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segunda-feira, 17 de março de 2025

Cabeleireiro masculino

"Cabeleireiro masculino". Olho para o reclame e fico sempre naquela. Mas quê, será masculino porque é homem? Ou será masculino porque atende homens, isto é, barbeiro? E se o cabeleireiro masculino for mulher, não deveria dizer-se, sem ofensa, cabeleireira masculina? E se o cabeleireiro for feminino, o que é que temos a ver com isso? E se o barbeiro for mulher, não vamos mais longe, porque é que não é barbeira? E em caso de indefinição ou escolha múltipla, coisa absolutamente natural, poderá ser, por exemplo, barbeire? Cabeleireire? São problemas assim que de facto me afligem - quero lá saber da guerra na Ucrânia, da destruição da América, das eleições à pressão, das obras em casa do Montenegro, das façanhas do Habeas Corpus, do emprego do irmão do presidente da Câmara de Fafe ou do racismo-fascismo que já não se esconde em Portugal...

sábado, 14 de outubro de 2023

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Foi-se a inocência, ficaram as orelhas

Foto Tarrenego!
Chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Academicamente falando, os pontos eram aquilo a que hoje, suponho, ainda se chama testes, e a enfermaria já então era o que hoje é - enfermaria. Atenção: eu dava parte de doente não porque fosse mau aluno mas porque era muito bom preguiçoso. Para além dos percevejos e do tradicional concurso de punhetas logo pela manhãzinha e a meio da tarde, o melhor que a enfermaria tinha era a sineta a tocar para as obrigações dos outros, e nós no quentinho, a comida "de dieta" e o enfermeiro propriamente dito que na verdade era barbeiro. O Sr. Pimenta, se bem me lembro. O Sr. Pimenta era enfermeiro porque tinha a bata branca de barbeiro, trazia os termómetros no bolso, via as febres (que eram forjadas na fricção com os cobertores - chamava-se àquilo "manipular a febre"), passava raspanetes e dava-nos uns comprimidos de faz de conta que, se não me engano, eram sobras do Laboratório Militar. Os comprimidos serviam para tudo e não faziam nada. O Sr. Pimenta dava também muito mal injecções. E eu contava anedotas.
Figura mítica, consagrada instituição da velha Tamanca e autoridade local, o Sr. Pimenta era uma homem gordo, de andar pesado e lento, periclitante. A cada passo parecia-me que ia cair redondo para um dos lados, consoante a perna curta que avançava. O Sr. Pimenta tinha idade para ser meu avô, achava eu, e uma barbearia montada como se fosse a sério, mesmo em frente à capela e ao lado da sala de aulas que era também a loja onde os padres nos vendiam os "objectos", mas cortava tão mal o cabelo como os tosquiadores fardados que mo raparam sem dó nem piedade, uns anos depois, quando dei entrada nos Comandos. O Sr. Pimenta era barbeiro porque tinha a bata branca de enfermeiro.
Quer-se dizer: o Sr. Pimenta era a bata.
E poderia ter sido, quem sabe, o Homem-Bata, se, derivado aos seus múltiplos poderes e polivalentes predicados, a Marvel lhe tivesse deitado a mão em devido tempo. Infelizmente a Marvel não recruta em Portugal, e é o que perde.
Apesar de ter tudo para ser um super-herói, o Sr. Pimenta era só Sr. Pimenta para mim, porque a minha mãe tinha-me ensinado a tratar os senhores por senhores e as senhoras por senhoras. Para o resto da rapaziada, meninos bem ou matarruanos, o Sr. Pimenta era o Pimenta, ordens de cima, nada de confianças. Paradoxalmente. E os outros funcionários ou acoitados, os que nos serviam no refeitório, certamente lerdos mas filhos de Deus como a gente, eram "criados". Criados. Ordens de cima. Já nem falo de educação - a caridade cristã tem definitivamente muito que se lhe diga.

Portanto, chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Um ano, em fim de trimestre, o padre Vilar, o bom padre Vilar, não quis que eu ficasse sem nota a Religião e Moral. Visitou-me, fez-me duas ou três perguntas que valeriam o ponto, perguntas do mais elementar possível, só para que eu fizesse boa figura. Perguntou-me:
- Quem é Deus para ti?
- Deus é o meu pai - respondi.
- Todos somos filhos de Deus - atalhou o padre.
- Mas eu sou mais, porque sou órfão - defendi-me, com uma não ensaiada porém oportuna lágrima no canto do olho que me valeu para aí um dezoito.
Isto é: sou malabarista desde pequenino.

Na enfermaria havia sempre um bufo que ia contar ao impiedoso padre Coutinho as minhas anedotas, mas omitia a parte das punhetas, que era regra geral e ideia não sei de quem, minha é que não. E eu também não sabia a malícia das anedotas que contava e que tinha aprendido em Fafe, porque eu sempre aprendi muito bem. Fiquei a saber quando fui chamado à pedra por uma orelha, e dependurado depois pelas duas - e assim me roubaram a inocência. O padre Coutinho gostava muito de música clássica e eu tenho a certeza absoluta de que a música clássica não gostava nada dele.

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Na minha rua passa o mar

Foto Hernâni Von Doellinger
O meu barbeiro atacou-me à traição. Falou-me de barcos. Eu e o meu barbeiro tínhamos uma combinação tão antiga e cómoda de só comunicarmos um com o outro por sinais, e ele apanha-me o ponto fraco e obriga-me à conversa da boca para fora. Barcos. Nós sabíamos que tínhamos também isso em comum, os barcos, mas era como se não soubéssemos, disfarçávamos silenciosamente, numa cumplicidade camarada, coisa de velhos embarcadiços. O Sr. Fernando, que é um artista de mão cheia, foi, no seu tempo de tropa, escanhoador-mor a bordo do navio-escola Sagres, que de vez em quando me visita o quintal. E eu, marinheiro de chuveiro e águas-furtadas, há mais de dez anos que me fiz contador de navios a bordo da minha varanda com vista para o mar (se me puser de lado). Foi assim. Diz-me o meu barbeiro, sem mais nem menos, "Aquilo agora no Porto de Leixões os cruzeiros são uns atrás dos outros". Parece coisa de nada, não é?, apenas deixada no ar, mas ó palavras que me disseste! Leixões e cruzeiros. Senha e contra-senha. Ao ataque!, pensei eu mais com a língua do que com a cabeça, esquecendo-me de que queria estar calado. Esqueci-me também da bóia e afoguei-me no relambório. Que "Pois de facto são mais que as mães, só no ano passado foram oitenta e cinco" e que "Eu é que os vejo passar, estou lá em cima a tomar conta" e que "Até os fotografo" e que "Até já conheço alguns ao longe, como por exemplo o Albatroz, o Aurora, o Boudica, o Crystal Symphony, o Queen Victoria, o Marina, o Celebrity Constellation, o Costa Pacifica ali do retrato, o Azura que é irmão gémeo do Ventura, rasam-me aqui a porta de casa, e que "O Porto de Leixões é um sucesso, um incansável batedor de recordes que despeja milhares de turistas nas cidades de Matosinhos e Porto e milhões de toneladas de mercadorias para o país inteiro, e dei-lhe mais números, e comparei-lhe períodos homólogos, e disse mesmo "períodos homólogos", que nunca na minha vida tinha dito mas tinha esperança, e meti-lhe percentagens entre parênteses, e disse "entre parênteses", e desenhei-lhe gráficos com setas a apontarem para cima, e desabafei que "Um dia destes um filho da puta qualquer, sentado numa secretária em Lisboa, vai escangalhar isto tudo". E foi assim que eu falei. Mas em ponto grande. E disse escangalhar apenas com cinco letras e começando a palavra por fê.

O meu barbeiro, que aqui atrasado não acreditou em mim quando eu lhe disse que não era mudo, estava o barbeiro mais feliz do mundo. Pasmado, de pente e tesoura suspensos no ar, como bailarina sevilhana pronta a tocar castanholas. O paleio ia de vento em popa. O meu barbeiro servia à pinta. Os barbeiros são óptimos a servir à pinta. Que "Sim" e que "Sim" e que "Sim" e que "Sim", "Sim senhor", "Não me diga", "Parece impossível", "A sério?", "A sério?". Falámos por mais de quarenta anos de silêncio. Mas conversa sobre barcos leva longe: já íamos nos fados, vejam bem. Olhei para trás e não vi terra, a minha varanda. Tive medo e parei ali. Levantei a mão direita numa saudação índia atabalhoada, fiz "Ugh!", paguei e nadei aflito até casa.
Porque na minha rua passa o mar.

(Mas ainda ouvi. À roda da cadeira do meu barbeiro começavam a sair os primeiros acordes de La Boda de Luis Alonso, com a intrañable Lucero Tena castanholando.)

Fígaro cá, fígaro lá

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Monólogo do barbeiro

Foto Hernâni Von Doellinger
Eu e o meu barbeiro comunicamos por sinais. Ele sabe que comigo não há conversa: entro no estabelecimento, levanto a mão direita em saudação índia mas não digo "Ugh!", sento-me na zona de espera, espero, varejo O Jogo, olho com fastio para as folhas do Jornal de Notícias, vejo as figuras da revista Volta ao Mundo, coço a cabeça e eventualmente os testículos, espreito-me aos espelhos, espero, espero, levanto-me quando chega a minha vez, que me é indicada pelo meu barbeiro com um semigesto de cabeça, coisa cá entre os dois, aproveito os três passos de caminho para apontar se é só barba ou se é barba e cabelo, sento-me e está tudo dito. São muitos anos!
Conversa de barbeiro é uma seca. E um perigo. Os barbeiros sabem de tudo e nós, simples e indefesos clientes, não. Portanto, de navalha em punho, eles começam a falar na crise dos mísseis de Cuba de 1962 e só terminam, uma hora depois, já a socar-nos o tralhame com a escova, quando chegam ao caso do dono do café ao lado que tem a mania de deixar a janela do carro aberta, "Qualquer dia ainda se fode, com sua licença, senhoreee...", e, depois de termos saído e já irmos longe, ainda vão à porta gritar: - O senhoreee... também deixa a janela do carro aberta? Deixa? Ai é motorizada? Pois, nesse caso...
O meu barbeiro não. Comigo, nem se atreve a pegar no espelho mostra-carecas para me perguntar, no final do serviço, se está tudo bem. Já sabe que comigo não vale a pena, até porque não me consta que se possa descortar cabelo. Vamos direitos ao assunto, quero dizer à máquina registadora, espreito os numerozinhos verdes a ver se ainda é o mesmo preço, é, pago, recebo o troco, levanto a mão direita em saudação índia e saio sem dizer "Ugh!", que ele não estranha.
Mas, para termos chegado a este superior estádio de entendimento silencioso, precisei de me começar a impor logo no princípio, há mais de quarenta anos, quando cheguei de Fafe. O meu barbeiro já sabe: som da televisão para baixo mal entro, porque a Praça da Alegria é-me insuportável. Mais: lavagem da cabeça, não. Nunca. Eu e o meu barbeiro até pode dizer-se que somos amigos, mas nada de convívio, de festinhas. Nestas coisas, a minha costela homofóbica dá de si. É uma costela flutuante, mas está lá. Por exemplo, incomoda-me também que o estabelecimento se chame "salão" em vez de "barbearia", e, ainda por cima, "salão de cabeleireiros". O meu barbeiro sabe do meu incómodo, mas neste particular mandou-me dar uma volta. São os tempos que vivemos e merecemos. Até a Barbearia Tralhão, isso sim sítio para homens de barba rija, agora também já é Cabeleireiros Pereira Tralhão. O que é que se há-de fazer?

Não sei o que deu ontem ao meu barbeiro. Resolveu falar. E eu, que até já me tinha convencido de que éramos mudos, mandei-o calar com os olhos, quase o fulminei. Mas ele fez-se de ceguinho e continuou com o relambório. Os barbeiros de um modo geral são assim, falam sempre mesmo que a gente não lhes responda. E o meu barbeiro ontem estava igual aos outros barbeiros, abriu o livro. Porque conversa de barbeiro tem técnica.
O meu barbeiro começou pela política, quer-se dizer: pelo Ventura, que vai meter estes mamões todos na ordem. O que até me veio a calhar para eu continuar calado, porque não percebo nada de política e, além disso, não gosto de dizer palavrões em público nem chamar nomes a ausentes. Perante o meu militante silêncio, o meu barbeiro passou para o futebol, quer-se dizer: Luís Filipe Vieira, Pinto da Costa, Varandas, gangues, facadas, polícia, camisolas e troncos nus, o Francisco J. Marques que é melhor do que o Pedro Guerra, e eu nada. O meu barbeiro tentou-me, então, com o Trump, agora é que o vão apanhar. Valha-me Deus, antes de almoço não, lá se me ia o apetite. E o funeral da rainha, que foi uma categoria? E eu a pensar que o real evento, se foi mesmo uma categoria, esteve certamente a cargo do nosso Baptista de Antime, mas moita-carrasco! E as notícias? Quer-se dizer: o Manuel Luís Goucha que mandou a Teresa Guilherme para a prateleira. E a Cristina Ferreira, que foi de fim-de-semana a Sevilha. E a Fátima Lopes que deslumbrou em biquíni. E o Malato que dá para os lados todos como as circunferências. E a Sónia Araújo mailo Jorge Gabriel. Também não. Nem assim. Mantive-me de boca fechada, mudo como um herói.
O meu barbeiro pareceu desistir. Calou-se, magoado. E assim esteve, desistente, calado e ressentido, durante uma boa meia hora. Até que, indo ao fundo da sua alma, arrancou um imenso suspiro, pôs a cara mais sofrida do mundo, suspendeu a tesoura trabalhadeira num gesto teatral e atirou-me, certeiro: - E este tempo?!...
Ah!, bom, o tempo. Falando do tempo, assim já nos entendemos: tivemos ali conversa até à hora de almoço e despedimo-nos de abraço.

É claro que eu não vou ao barbeiro há mais de dez anos, derivado à crise. Se deixei de ir ao cardiologista, por que razão havia de continuar a ir ao barbeiro? É a minha mulher quem me corta o cabelo e a barba cá em casa, na varanda sem marquise que temos mesmo em frente ao mar, se nos pusermos de lado. Mas eu e o meu barbeiro éramos exactamente assim. Praticamente assim. Entretanto a minha mulher aprendeu na Internet a realizar cateterismos, e cá nos vamos arranjando.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...