quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O rapaz dos altifalantes

Era a sua primeira vez. Agarrou pois no microfone, coçou-lhe a cabecinha com a unhaca da cera, soprou-lhe o pó num imenso e sonoro perdigoto e, sem mais delongas, disse:
- Alô, chape, chape, um, dois. Um, dois, três, microfone, experiência. Chape, chape, um, dois. Um, dois, três, quatro, microfone...
E a multidão irrompeu em aplausos.

A frase era: "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". Mas só funcionava, a célebre frase, se fosse metida no meio de uma marcha do John Philip Sousa, que para mim era um músico português de Castelo de Paiva que tinha ido para a América em pequenino. Eu sabia que no Pejão havia por aquela altura uma grande banda de música, quase tão boa como a nossa, a de Revelhe, e era por isso. Quanto à marcha propriamente dita, de preferência Stars And Stripes Forever. Isso, sim, era serviço completo, coisa profissional.
Eu adorava os altifalantes. Longe ou perto, os altifalantes chamavam por mim e eu ia. Eram sinal de futebol no Campo da Granja, eram Festa da Bomba, eram o Santo António na minha rua, eram a Senhora de Antime que vinha à vila numa tremenda e comovente procissão. E eu adorava aquela frase. O meu sonho era dizê-la quando fosse grande.
E disse. Vezes sem conta, anos mais tarde, já os altifalantes tinham sido promovidos a "instalações sonoras" e a bola rolava no Estádio de campo pelado. Sim, o microfone agora era meu, eu era o rapaz da "constituição das equipas" e daqueles reclames muito jeitosos que terminavam todos em "... nesta simpática lo-ca-li-da-deee". E os anúncios pelos 16 de Maio e pelas Festas da Vila, nos altifalantezinhos pendurados nas árvores em Cima da Arcada, sim, também era eu. Mas estavam gravados e a frase era-me impedida. E nem imaginam o que eu sofria quando andava com o Pimenta pelas aldeias de Fafe a apregoar os filmes do cinema ao ar livre, as cornetas atadas às três pancadas no tejadilho da velha catrel e eu, aos solavancos contra o tecto, sem poder dizer a frase. Mas não encaixava de maneira nenhuma a puta da frase. Que seca! E os filmes também.
"E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". Era a frase da minha infância e andou sempre comigo. Até na profissão. Quando passei pela Informação da Rádio Comercial, no tempo em que a Comercial fazia parte do universo RDP, muitas vezes a disse, como teste, na gravação de uma notícia ou apenas por brincadeira, de microfone fechado, antes de ir para o ar com o noticiário. "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde".
Nunca chegou cá fora, e foi o que os senhores ouvintes perderam - como certamente estão agora a perceber. Em contrapartida, uma vez, no final de um bloco noticioso particularmente bem conseguido, saiu-nos - ao colega de cabina e a mim - um "Até os comemos!", de microfone involuntariamente aberto e destinatários certos, que ainda hoje é o nosso orgulho.
E realmente "Até os comemos!" também é uma bela frase e resulta muito bem em rádio, sobretudo se for numa rádio sustentada pelos contribuintes. Mas, verdade seja dita, não tem comparação com a outra, a gloriosa, a dos altifalantes, pois não?

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