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quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Serafim d'Eiteiro, filósofo da hora de almoço

Serafim d'Eiteiro tinha uma sombria loja de fazendas em Cima da Arcada, por baixo do Club, e era homem de voz grave e piada fina, um figurão. O apelido "d'Eiteiro" suponho que fosse natural corruptela de "do Outeiro". Lugar do Outeiro, Antime, donde creio que era este ilustríssimo fafense, ou seriam pelo menos os seus ancestrais. Serafim do Outeiro igual a Serafim d'Eiteiro, assim terá decidido o povo, na sua provecta e indesmentível sabedoria - mas estou a deitar-me a adivinhar.
Alto, magricela, de fato todos os dias, Serafim d'Eiteiro frequentava a sala das traseiras do Peludo, onde, após almoço, se jogavam umas bilharadas iglantónicas. Aquilo era coisa constada, só para artistas diplomados e (aqui que ninguém nos ouve) até metia apostas a dinheiro, reunindo sempre uma pequena multidão de espectadores dados ao palpite e a gozar o parceiro. Um mundo! Em Fafe era assim.
E uma vez foi demais. Eu era puto e estava lá. Um dos jogadores, desgraçadamente em dia não e alvo único e reiterado da chacota geral, perdeu de repente as estribeiras e, varando com os olhos a plateia ali à roda, atirou, cheio de raiva e perdigotos: - Ide todos para o caralho! Todos...
Mas nisto encarou o respeitável comerciante, pessoa de outra idade e estatuto, teve um rebate de consciência e resolveu abrir uma honrosa excepção: - Todos, não. Faz favor de desculpar, senhor Serafim, não é para si -, corrigiu o bilharista azarado e despeitado porém atencioso, botando giz no taco.
Sentado logo à entrada depois do degrau, lado esquerdo, no canto por baixo do velho rádio Philips dos relatos domingueiros, Serafim d'Eiteiro disfarçou um sorriso maroto atrás do fumo do ininterrupto cigarro sem filtro e respondeu naquela maneira vagarenta de falar que dava ares de sabedoria: - Muito obrigado pela deferência, mas aqui sozinho é que eu não fico. Se o amigo não leva a mal, eu também vou...
E era assim a vida.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Filosofia.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

O que acontece em Fafe, fica em Fafe

As máquinas de flippers chegaram a Fafe creio que pelos finais da década de 70 do século passado e assentaram arraiais na exígua sala de bilhares do velho café Peludo, onde Serafim d'Eiteiro debitada pérolas filosóficas para jogadores momentaneamente ensandecidos. Fafe daquele tempo, sobretudo Fafe fora de horas, era uma terra de jogo, havia muito vício, muita batota. O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo exactamente. Jogavam maus meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. (Para entrar era preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava.) Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao sapo, ao pau e à bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e feio. Ateimava-se. A ateima também era um jogo. Jogava-se a tudo. E até se jogava ao pilas, como já por aí contei.
Queiramos ou não: Fafe era Fafe, um farol civilizacional, inapagável Las Vegas do vale do Ave hoje em dia com barragem e tudo, oásis de sorte e azar encravado entre a Póvoa de Lanhoso e Felgueiras, a zona de Basto, Vieira do Minho e Guimarães, consoante o lado por onde se lhe quiser entrar.
Os flippers chegaram a Fafe e foi uma febre medonha. Uma epidemia, descontrolada mas circunscrita. Eram sempre os mesmos, os do póquer, que eram os do bilhar, que eram os do dominó, que eram os das copas, agora apanhados pelo pinball, e apostava-se ali à rica e sempre com o dinheiro na mão. Os recordes, sucessivamente batidos, valiam belas maquias. Eram autênticos agarrados, constavam-se lares praticamente desfeitos. Era preciso marcar vez, havia quem pagasse por uma vaga, havia quem se esquecesse de ir trabalhar à tarde, só para não largar a máquina, deixando-a à mercê da concorrência. Não havia vida para além dos flippers, morava-se ali, ao som daquelas campainhas mágicas, sem mulheres, sem filhos, e ao fim da noite talvez também sem um tostão no bolso. Depois as máquinas foram embora, foi a sorte, ou então milagre, e os jogadores tornaram a casa, às mulheres e aos filhos, à vida real. Até que chegaram as consolas, os computadores e os telemóveis espertos...

P.S. - Publicado ontem no meu blogue Tarrenego!, a propósito do Dia Internacional do Gamer.

segunda-feira, 20 de março de 2023

O milagre da máquina de flippers (ou Fafe e o jogo)

Naquele tempo, Quitério chegou-se um pouco mais, encostou a perninha como quem não quer a coisa, e disse: "Se me dá licença, Luisinha, vou contar-lhe uma pequena história a propósito. Uma parábola, que também as sei. Era uma vez um velho pescador muito pobre, muito pobre, tão pobre que nem moscas tinha em casa. A sua amantíssima esposa era muito velhinha, muito velhinha, tão velhinha que sentia a falta das moscas. E não tinham filhos. Certo dia, quando andava na faina à faneca, o paupérrimo pescador foi surpreendido por uma violenta tempestade. Uma tempestade dir-se-ia talvez que dantesca, se não fosse asneira dizê-lo. As ondas eram adamastores, o barco uma casca de noz, uma esfera desgovernada numa máquina de flippers de gás a fundo. - É hoje que me afogo, é hoje que me afogo -, pensou o homem e calçou as galochas, sem fazer ideia do que é uma máquina de flippers. A aflição do velhíssimo pescador era do tamanho da borrasca: medonha. Graças a Deus, lembrou-se do Mártir São Sebastião e fez uma solene promessa: se Nossa Senhora do Leite e do Bom Parto lhe mandasse um filho, meteria imediatamente os sogros num asilo, livrando-os da fome de cão que passavam lá em casa, assim São Pedro o permitisse. Nessa noite de milagre, quando voltou são e salvo ao porto de abrigo do seu modesto porém honrado lar, a sua velhíssima e amantíssima esposa tinha-lhe guardado no borralho mortiço o fundo de uma malga com farinha-de-pau. O pescador despejou as galochas na pia de lavar a louça, para aproveitar, e ceou. Assim se passaram as coisas."
De braços teatralmente abertos, com a mão direita segurando a chávena do café e a esquerda agarrada ao pires, abanando compenetradamente a cabeça, em movimentos curtos, ritmados, de cima para baixo ou vice-versa a partir de uma certa altura, confirmando em absoluto a profundez da mensagem supra, Quitério fixava, inquiridor, num silêncio eloquente, uma estranha Luisinha que o olhava de boca aberta. Cansado de estar calado e de abanar a cabeça, Quitério perguntou finalmente: - Percebeu? - Olhe que não sei bem... - defendeu-se Luisinha, mais confusa era impossível. - Pois aí tem, exactamente a esse ponto é que eu queria chegar - sentenciou Quitério, dando por encerrada a sessão.

As máquinas de flippers chegaram a Fafe creio que pelos finais da década de 70 do século passado e assentaram arraiais na exígua sala de bilhares do velho café Peludo, onde Serafim d'Eiteiro debitada pérolas filosóficas para jogadores momentaneamente ensandecidos. Fafe daquele tempo, sobretudo Fafe fora de horas, era uma terra de jogo, havia muito vício, muita batota. O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo exactamente. Jogavam maus meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. (Para entrar era preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava.) Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao pau e à bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e feio. A tudo. E até se jogava ao pilas, como oportunamente contarei.
Os flippers chegaram a Fafe e foi uma febre medonha. Medonha, como a tempestade da história, da parábola. Eram sempre os mesmos, os do póquer, que eram os do bilhar, que eram os do dominó, que eram os das copas, agora apanhados pelo pinball, e apostava-se ali à rica e sempre com o dinheiro na mão. Os recordes, sucessivamente batidos, valiam belas maquias. Eram autênticos agarrados, constavam-se lares praticamente desfeitos. Era preciso marcar vez, havia quem pagasse por uma vaga, havia quem se esquecesse de ir trabalhar à tarde, só para não largar a máquina, deixando-a à mercê da concorrência. Não havia vida para além dos flippers, morava-se ali, ao som daquelas campainhas mágicas, sem mulheres, sem filhos, e ao fim da noite talvez também sem um tostão no bolso. Depois as máquinas foram embora, foi a sorte, ou então milagre, e os jogadores tornaram a casa, às mulheres e aos filhos, à vida real. Até que chegaram os telemóveis...

P.S.- Hoje é Dia Internacional do Contador de Histórias, modéstia à parte.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...