito dentro de biju, no Paredes, a acompanhar um sino de verde branco só para abrir apetite para o almoço. Haveria de perguntar pela sandes de pescada frita e fria no Lameiras da Rua de Baixo. Haveria de pedir que lhe contassem das sandes de vitela assada no Zé da Menina ou no Nacor, aqui também com batata para fazer fartura. Não poderia deixar Portugal sem antes provar a francesinha e o prego do Peixoto, e as moelas de coelho e os ovos de galo. Em pão. Haveria de tomar conhecimento da incontornável sandes de pastelão e da sandes de chicharro de cebolada retrasado. Haveria de querer saber das pataniscas do Miranda. Haveria de exigir que lhe apresentassem a minha côdea de broa com açúcar amarelo, que, sendo dobrada ao meio, sobe também à categoria das sandes certamente, apesar da sonsa oposição dos puristas e outros alegados diabéticos, e talvez até lhe ensinassem a sandes de bolacha maria com marmelada. Mas Bourdain não passou por Fafe. E portanto nunca soube nada disto. Foi o que perdeu. Foi o que se perdeu.

P.S. - Hoje é Dia da Sanduíche, quer-se dizer, da sandes. E em Fafe chicharro dizia-se chucharro e até havia uma família, gente boa, com esse nome posto. Sim, os Chucharros, do Lombo. Quanto às pataniscas do retrato, são cá de casa e não servimos para fora.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Antes que seja crime

Foto Município de Fafe
Reuniram-se em segredo - disfarçados, desconfiados, culpados e urgentes. Uma candeia sigilosa e tremelicante alumiava resumidamente o silêncio. Sentaram-se à volta de uma generosa vitela assada à moda de Fafe, clandestinos no fim do tempo. Antes que seja crime.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Veganismo.

sábado, 12 de outubro de 2024

Meninos, à mesa!

Quando a corneta, ou olifante, tocou para o tacho, eram mais de três mil cavaleiros, de faca e garfo em punho como se fossem para uma justa, mas sentados e com um apetite escancarado e lavajão, posto que estávamos na Idade Média, e higiene e boas maneiras não eram com eles naquele tempo. Manifestamente atónito e arreliado assim assim, o rei Artur fez contas à vida, pelos dedos, apaziguou a algazarra da turba colorida e apenachada com meia dúzia de flechas cirurgicamente colocadas e obviamente fatais, invocou o regimento e colocou um ponto de ordem à mesa. O seguinte: "Embora nunca tenhamos realmente existido, está historicamente provado que vocês não podem ser mais de doze, talvez 24, ou, para não me chamarem unhas de fome, temos sala para 150, fora as crianças, que pagam metade. Agora, famílias inteiras, 3.145 adultos e gordos, menos os seis que eu vindimei, já é uma escandalosa moinice. De onde é que me apareceu esta gente toda, que ainda por cima não traz o Magriço, que até nem dá despesa nenhuma, como o próprio nome indica? Por São Jorge, isto é a Távola Redonda, não é a gamela do Orçamento"...

Moral da história: Por isso é que o Festival da Vitela Assada à Moda de Fafe é comido em mesas geralmente rectangulares. Para evitar confusões.

P.S. - O escritor britânico Roger Lancelyn Gren, autor de "Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda" e "Robin dos Bosques", morreu em Outubro de 1987, há quem diga que no dia 12 como hoje, aos 68 anos.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...