terça-feira, 16 de agosto de 2022

Era uma bola a pinchar


Ainda que não se pense muito nisso, há uma certa diferença entre a defesa mista e a sandes mista. A primeira, como toda a gente sabe, não leva queijo nem fiambre. Mas, ainda assim, pode ser comida. Basta às vezes uma pequena distracção, um lateral que ficou em casa, um fora-de-jogo mal alinhavado, um avançado matreiro e rápido como um raio que o parta.
O futebol moderno é feito de palavrões. Já não é futebol nem desporto, é indústria, chama-se jogo mas com conotação cibernético-filosófica, e é uma ciência praticamente. Tem unidades de treino, periodizações tácticas, trabalho específico, fundamentos. No meu tempo ia-se à bola, e os palavrões eram outros, palavrões a sério (ou à séria, se lido em Lisboa), palavrões do piorio mas sem ofensa. O futebol era paixão, entretimento. Sim, entretimento.

Era uma bola a pinchar e onze contra onze numa luta brava em campo pelado, campo de batalha. Naquela altura eu acreditava no futebol. Era o jogo da bola, só isso, mais uma que outra coça aos desgraçados dos árbitros, para desopilar. Lembro-me dos jogadores com camisas de botões e das chuteiras remendadas e de travessas. Os pitões ainda não tinham sido inventados e as travessas eram de sola, pregadas com tachas, e as tachas entravam não raras vezes pelos pés dentro dos jogadores. O meu coração era amarelo e preto, Faaaaaafeee!..., todo branco em alternativa, com o azul e branco ainda guardado para segundas núpcias. Lembro-me dos jogadores que nasciam e morriam no clube da terra onde nasceram. Lembro-me de jogadores que verdadeiramente morreriam em campo pelo seu clube, sem eufemismos, era só dizerem-lhes que era preciso. Lembro-me de jogadores que corriam como se treinassem todos os dias e só treinavam durante o jogo. Lembro-me de jogadores que fugiam da tropa para jogar e depois iam presos. Lembro-me de jogadores que chegavam da guerra carregados de paludismo e queriam lá saber. Lembro-me de jogadores que choravam nas derrotas e embebedavam-se nas vitórias, porque era assim. O Fafe era a Associação. A Associação era Fafe. Lembro-me e gosto. Sou um bocado velho, o que se há-de fazer?

Os palavrões futebolísticos com nada dentro não nasceram agora, neste tempo insosso cheio de conferências de imprensa pré-maquetadas, reclames a champôs e espaços entre linhas. Os comentadores são palavradores, decerto ganham à sílaba, falam muito e não dizem nada, inventam vacuidades, falam também pelos cotovelos mas já ninguém distingue. O parlapiê vem de longe. Há mestres antes dos mestres e eu prefiro os de antigamente. E nem vou falar dos estimáveis Gabriel Alves e Rui Tovar. Mas do consagrado Alves dos Santos, que nos deu a "pertinácia" e o "arreganho", e viu um golo "exactamente igual ao golo anterior", quando a Eurovisão estreou as repetições (que era só uma, com um inesperado e mal amanhado R no canto superior direito do ecrã da televisão do Peludo) e ele não sabia. Ou do bom do Mário Wilson, então treinador do Boavista, quando perdeu nas Antas e queixou-se dos golos de "bola parada". José Maria Pedroto, então treinador do FC Porto, disse que não podia ser: bola parada não anda, logo não entra, explicou.

Sou, portanto, antigo. Gosto de futebol, da bola. Dos noventa e tal minutos que se jogam em campo, porque para mim um jogo não dura uma semana. Quero lá saber de opiniões alheias. Eu tenho a minha e chega-me. E tenho memória, memórias, que é o que me remedeia hoje em dia.

Por obséquio: ponham os olhos na extraordinária fotografia que abre este apontamento. Retirei-a, à foto, do livro "Associação Desportiva de Fafe - 50 Anos de História", de Artur Ferreira Coimbra. É a nossa equipa da época 1965/66. Da esquerda para a direita, de pé: Toneca, Germano, Apolinário, Ricoca, Costa, Adelino, Manel Zebras e o massagista João Americano; de joelhos: Júlio Alves, Fernando Alves, Berto Dantas, Mário Machica, Adriano e Avelino Lopes. Só craques, quem mos dera outra vez. Conheci-os a todos e alguns deles fizeram-me até o impagável favor de serem meus amigos, apesar da evidente diferença de idades. E os nomes? Que categoria!
Fafe, diga-se em abono da verdade, deu ao mundo do futebol, para além dos exemplaríssimos supracitados, nomes tão formidáveis como Riga, Piré, Rates, Estafete, Mulato, Caganito, Trolas, Feira Velha, Esparrinhento, Pescoça, Ferradeira ou Mofo. Nomes que são uma primeirinha, do tempo em que o futebol era desporto e jogado por gente como nós e de nós. Uns antes, outros depois, estes e mais, foram e ainda são os meus ídolos. Os meus cromos. Os meus heróis.

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