domingo, 30 de outubro de 2022

À hora ou há ora?

À hora ou há ora? - perguntou o gramático, manhoso, como se os agás e os acentos, agudos ou graves, fossem visíveis nas conversas. - Há ora - respondeu o discípulo, mais convencido era impossível. - Há ora?!... - exaltou-se o gramático - Há ora?!?!... - ameaçou o gramático, entremeando os pontos de interrogação e de espantação, e insistindo perdigotamente nas velhas reticências. - Há ora, mestre - perseverou o discípulo, humilde porém seguro. - Há ora, mas e além disso...

A bombeiral da moda 3

Foto Tarrenego!

sábado, 29 de outubro de 2022

Bastante desagradável

- Está bastante desagradável.
- Você também.
- Eu referia-me ao tempo.
- Eu não.

Barnabés, eu tive dois

Foto Hernâni Von Doellinger
Que é que tinha o Barnabé que era diferente do outro? Para começar, era baixinho, abreviado como estampa. Por isso o Senhor Barnabé fazia questão de resumir-se ele próprio, humilde, e dizia que o povo todo o conhecia por Bé, e era assim que gostava de ser chamado, contou-me ele. Bé, então. Estão a ver aquele homenzinho gentil, doce, dez-réis de gente num ar pândego de pinto-calçudo, sacola de merenda a tiracolo, sempre mortinho por concordar com tudo e com todos, estaca aqui para falar com um, estaciona ali para conversar com outro, e na cara, em vez de cara, um sorriso maroto, cândido, inextinguível? Estão a ver? Era o meu Senhor Bé. Eu e Senhor Bé partilhávamos todas as manhãs o Passeio Atlântico de Matosinhos e suponho que éramos amigos. Havia também quem o conhecesse por "São Pedro da Cova", porque era de lá que ele vinha diariamente de autocarro para passear vagaroso a borda do mar. Nos seus oitenta e picos bem medidos, eram quase duas horas de viagem para cada lado, com transbordo, todos os dias ou quase, mas sem lamúrias. O Senhor Bé - que também se lembrava, como eu, de quando Fafe e São Pedro da Cova andaram à pancada por causa da bola - faltou-me ao convívio no tempo de estado de emergência derivado à pandemia, mas logo que pôde tirou outra vez o passe e voltou. Disse-me que estava cheio de saudades.
Uma vez eu contei-lhe do outro Barnabé, que dava dois dele, ou três. O Senhor Barnabé de Fafe, funileiro de alto gabarito, morador e estabelecido naquele escondidinho do Santo Velho e músico vitalício da Banda de Revelhe. O Senhor Barnabé fafense devia ser uma enorme despesa em farda e tocava tuba porque não havia instrumento maior, tirando talvez o bombo, e a tuba vinha-lhe realmente por medida. Quanto ao Senhor Bé, que certamente não gastaria metro e meio para um fato, eu às vezes até me ria imaginando-o, pequenino e gaiato, a tocar pífaro.
Que se segue? No Verão do ano passado o Senhor Bé tornou a faltar-me e eu, confesso, escarmentado com o desaparecimento da minha abençoadora das 7h30, fiquei com medo de perguntar por ele. Deixei correr dois meses, três meses, estávamos a chegar ao Natal e finalmente ganhei coragem. Fui tirar nabos do púcaro junto de outro dos habitués do Passeio, e ouvi o que não queria. Que o Senhor Bé não vinha mais. Morreu. O Senhor Bé "foi mudar uma válvula ao coração e ficou na máquina", disse-me o amigo. Ficou na máquina. Assim.
Quer-se dizer: o Senhor Bé morreu e eu, palavra de honra, acho isto muito mal organizado.

A bombeiral da moda 2

Foto Tarrenego!

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O velho tinha razão

- Estou um velho - disse o velho.
- Não está nada - disse a visita.
- Um caco - disse o velho.
- Como novo - disse a visita.
- Já não duro muito - disse o velho.
- Inda vou primeiro - disse a visita.
- Dói-me tudo - disse o velho.
- É da idade - disse a visita.
- Ai que eu morro - disse o velho.
- Morre nada - disse a visita.
- Morro, morro - disse o velho.
- Não, não morre - disse a visita.
- Morro - disse o velho. 
E morreu. Até porque já estava a ficar chateado.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Terceira Idade.

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Para falar com Deus

Tomou horas, foi para a fila, tirou senha, esperou vez, chamaram-lhe o número, aproximou-se finalmente ao balcão das informações, não muito, e perguntou: - Para falar com Deus, falo com quem?...

E a loja era verde

Isaac Singer, mal considerado o inventor da máquina de costura, nasceu no dia 27 de Outubro de 1811. Foi também actor e empresário. O Sr. Singer tinha uma loja e uma carrinha muito jeitosas em Fafe, vendia máquinas propriamente ditas, peças e acessórios, lubrificadores e lubrificantes, linhas e tafetás, montava, afinava e dava assistência ao domicílio - mas nunca o vi por lá. E a loja era verde...

O que é preciso é dar ao dedo!

Há que tempos que eu não via uma coisa assim: uma mulher, ainda nova, a fazer malha num transporte público. Descontraída, com um sorriso nos lábios e manuseando habilmente o frenético par de agulhas, como num duelo, ia dando forma ao novelo de lã que, aos arranques, se lhe esvaía do colo. Era uma camisola, pareceu-me. E, a cena, um delicioso anacronismo. O metro do Porto é sítio para tudo, já lhes digo, principalmente para tudo o que meta telemóvel, bisnagas amaciadoras e calhamaços do José Rodrigues dos Santos. Mas fazer tricô é que eu nunca tinha visto. E gostei.
Passaram-se dois dias. Num jardim fronteiro à praia de Matosinhos, um jovem casal gozava o sol de Inverno e aproveitava para ensinar a filhita a andar de bicicleta. O pai acompanhava a menina em correrias, dando-lhe as instruções elementares, mas a mãe sentou-se. Sentou-se, abriu a bolsa, rapou de um pequeno embrulho que eu primeiro não distingui e, com a agilidade de um experimentado bonecreiro, ela começou a bater-se com quatro-agulhas-quatro, tantas quantas são precisas para tricotar meias de lã. Era o que ela fazia, uma meia. E percebi.
Percebi que isto não é só gosto, moda ou revivalismo, terapia ocupacional. É sobretudo precisão. Voltámos ao pior do tempo antigo. O Portugal democrático, da Europa, das auto-estradas, das universidades e do século XXI é afinal igual ao Portugal fascista e "orgulhosamente só", poeirento e obscurantista do tempo em que a minha mãe, por necessidade, fazia todas as minhas camisolas e as camisolas dos meus irmãos. (E que categoria que elas eram! Tenho uma comigo vai para quarenta anos, acreditam?)
Por outro lado, lembrei-me, pode estar exactamente aqui a salvação do País. Permitam-me que lance o desafio: porque não transformar o tricô num desígnio nacional? Porque não começarmos todos a fazer malha para fora? Porque não pôr este país de desempregados e falidos a dar ao dedo de norte a sul e ilhas, elas e eles, e apostar na internacionalização e exportação em barda das nossas peças de lã? Sim, porque não? Afinal, o que é que as natas e os pastéis de Belém são mais do que os barretes, os camisolões, os carapins e os coturnos genuinamente made in Portugal?...

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

A vida é bela e amiúde traiçoeira

Foto Hernâni Von Doellinger
A minha mãe teve uma infância muito difícil, era assim que eu ia começar a escrever. Mas não. A minha mãe não teve uma infância difícil, nem uma infância fácil, nem uma infância assim assim. A minha mãe não teve infância, ponto final.
A minha mãe não foi sequer à escola. Mandaram-na para criada de servir aos sete anos de idade. Serviu famílias importantes em Fafe, mas ninguém se lembra ou faz caso, a minha mãe era um criança.
A minha mãe casou aos 18 e ficou viúva aos 33. Viúva e com quatro filhos evidentemente menores. Era tempo do fascismo - sim, do fascismo -, da pobreza sufocante e do opróbrio, da reprovação pública, porque a má-língua sobre vizinhos ou conhecidos era o passatempo que havia antes dos reality shows da TVI e das notícias de faca e alguidar da CMTV. Naquele tempo de cinza, ser-se nova e viúva era uma desgraça, mas também, socialmente, um defeito, uma marca na testa para toda a vida. A minha mãe passou a ser oficialmente a Viúva da Bomba, para que não lhe viessem ideias. E no entanto, sozinha, fez de nós quatro as pessoas que somos, à sua imagem e semelhança, vertebrados e moralmente limpos, gente digna e séria, respeitadora e respeitada, menos eu, que dei no que dei e, com esta idade, já não tenho remédio.
Como é que a minha mãe conseguiu? Com muita muita canseira, com roupa lavada para fora em tanques de ricos, na poça do Santo ou no tanque do Matadouro, com camisolinhas e casaquinhos de lã feitos por encomenda, primeiro à mão e depois à máquina, com lágrimas tantas que eu bem as via por mais escondidas que fossem, com os tostões contados sete vezes ao dia, com os meus irmãos mais velhos - a Nanda e o Nelo - a terem de ir trabalhar ainda crianças para que eu e o Lando, os mais novos, pudéssemos "estudar e ser alguém na vida". E sermos alguém na vida por eles, em nome deles, de todos, porque nós os cinco éramos apenas um, assim é que a nossa mãe nos queria, como os mosqueteiros, ainda nem fazíamos ideia do Intermarché, embora eu já soubesse do Alexandre Dumas e do d'Artagnan.
Resultado: os meus irmãos são umas jóias, foram e são sempre os melhores naquilo que fizeram e fazem na vida, que era o mínimo que a nossa mãe nos exigia, o Nelo e a Nanda afinal também são "alguém" mesmo sem "estudos" e, quer-se dizer, só eu dei para o torto porque nestas coisas de família é realmente imprescindível a excepção que confirme a regra, e portanto resolvi sacrificar-me pelo bem comum.
A minha mãe fazia das tripas coração e da massa com fressura um pitéu. O dinheiro não chegava e então passou a tomar conta de crianças. Isso, a minha mãe tomava conta dos meninos dos outros, era "ama" disputada, havia lista de espera, metiam-se cunhas, empenhos para que ela aceitasse esta ou aquela criança. Lembro-me do Miguel, da Guidinha, do André, da Xaninha, da Susana, do Ginho, do Miguelinho, e esqueço-me indesculpavelmente de outros, e os meninos chamavam à minha mãe, cada qual à sua maneira, "mãe Xandrina", "mãe minha" (haverá forma mais bonita de chamar alguém?) ou simplesmente "bozinha", porque os netos também lhe passaram pelas mãos. A querida Guidinha, agora casada e também mãe de um rapaz já adulto, ainda hoje chama "mãe Xandrina" à minha mãe e a mim chama-me "tio Nane". E eu gosto muito.
Na Rua do Assento, na casinha de pedra, minúscula, imensa e mágica, a minha mãe chegou a olhar por nove meninos ao mesmo tempo. Como se fossem também seus filhos. Olhava por eles para olhar por nós. Era severa e amorosa, dava-lhes, de acordo com a exigente a cartilha que lhe corria no sangue, o pão e a educação, tinha ali uma espécie de infantário, restrito e de alta qualidade, e se fosse hoje se calhar ia presa.

O dedo que adivinhava tudo

Se eu acreditava no dedinho da minha mãe que sabia tudo? Acreditava, e acreditava piamente. Aquele dedo mantinha-me na linha. E ainda hoje.

A bombeiral da moda

Foto Tarrenego!
Abro aqui uma nova série, regra geral recuando aos finais da década de 1960 e inícios da década de 1970 do século passado, tendo como protagonistas os Bombeiros de Fafe e ministros do antigo regime que por aqui passaram de visita. Destacam-se Baltazar Rebelo de Sousa, um verdadeiro amigo da terra, e Arantes e Oliveira, com quem começamos. Mas também cá estarão, por exemplo, o incontornável Santos da Cunha, governador civil de Braga, os autarcas e caciques locais, o Senhor Abade e outras "autoridades" da altura. E os bombeiros, sobretudo os bombeiros. Será uma oportunidade, quem sabe, para alguém descobrir o avô ou o bisavô em retratos que provavelmente desconhecia. Quanto ao título da série, pedi-o emprestado ao Raul Solnado.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

De bucho cheio (mas não é geral)

Hoje é Dia Internacional do Bucho. Não se riam, por favor! Ou, se fizerem mesmo questão, riam-se à vontade! Mas hoje é Dia Internacional do Bucho. Pelo menos no Brasil é, embora eu não saiba se os brasileiros sabem. O bucho que serve para a nossa alimentação, como se dizia antigamente nas redacções da escola primária, reconheço-o arranjado de três maneiras diferentes. Estufado como se fosse tripas mas sem outro acompanhamento senão o molho, tipo moelas nomeadamente de coelho. Recheado, como no Florêncio, em Guimarães, mas aviso já os principiantes que pode ser uma tremenda desilusão e uma despesa escusada e chorada. Ou com molho verde, como eu prefiro guiá-lo cá em casa, embora não o faça há muito. E pronto. Sobre o Dia Internacional do Bucho, é o que se passa de momento.

Pernas até ao cu

Fala-se de mulheres king-size - mulherões, avionas, tranconas - e diz-se que elas têm pernas até ao cu. Pelo menos na minha terra dizia-se. Como se as mulheres eventualmente mais manejáveis - perrotas, batoques, torneirinhas como a faneca - tivessem pernas apenas até ao tornozelo. Sucedeu-me agora mesmo este clarividente pensamento porque: no dia 24 de Outubro de 1939, faz hoje anos, foram colocados à venda os primeiros lotes de meias de náilon.

Poupée de cire, poupée de son

Factos reais como punhos. Manhã de sábado, A28, direcção Matosinhos-Viana do Castelo, um pouco antes da saída para Vila do Conde. À minha frente segue uma velha carrinha Renault 4L, de um cor-de-rosa altamente suspeito e vagaroso. Aproximo-me, com o fastio próprio dos condutores domingueiros que já não têm paciência para os condutores domingueiros, mas arrebita-se-me a atenção quando, mesmo em cima dela, leio os dizeres da viatura. São uns dizeres sugestivos e muitos, reclames açucarados a um loja de prazeres - sex-shop em português.
E vejo finalmente os ocupantes, ainda por trás: é o do volante e, ao lado, uma louraça da fazer parar o trânsito. Mas eu avanço. Avanço cuidadosamente para a ultrapassagem, olho para o gajo e o gajo sorri malandro. E eu continuo a olhar e o gajo continua a sorrir. Atenção: eu posso olhar e continuar a olhar, porque eu não conduzo, não sei conduzir, nem sequer tenho carta. Brincalhão, o gajo. A gaja não sorri, não me liga nenhuma, olha sempre em frente, tomando sentido à estrada, ainda mais loura do que há bocado e, reparo agora, tem uns lábios vermelhos e escarrapachados, desafiadores.
A minha mulher desliga o pisca e então é que se me faz luz. A gaja da catrel é uma boneca. Uma boneca mesmo, de plástico, uma boneca insuflável, de carregar pela boca. O gajo olha para mim e sorri cada vez mais, no gozo, satisfeitíssimo, não sei onde é que a rapariga levava as mãos. 

P.S. - Louis Renault, pioneiro da indústria automobilística, morreu no dia 24 de Outubro de 1944.

Eu pirilamparei, tu pirilamparás

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 23 de outubro de 2022

As meninas... dançam?

Lembram-se do futebol de salão? O que é que nos vinha à cabeça quando se falava de futebol de salão? O salão. Uns cavalheiros vestidos de fraque e com um número nas costas e umas cavalheiras despidas nas costas e no resto, agarrados um ao outro e rodopiando pelo rinque árabe do Palácio da Bolsa como Fred Astaire e Ginger Rogers e uma bola pequenina no meio, um árbitro e o apito, um júri e tabuletas avisando dos pontos. Para evitar confusões, o futebol de salão passou a chamar-se futsal. E pelo menos em Fafe, com as moças do Nun'Álvares, é o sucesso que se sabe...

Chester, para todos os efeitos

Matt Dillon era o xerife de Dodge City, e Chester o seu leal escudeiro. Naquele tempo todos queriam ser Tarzan ou Mandrake, Buck Jones ou Fantasma, Mascarilha ou Cisco Kid. Os "artistas". Mas o Álvaro escolheu modestamente ser Chester, actor secundário, e assim se rebaptizou num involuntário equívoco cheio de ironia: na verdade, Álvaro Moreira Mendes nasceu para ser primeira figura, protagonista. E foi. No seu ofício de indústria, no movimento associativo, na intervenção cívica, na amizade fraterna e íntegra, foi sempre dos melhores, um fafense excelentíssimo, um homem maior do que o próprio nome, maior do que a alcunha sacada dos livrinhos de cobóis, maior do que o lugar que lhe queiram dar os menestréis da história recente de Fafe, tão desperdiçada em umbiguismos, capelinhas e bagatelas, maior do que melhor ou pior pensem dele. Acerca da opinião dos outros a seu respeito, creio, aliás, que o Chester, ajudante do xerife, não se coibiria de dizer, alto e bom som: caguei!!! E diria alto e bom som e assim com três pontos de exclamação porque ele não sabia falar de outra maneira.
Onde o Álvaro chegasse, constava. Ele encarregava-se de avisar logo à entrada, por entre raios e coriscos, avançando como um tornado de grau cinco, a enorme mão calejada e aberta desbravando caminho, oferecendo-se para um abraço, para uma palmada nas costas à moda antiga. Ser imperfeito como todos nós, mas menos imperfeito do que a maioria de nós, e muito menos imperfeito do que eu, por exemplo, o Chester tinha um coração enorme, desmesurado, e uma boca do tamanho do coração. Fazia amigos com o dobro da facilidade com que fazia inimigos. E também deu alguns pontapés na vida.
O Chester era generoso, impulsivo, excessivo e puro. E amiúde foi a primeira e principal vítima da sua generosidade sem peso nem medida. Era um bom selvagem, uma força da natureza.
Era meu amigo. Forjámos a nossa cumplicidade no tasco, evidentemente. Nas tardadas de Inverno passadas à volta da braseira na cozinha da Dona Isabel, no Toninho Nacor, onde eu, com os bolsos cheios de cotão, ia levado pelo tio Américo. Em 1976, Barcelos acolheu o Campeonato da Europa de Hóquei Patins Sub-21 (juniores, chamavam-se então). O Chester falou do assunto. Comprámos duas assinaturas para o torneiro inteiro, e todas as noites lá íamos de Vauxhall até Barcelos por estrada nacional, que era o que havia, víamos os dois ou três jogos do programa, regressávamos a Fafe e eu chegava a casa já de madrugada. Fomos campeões.
Mais ou menos por essa altura o Grupo Nun'Álvares estava instalado no edifício que fora posto da GNR, em frente à Igreja Matriz, e que hoje é, creio não estar enganado, casa paroquial. Ali foi construído um rinque em cimento e organizado, em 1977, o primeiro torneiro de futebol de salão em Fafe. Salão ao ar livre, é preciso que se note. Nunca falhei um jogo. Um dia vou à bilheteira comprar o bilhete do costume, está lá o Chester (o Chester tinha o seu quê de Deus, também estava em toda a parte) e entregou-me um livre-trânsito passado em meu nome e que dizia "Convidado da Organização - Prémio Assiduidade". Coisa inventada por ele, que era a alma daquilo tudo. Resultado: deixei de pagar para entrar e guardo religiosamente aquele cartão, como se fosse um santinho, uma relíquia da Terra Santa.
Quando terminei a minha felizmente efémera passagem pela tropa, o Álvaro foi a primeira pessoa a oferecer-me um emprego a sério e até já tinha tratado de tudo para eu tirar a carta de condução. Apareceu-me melhor, o Álvaro incentivou-me a aceitar a outra proposta, e ainda hoje não tenho carta.
O Chester alegrava-se quando me via em Fafe. Fazia questão que se soubesse que gostava muito de mim. E a verdade é que eu também gostava muito dele. E no entanto falhei-lhe miseravelmente na altura da vida em que por certo ele mais precisou dos amigos...
O Álvaro era, regra geral, do contra. Era um inquieto espírito de contradição. Tanto que, só para chatear, resolveu deixar-me a falar sozinho, quando tínhamos ainda tanto para conversar.
Felizes os ignorantes: quem não conheceu o Chester, não sabe o que perdeu. Trabalhador incansável, empreendedor contumaz, homem dos sete instrumentos e de mil causas, o Chester é uma história extraordinária e isto aqui é apenas um humilde lembrete, um quase nada. Grande, grande era ele. Álvaro Moreira Mendes. Chester, para todos os efeitos. Uma vida que dava um livro, um nome que merece rua. Em Dodge City já teria.

Conta a lenda que 11

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 22 de outubro de 2022

A concha

Perguntam-me: mas afinal o que é a concha? E eu respondo: concha pode ser colher para servir sopa, prato de balança, parte das chaves de instrumentos musicais de sopro, peça de lagar, espécie de puxador de gavetas, pavilhão auricular, couraça, invólucro calcário que protege o corpo de moluscos e braquiópodes, isto é, conchinha do mar. Mas não. Concha era tampa metálica das garrafas de cerveja e refrigerantes, era cápsula, sameira, carica, chapinha como se diz no Brasil. E era brinquedo de menino pobre. Em Fafe, evidentemente.

Da pornografia às artes performativas

Foto Hernâni Von Doellinger
Riscado da lista de pagamentos da Capital Europeia da Cultura 2012, o Teatro Jordão está para ali, com todo o aspecto de abandonado e esquecido, a um mês de fazer 75 anos. É mais uma triste metáfora do desgraçado país que somos. Já li sobre reabilitações, orquestras sinfónicas, bandas, academias, artes dramáticas e visuais, universidades, estudos, anteprojectos, projectos - e nada. Tretas e mais metáforas. Havia umas obras marcadas para terem início em 2013 e eu não sei porquê mas não acredito nelas. Já não há metáforas que aguentem. Não sei o que Guimarães pensa ao certo do caso, mas a mim parece-me que o azar do Jordão é a vizinhança: o mau-olhado do Centro Cultural Vila Flor que lhe fica resvés e come tudo, tudo, tudo, como o Sebastião da ancestral cantiga.
Também não sei o que o Teatro Jordão significa realmente para os vimaranenses e se a cidade reivindica a preservação física da velha sala de espectáculos. Sei o que o Jordão significa para mim, mas a minha memória vai para além das pedras. A casa pode vir abaixo, que as recordações daqui não saem.
"Chove em Santiago", o filme de Helvio Soto sobre os últimos dias do governo de Salvador Allende e o golpe militar no Chile, vi-o pela primeira vez no Jordão de casa cheia e a explodir de repente numa enorme manifestação antifascista, comício de ignição espontânea, de raiva, o pessoal de pé em cima das cadeiras, de punhos cerrados e erguidos, com uma única e cada vez mais vociferada palavra de ordem - Filhos da puta! Filhos da puta!! Filhos da puta!!!
Andávamos ainda com o fogo do 25 de Abril no rabo e ninguém nos aturava. Bons tempos aqueles, havia sonhos.
O "Jordáohe", como se chama em "Guimaráes", tinha um excelentíssimo restaurante nos fundos e foi também o cinema dos meus primeiros filmes pornográficos. Era a novidade. A pornografia acabara de chegar a Portugal, com a bendita liberdade, que afinal é sempre um pau de dois bicos. Devo esclarecer, por falar nisso, que os filmes pornográficos do Jordão faziam muito mal aos intestinos, pior do que garrafão de vinho doce bebido de uma assentada. Nos intervalos era um ver se te avias para ir à retrete, filas imensas de braguilhas aflitas à porta das sentinas, porque os urinóis para o caso em apreço não serviam.
Quando me internacionalizei, um ou dois anos depois, em França, pude verificar que com os estrangeiros, muito mais batidos na matéria, a coisa funcionava de maneira diferente. Para além de cada qual poder escolher o lugar que quisesse na sala praticamente às moscas, não era preciso esperar pelo intervalo nem ir à casa de banho para esgalhar o pessegueiro - era ali mesmo, à Lagardère. Já se sabe: os castiços dos franceses, toujours en avance...

Já agora: ao contrário do que muito boa gente pensa que sabe, incluindo alguns figurões com alegadas responsabilidades literárias, "Chove em Santiago", célebre verso de abertura de um belíssimo poema de Federico García Lorca, não se refere a Santiago do Chile, mas a Santiago de Compostela. À minha querida Santiago de Compostela, pela qual o poeta e dramaturgo andaluz também se enamorou.
Lorca publicou em 1935 um pequeno livro a que deu o nome de "Seis Poemas Galegos". Em galego o escreveu e o poema mais conhecido do opúsculo é exactamente este:

Madrigal á cibdá de Santiago

Chove en Santiago,
meu doce amor.
Camelia branca do ar
brila entebrecida ô sol.

Chove en Santiago
na noite escura.
Herbas de prata e de sono
cobren a valeira lúa.
Olla a choiva po-la rúa,
laio de pedra e cristal.
Olla no vento esvaído,
soma e cinza do teu mar.

Soma e cinza do teu mar,
Santiago, lonxe do sol;
ágoa da mañán anterga
trema no meu corazón.


Agora para os mais distraídos. O texto supra, como é de norma referir, publiquei-o em Outubro de 2013 no meu blogue Tarrenego! Entretanto, o Teatro Jordão foi finalmente recuperado e reabilitado, como bem merecia. E foi inaugurado no passado mês de Fevereiro. Ali funcionarão, suponho, a Escola de Artes Performativas e Artes Visuais da Universidade do Minho e a Escola de Música do Conservatório de Guimarães.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Madressilva, a mãe de todas as curas

Foto Hernâni Von Doellinger
Duas mulheres com feições e conversa orientais, deito-me a adivinhar. Provavelmente chinesas e aparentemente mãe e filha. Ouço-as antes de as ver. Estão agachadas entre os arbustos do Parque da Cidade, do Porto, em posição de necessidades. Desolho num relâmpago, cheio de vergonha e culpa por ter olhado, e fujo dali para fora aos solavancos o mais depressa que posso. As sapatilhas que herdei do meu filho fazem-me bolhas nos calcanhares e na planta dos pés. Mancam-me. Já é o terceiro par que recebo assim, começo a desconfiar que estou de castigo.
Dia seguinte à mesma hora lá estão elas outra vez. As duas outra vez aninhadas, movendo-se de cócoras pelo meio do restolho como melros e, alto e pára o baile, isso já me autoriza a não desviar o olhar. Isso de se moverem, digo bem, mais o facto de cada uma delas arrastar consigo de vez em quando uma daquelas enormes sacas de supermercado que custavam 50 cêntimos nos dias em que não eram dadas. Entretanto acabaram-se as borlas.  Aproximo-me. "É pala chá. Só pala chá. Só chá!", diz-me a mulher mais velha, incomodada e, parece-me, receosa da minha curiosidade.
Percebo. As duas mulheres com feições e conversa orientais catam flores de madressilva, que já esbordam das sacas de supermercado. Voltam lá todos os dias, vejo-as pelas cinco da tarde, às vezes com reforços, depenando muros anões na zona mais ocidental e marítima do parque, ali pelos arredores do Queimódromo, do Castelo do Queijo e do Edifício Transparente.
Consulto o Dr. Google, que me explica tudo. A flor da madressilva é altamente valorizada na medicina tradicional chinesa, que lhe reconhece propriedades adstringente, antibacteriana, antifúngica, anti-séptica, antiespasmódica, antitumor, diaforética, diurética, expectorante, febrífuga, hipoglicémica, laxante e refrigerante. Usa-se para tratar a asma, o colesterol alto, a congestão linfática, a diarreia, a disenteria, a dor de cabeça, a dor de garganta, erupções cutâneas, febre, gripe, inchaços, infecção bacteriana, intoxicação gastrintestinal, laringite, queimadura do sol, sumagre-venenoso, tosse e úlceras. Se lhe conseguirmos acrescentar as unhas encravadas e o novo coronavírus, como já foi sugerido na China, estaremos então na presença de uma panaceia ao nível da nossa famosa banha da cobra, misteriosamente desaparecida das feiras mas ainda à venda, que eu bem sei.
Por outro lado: a avaliar pela posição em que é apanhada, o mais certo é que a flor da madressilva faça muito mal às costas. E vieram-me à memória os curandeiros, talhadores e endireitas de Fafe e arredores, mulheres e homens honrados e competentes, abençoados por saberes antigos e generosos aliviadores de corpos e espíritos. O bruxo chegou depois...
Não sou dado a chás, tirando o chá de parreira. Mas o caso: a mulher mais velha, sem que eu lhe tivesse perguntado, fez questão de dizer-me, como se estivesse a defender-se de uma acusação, que era "só pala chá". Mas porquê? A coisa também se fuma, será? Hummm!... Vim-me embora com essa pedra no sapato. E era escusado. As putas das sapatilhas já me dão mau andar que chegue.

P.S. - Hoje é Dia Nacional da Luta Contra a Dor.

Dom Quixote que os visse...

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

O poeta Augusto Fera

Fafe tem uma biblioteca municipal. E a Biblioteca Municipal de Fafe tem ou tinha um blogue onde vai ou ia colocando algumas "notícias" a conta-gotas, bagatela para uma terra que não sossega de parir tanto poeta, escritor e historiador com obra feita e publicada. Os livros em Fafe saem ao ritmo dos pãezinhos da Parefa. E isso é bom.
A intelectualidade fafense é um bocado hipócrita e onanista, como quase todas as intelectualidades - incluindo as verdadeiras. As intelectualidades - sobretudo as de imitação - funcionam em circuito fechado. São uma espécie de clube restrito onde os seus poucos membros se incensam e invejam reciprocamente e principalmente se incensam a si mesmos. E cada qual elabora e publicita um conceito geral de notabilidade esgalhado à exacta medida do seu próprio perfil. Lá fora não há mundo. A felicidade suprema está no espelho, sempre à mão de semear. E isso pode não ser mau, embora faça calos, maioritariamente na mão direita.

O poeta Augusto Fera morreu há dez anos, no dia 27 de Novembro de 2012. Durante meio século espalhou a sua poesia pela imprensa local, fartou-se de ganhar prémios e em 2011 publicou o seu primeiro e único livro - "Cruz de Chumbo e Outros Poemas" -, num acto de justiça em boa hora praticado por José Mário Silva, então presidente da Junta de Freguesia de Fafe, que editou a obra.
Confesso: não me revejo na estética da poesia de Fera, demasiado (diria) maneirista para o meu gosto, mas admirava-lhe o contínuo labor na procura das palavras, a intenção de chegar aos clássicos, o esforço, a ingenuidade às vezes, a seriedade na escrita e a honestidade na mensagem. Convenhamos, no entanto, que a minha opinião literária é aqui absolutamente irrelevante, até porque incompetente.
Conheci muito bem Augusto Fera. O homem sábio, simples e humilde. No meu tempo de miúdo e de Santo Velho, maravilhava-me a vê-lo dobrar a esquina do Palacete, em direcção à Ponte do Ranha, quando ele vinha da Fábrica do Ferro. Como é que ele, cego, conseguia? Como é que ele sabia que a esquina estava exactamente ali? Aquilo sempre me intrigou. Diziam-me que ele contava os passos, que via as horas com os dedos. Para mim, não: aquele homem era mágico. Pois se até fazia versos...

O poeta fafense Augusto Fera morreu e, há dez anos, a Biblioteca Municipal de Fafe não lhe dedicou uma única linha. No dia da morte do nosso poeta, o blogue da Biblioteca Municipal de Fafe destacou o Prémio Portugal Telecom de Valter Hugo Mãe. Também está bem.
Augusto Fera não fazia parte dessa plêiade de convencidos da vida que esgota a "cultura" fafense em genialidades de trazer por casa. Augusto Fera era a sério e era povo. Percebo, por isso, o intelectual silêncio à volta da morte do poeta. Um silêncio quebrado, numa honrosa e justificada excepção, pelo blogue Sala de Visitas do Minho, de Artur Coimbra.
Não. O poeta Augusto Fera não era cego. O poeta, não! Outros serão.

Hoje é Dia do Poeta. O texto acima publiquei-o no meu blogue Tarrenego! uma semana após a morte de Augusto Fera, perante a unanimidade silenciosa e o desprezo generalizado da "inteligência" fafense. Repito-o, com meia dúzia de minúsculas adaptações temporais, renovando o meu protesto e a minha homenagem ao nosso poeta. Junto-lhe dois momentos do livro "Cruz de Chumbo e Outros Poemas":

Voz do sangue

Eu sou fuso da mão que fia linho.
Eu sou corda da voz que diz
oubisto.
Eu sou roupa de ver a
Jasus Cristo.
Eu sou malga de sopas de
bô binho.

Danço o vira que espana todo o Minho.
Amo a tia que talha do ar ao quisto.
Bufo ao resto de cântaro com misto
De ervas e sal ardendo em chão maninho.

Eu mesmo acendo rama de oliveira
Quando Jesus me ralha no trovão
Que sobre as minhas telhas tumultua.

Se eu for a sepultar na Cumieira,
Gostava que descessem o caixão
Até ficar mesmo ao nível da rua.

Augusto Fera, "Cruz de Chumbo e Outros Poemas"

Minha terra, meu altar

Do mirífico himeneu
do sonho com a magia
é que Fafe apareceu
como praga de poesia.

Tão atento noite e dia
Deus estava à gestação
que do ventre da magia
Saiu belo sem senão.

Devia ser grande gafe
ou pecado sem perdão
dizer o nome de Fafe
sem ter os joelhos no chão.

Fafe não tem pedras caras
na areia dos ribeirões.
Mas tem pérolas mais raras
nas ostras dos corações.

Nas agras e cerros seus
há tantos dons sublimados
que até parece que Deus
deserdou os outros lados.

Devia ser grande gafe
ou pecado sem perdão
dizer o nome de Fafe
sem ter os joelhos no chão.

Do vale à ganga sidérea
nada precisa de emenda,
porque em Fafe alma e matéria
foram feitas de encomenda.

Nestes dois versos se encerra
a imagem da terra-mãe:
tem o que tem qualquer terra
e o que outra qualquer não tem.

Devida ser grande gafe
ou pecado sem perdão
dizer o nome de Fafe
sem ter os joelhos no chão.

Augusto Fera, "Cruz de Chumbo e Outros Poemas"

A visita de Veneranda Figura 4

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Os cinemas também se abatem

Foto Hernâni Von Doellinger
O cinema foi sempre a coisa mais importante da minha vida até deixar de ser. Creio que a última vez em que entrei numa sala de cinema convencional levava pela mão o meu filho, ou vice-versa, para vermos "O Rei Leão", portanto no Verão de 1994 e lamentavelmente era a versão portuguesa.
Comecei cedo, ainda de calças curtas e a dar uso nas legendas às primeiras letras que trazia aprendidas da escola. Era o tempo do cinema ao ar livre na parada das traseiras dos velhos Bombeiros, na Rua José Cardoso Vieira de Castro, entre os dois palacetes. Debaixo da escadaria do quartel foi montada uma espaçosa e saudabilíssima cabina de projecção toda ela feita em lusalite, e o terreiro enchia-se de cadeiras. O operador era o Porinhos, se não me engano, eu via os filmes da janela do quarto do meu padrinho e tio Américo derivado à falta de idade, depois o cinema acabou sem mais nem menos, a parada lá ficou, como o próprio nome indica, e o barraco, de tão jeitoso, aproveitou-se para arrecadação das tralhas do meu avô.
Ainda em Fafe, mais tarde, tornei-me ferrinho do Teatro-Cinema, andei pelas aldeias com o Pimenta, de catrel e altifalantes, a anunciar os "ma-gní-fi-cos" filmes que, pelo Verão, passavam no campo de futebol e eram tão fraquinhos, frequentei bissextamente o salão inacabado do Martinho da Granja, se a memória não me atraiçoa, e fui uma ou duas vezes ao Estúdio Fénix. Entretanto, levado pela vida, tinha-me virado para Braga - São Geraldo e Teatro-Circo -, e para Guimarães - São Mamede e Jordão. Vi cinema, de forma avulsa e por exemplo, em Vila Real, Figueira da Foz, Amadora, Lisboa, Dublin, Roma, Manchester ou Bordéus, onde de momento estivesse e pudesse.
Instalei-me no Porto e não me escapou um: Águia D'Ouro, Batalha, Carlos Alberto, Charlot, Coliseu, Estúdio, Estúdio Foco, Estúdio 400, Júlio Dinis, Lumière, Nun'Álvares, Passos Manuel, Olímpia, Pedro Cem, Rivoli, Sá da Bandeira, Terço, Trindade, Vale Formoso, Chaplin, em Leça da Palmeira, e até o Vitória, na Circunvalação mas tecnicamente do lado de Rio Tinto, Gondomar.
E agora, que é deles? Onde estão os velhos cinemas do Porto? Fecharam todos? A cadeado? Foram todos ao shopping e perderam-se? Eu sei que também não vou ao cinema há mais de um quarto de século, mas a culpa não é minha: é do meu filho, que cresceu.

(Dezembro de 1895 preparava-se para entregar a pasta a Janeiro de 1896 quando os irmãos Lumière apresentaram o cinematógrafo, que deu origem ao cinema actual - há quem acredite. Na verdade, porém, o cinematógrafo é considerado geralmente como um aperfeiçoamento feito pelos famosos manos franceses ao cinetoscópio do americano Thomas Edison, aliás inventado pelo seu engenheiro-chefe William Kennedy Laurie Dickson, em 1891, que isto na sétima arte anda meio mundo a enganar o outro como na vida real. Porém, outro porém: o cinematógrafo terá sido realmente inventado não pelos Lumière mas pelo também francês Léon Bouly. Bouly perdeu a patente, vá-se lá saber como e porquê, e os Lumière, toujour attentifs, deitaram-lhe as manápulas gulosas e registaram-na novamente e como deles. Muitos anos mais tarde, setenta do século passado, os Lumière, com aquela familiar queda para o negócio, abriram umas galerias muito jeitosas na portuense Rua de José Falcão, incluindo duas salas de cinema e tudo. Foi lá que o meu filho e eu vimos o "Rei Leão". Parece que a coisa vai abaixo qualquer. E está certo, é o Porto no seu melhor. Depois do Pavilhão Super Bock no Palácio, o Lumière dará à luz provavelmente as Galerias Asti Gancia. Tchim-tchim!...)

P.S. - Auguste Lumière nasceu no dia 19 de Outubro de 1862. Era imão de Louis Lumière. E juntos eram os irmãos Lumière. Os tais.

Callas e os homens

Aristóteles nasceu fará exactamente 115 anos no dia 15 de Janeiro do próximo ano, ou então no dia 20 de Janeiro do próximo ano também exactamente - os historiadores ainda não se entenderam quanto ao assunto. Aristóteles era grego e uma grande cabeça. Fundador da escola peripatética e do Liceu, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande, foi talvez o maior e certamente o mais rico empresário do mundo, teve um romance com a famosa cantora lírica americana Maria Callas e casou com Jacqueline Kennedy, viúva de John F. Kennedy, presidente dos Estados Unidos assassinado dizem que por um ex-fuzileiro naval chamado Lee Harvey Oswald, a quem, por causa das coisas, também tiraram a tosse. Fora do seu círculo restrito de amigos, Aristóteles era conhecido como Onassis: Aristóteles Onassis.

Hermógenes era um filósofo grego que viveu nos séculos V e IV antes de Cristo. Filho de Hipónico e de Cálias III, pertencentes à abastada família Cálias da qual viria a sair a soprano Maria, frequentou Platão e são-lhe atribuídas tiradas tão extraordinárias como, por exemplo: "Quem fica deitado pode não cair, mas não aprende a andar" ou "O viajante nunca está só. Anda com ele o desejo de chegar". A crítica da época não lhe reconhecia grande génio.
Se calhar por isso, anos mais tarde, isto é, por volta de 1970, Hermógenes dedicou-se ao futebol. Foi um honesto defesa direito sobretudo ao serviço do seu Rio Ave, onde jogou mais de dez épocas, e ainda teve tempo de passar pelo meu Fafe, em 1982-1983, antes de terminar a carreira novamente em casa, Vila do Conde, por volta de 1986.

Ora bem. Maria Callas, a diva, ou "La Divina", chamava-se María Kekilía Sofía Kalogerópulu. Hermógenes, o nosso, Hermógenes de Oliveira Morim, 69 anos, ex-futebolista e arrumador de carros suponho que ainda no activo, foi há coisa de três anos notícia de polícia. Por outro lado, Gianni Raimondi, uma das vozes da lírica italiana e o tenor que mais cantou com Callas, morreu no dia 19 de Outubro de 2008. Tinha 84 anos.

Conta a lenda que 10

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 18 de outubro de 2022

A pintura do Mané

A pintura do Mané não lhe dizia grande coisa. Asseguravam-lhe que o Mané era um grande artista, falavam-lhe do impressionismo francês, até do realismo, dos jogos de luz e de sombra, dos nus, mas ele não se deixava convencer. O Mané era um gajo porreiro, isso nem se discute, pagava umas cervejolas bem bebidas e desenrascava satisfatoriamente o lugar de defesa-esquerdo aos domingos de manhã, mas, quer-se dizer, era apenas um trolha regular e à beira da reforma. Como ele...

P.S. - Hoje é Dia de São Lucas, padroeiro dos pintores, médicos e cirurgiões.

De cu à mostra, mas optimista

Eu era um pessimista da pior espécie. Não me lembro se de nascença ou se me fiz assim por necessidade. Depois de repente a minha vida ficou tão fodida, tão fodia, que só pode melhorar. E quando dei fé eu já era um optimista que até meto nojo. Actualmente vejo sempre o melhor das coisas, por piores que elas sejam. Por exemplo: no outro dia tive de ser submetido a uma colonoscopia total (o adjectivo "total" é sugestivo, não é?) e guardo daqueles momentos de franco convívio e sã camaradagem a mais grata das recordações.
Noutros tempos, meter a cabeça numa touca de plástico, vestir uma bata de tacha arreganhada atrás e ficar de cu ao léu e meias seria o suficiente para me desmoralizar. Sobretudo por causa do ridículo das meias. Ainda por cima em público e sendo o objectivo da coisa entrarem-me por onde não devem. Mas agora não, até apreciei. A equipa que tratou de mim era completamente feminina, só mulheres, por acaso todas do sexo feminino, se me permitem a redundância antiga e se me estão a perceber. Que mais é que eu haveria de querer, já que estava ali em pelote? Eram três à minha volta, nunca me tinha visto noutra. Deitaram-me e aqueceram-me os tomates, puseram-me a jeito, enfiaram-me a anestesia, pediram-me para pensar em coisas boas e eu pensei, pediram-me para chegar o rabinho um pouco mais para trás e eu cheguei, estava-se bastante agradável, comecei a sentir um formigueiro bom mas têmporas e apaguei-me inteiro nas mãos delas, distraído mas com todo o gosto. Vim a mim passado não sei quanto tempo. Também não sei o que me fizeram entretanto, e podia pensar o pior. Mas não. Agora que sou optimista, gosto de imaginar que aquilo de que não me lembro foi muito, muito bom. Para os quatro.

P.S. - Hoje, 18 de Outubro, o Brasil assinala o Dia do Médico, que em Portugal é a 18 de Junho. E depois venham-me falar de "acordo ortográfico"...

Fazendo pela vida

O médico deu-lhe dois anos. Ele pediu seis. O médico contrapôs três e que não podia dar mais. Ele exigiu cinco, senão nada feito. O médico disse quatro e não se fala mais nisso. Ele, negócio fechado.

O milagre do vinho

Os médicos disseram-lhe que nunca mais poderia beber. E no entanto ele conseguiu beber até ao fim, apanhando carraspanas de caixão à cova. Foi considerado um milagre.

A visita da Veneranda Figura 3

Foto Tarrenego!

domingo, 16 de outubro de 2022

Estou de dieta

Foto Tarrenego!
O que eu gosto mais na dieta mediterrânica, para além da comida propriamente dita, é o facto de se chamar dieta, o que me sossega sobremaneira a consciência, embora me alvoroce o estômago, os intestinos, o fígado e as articulações dos pés, das mãos, dos joelhos e dos cotovelos, para não falar do resto. Mas é dieta e temos de obedecer. Uma dieta feita, paradigmaticamente, à base dos ossinhos da suã da Tasquinha da Alice, em Bobal, Mondim de Basto, como quem vai para as Fisgas de Ermelo, entalados, os ossinhos, entre salpicão caseiro e moiras encantadas e um naco de orelheira para desenfastiar e duas ou três costelinhas e meia dúzia de fatias de toucinho com o sal no ponto e batatas sabendo a terra e olhos de couves geadas pela madrugada e feijão vermelho da leira ao lado e por cima de tudo alho picado e azeite da fartura e do melhor mais um tintinho honesto e de malga para molhar a palavra. Produtos frescos, locais e produzidos em sintonia com os ciclos astrais e os ritmos da natureza, como muito bem preconiza a Unesco. E eu, nestas coisas, respeito implacavelmente a Unesco.

Depois gosto também da denominação ela própria. Património Cultural Imaterial da Humanidade. Gosto da pomposidade das maiúsculas e gosto da palavra "Imaterial", porque, pensando bem, é uma palavra que, não sendo sólida nem líquida, resvala sorrateiramente para o domínio do "Gasoso" - o que, com sabemos todos, confere...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Pão, Dia Mundial da Alimentação e, já agora, Dia Mundial da Coluna, que não vem ao caso.

Assim e assado

- Há dias assim.
- E dias assado?
- Assado? Foi tempo...

Comer com os olhos

Eram dois homens, já na segunda metade da idade. Um deles fica à porta, enquanto o outro entra no restaurante. O proprietário, que o recebe no hall, pergunta-lhe "É para almoçar?" e o homem responde "É para dar uma vista de olhos". O dono do estabelecimento, embora lhe apeteça, não disparata: "Faça favor. Isto não é nenhum museu, portanto não paga para ver."
Um ou dois minutos depois, o homem sai. Olha para o amigo que o espera, não falam, e desandam dali no mesmo passo descomprometido com que tinham chegado. Deixo de os ver. Fico a imaginar que vão a outro restaurante, fazem a mesma cena mas trocam de papéis. Assim, à vez, vão comendo com os olhos e já ficam almoçados. Melhor do que ir mastigar o papo seco de nariz amarrotado contra a montra do talho, como vi uma vez em Fafe.
Nos corredores do Orçamento, em Lisboa, se calhar não sabem: comer com a boca está a sair dos hábitos de cada vez mais portugueses.

De pé, ó vítimas da fome!

- De pé, ó vítimas da fome! - gritou o speaker-cantor. O pavilhão estava cheio mas ninguém se levantou. Era uma fraqueza muito grande...

sábado, 15 de outubro de 2022

Na aldeia do Senhor Costa

Foto Hernâni Von Doellinger
Outubro já vai a meio e o Borda D'Água manda para o mês que vem, quanto aos pomares, estercá-los no crescente, podá-los no minguante e protegê-los das geadas. Plantar cerejeiras, pessegueiros, pereiras e macieiras, no crescente. Na horta, semear agrião, alface, cenoura, couves, com excepção da couve-flor, e brócolos. Plantar batata (nas zonas secas), alho, couve temporã e tremoço. Semear fava, ervilha e, em camas quentes, alface, beterraba, cebola, nabiça, nabo, rabanete e tomate. Semear cereais de pragana, como aveia, centeio, cevada e trigo. Colher azeitona e beterraba. Na adega, verificar as vasilhas do vinho novo. Destilar bagulho para fazer a aguardente. No jardim, estercar covas para a plantação na Primavera de árvores ou arbustos e estacar as plantas contra o vento. Plantar bolbos de flores. Podar as roseiras e plantar novas. Quanto ao gado, transita para o regime seco com feno, palha e grão.
Quer-se dizer: cava fundo em Novembro, para plantar em Janeiro, como recomenda, por seu lado, O Seringador.
E pronto. É este tempo, senhores. O tempo, nabos e tomates, e mais mada. Ou, como dizia o outro na rádio a preto-e-branco: na aldeia do Senhor Costa, assim vai a agricultura. E não falava certamente do Costa do Assento...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Mulher Rural.

Deixei o cego a falar sozinho

Por Matosinhos anda um cego que tem duas curiosas particularidades: é benfiquista e diz palavrões como a puta que o pariu. A cegueira poderá explicar a primeira curiosa particularidade, mas suponho que já não conseguirá justificar a segunda.
Para além de ser pelo Benfica e campeão da malcriadez, o meu cego vende lotarias e ouve as notícias num transístor em altos berros e aqui atrasado, estávamos na paragem de autocarro da Avenida Serpa Pinto, o aparelho falava da Grécia, da tentativa de primavera grega que agitou a Europa durante mais de cinco anos. A reportagem ainda ia a meio, mas o cego, sem que eu lho pedisse, resumiu-me imediata e cientificamente a questão: "Se se fossem mas é foder, filhos da puta do caralho, se querem chupar que chupem piças, era fodê-los, era fodê-los"...
Eu, para não mandar o cego à merda, ia-lhe debitando os números dos autocarros que se aproximavam da paragem, como se estivesse a "cantar o quino", tal qual se dizia em Fafe por alturas do Natal, marcando com milho os cartões escarrapachados em cima das mesas de bilhar do Peludo. Informei-o do 111. "A mim só me interessam o 500 e o 502", respondeu-me, com maus modos, como se a culpa fosse minha. Já agora, culpa de quê? "O 502 passou há um bocadinho, perdi-o por pouco", expliquei eu, a ver se amenizava a coisa. "Há um bocadinho não, que eu estou aqui há um pedaço e ele não passou", atirou-me o cego. Acreditem em mim, por favor: eu tinha chegado à paragem há cinco minutos, o cego chegara há três minutos. Fiquei invisual com a desconfiança e com a falta de educação do homem, mas afastei-me, para não ter de lhe responder torto.
Deixei-o a falar sozinho, literalmente a falar sozinho, porque ele continuou a comentar as notícias, caralho acima, quem os fodesse abaixo, aparentemente virado para mim, imaginando-me ao seu lado, mas eu estava a mais de quinze metros de distância e, confesso, a começar a sentir-me ligeiramente mal com a situação. Não se faz, deixar um cego a falar sozinho.
Reaproximei-me quando chegava mais um autocarro. Um rapazinho avisa o cego, "É o 523". O rapaz confundiu-se, era o 123 da Resende, o 523 da STCP não existe, e o cego, que sabe os autocarros de cor e salteado, aproveitou para dar uma desanda ao miúdo. Vem finalmente o 500 e o jovem, ainda cheio de boas intenções apesar do raspanete, alerta, satisfeitíssimo, "É o 500, é o 500". O autocarro pára e abre a porta. O cego pergunta lá para dentro, ao motorista, "É o 500?", "É o 500", confirma o motorista. Da paragem, corado de vergonha e tristeza, o rapazinho queixa-se ao cego, "Não acredita em mim?", e o cego responde, "Acreditar em quem, caralho, tu até inventas números..."
Não renego o meu fardo judaico-cristão, mas os remorsos passaram-me de repente. Sim, deixei o cego a falar sozinho - e, sabeis que mais, não me arrependo!

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Bengala Branca.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Os ex-colegas, essa pedra no sapato

Foto Tarrenego!
O problema dos ex-colegas. Não é brincadeira. Para um gajo com mais de sessenta anos de idade embora em estado praticamente novo, o problema dos ex-colegas é uma chatice quase tão grande como os calhamaços do José Rodrigues dos Santos se eu os lesse. Imaginem-me: com ex-colegas da minha rua e da escola primária, os melhores de todos, com ex-colegas do seminário, já lá irei, com ex-colegas do liceu que foram para doutores e foi um ar que se lhes deu, com ex-colegas dos Comandos que acham que são muito mama sumae! e eu não sou, com ex-colegas da fábrica de quem tenho tantas saudades, com ex-colegas dos jornais e da rádio que têm lá as suas vidinhas, vejo-me fodido para os aturar a todos, mesmo quando eles não querem saber de mim, o que é regra geral. E quando querem saber de mim, então ainda é pior. O caso do seminário, e eu disse que vinha cá, é absolutamente paradigmático. Para quê? Digmático. Ninguém me mandou para o seminário, fui porque quis, porque queria ser padre, e às vezes ainda quero. A minha mulher sabe disso. No ano em que lá cheguei, éramos 136 crianças, havia um documento de acção psicológica (isto anda tudo ligado) que rezava assim: "Começar é fácil. Recomeçar é de muitos. Chegar ao fim é de heróis. Nesta marcha ascensional é nosso dever caminhar! A empresa é difícil, mas fascinante O Ideal!"...
E há umas certas e determinadas pessoas que acreditam nisto, os supra-sumos que chegaram ao "O Ideal!". Se tivessem ido para os Comandos, esses supra-sumos, sumos sacerdotes, andariam agora por aí de boina vermelha e crachá, eventualmente de G3 a tiracolo se os deixassem, e em vez de melancólicos ego te absolvo diriam esfuziantes mama sumae! Estes rapazes tiveram os melhores mestres do mundo, o padre Fonseca e o padre João Aguiar, para não irmos mais longe, e afinal não aprenderam nada com eles, não perceberam nada da vida.
Porque. Reencontrei-me ultimamente com ex-colegas do seminário que deram em padres. E até gostei, a princípio. Há aquela festa propedêutica, "ó pá, há que tempos, és mesmo tu, estás mais gordo, estás mais magro, está igualzinho, dá cá esses ossos, dá cá essa febras!", como pessoas normais, e depois os meus ex-colegas enfiam no cu um daqueles feijõezinhos milagrosos que lhes dão aquela voz sacrista e falseta, e, magníficos, condescendentes e compassivos, com a superioridade moral dos eleitos, dos exclusivos de Deus, perguntam sempre lá do alto, como se estivessem combinados uns com os outros, "e então, o que é que tens feito?"...
Fico fodido. Fico à rasca. Começo a suar, a gaguejar, não sei o que hei-de dizer em minha defesa. Afinal estou perante um dos que chegaram ao topo do Kilimanjaro e eu nem sequer passei do sopé do Bom Jesus do Monte, onde o Secónego tinha uma casa. Conto o melhor que consigo: "ó pá, tenho sido sobretudo jornalista mas também trabalhei numa fábrica, sou casado há quarenta anos, sempre com a mesma mulher, o que é miserável no meu ofício, porém continuo apaixonado, tenho um filho que é uma jóia e o meu maior orgulho, temos a casa e o carro pagos, damos umas voltinhas para arejar, eu não sei conduzir mas cozinho muito bem, tenho quatro amigos, pendurei a carreira profissional para tomar conta primeiro do meu sogro e depois da minha sogra, e não me lembro se já disse que sou jornalista"...
Mas não chega. Eu sei que não chega! E continuo fodido e à rasca, gago e suado. Eu até acho que a classe dos ex-colegas está muito sobrevalorizada. Parece-me que a maioria das pessoas passa distraidamente ao lado do negativismo, da carga pejorativa que a própria expressão em si encerra. Ex-colega, ex-colegas. Se, por analogia, as pessoas pensarem no que pensam quando pensam em ex-amigo, em ex-amigos, certamente compreenderão o que eu quero dizer. Mas não adianta. Isso não me salva. Os ex-colegas aparecem-me, realizadíssimos da vida, e eu, que sei que sou a merda que sou, só me apetece fugir...

Era assim. Mas aqui atrasado fui a Fafe a um funeral e mudei de táctica. Fui a Fafe, dizia, e esbarrei com um dos meus que deu em padre e que, ainda por cima, estava encarregado do serviço. Conversámos na sacristia da Igreja Matriz, intermediados pelo meu sobrinho Geno. Como de costume, inquirido sacramentalmente "e então, o que é que tens feito?", confessei na mesma o "ó pá..." do parágrafo ali de cima, o "ó pá..." completo, porque tenho este defeito de informar, mas depois acrescentei perguntando também, para livração da minha alma:
- E tu? Nunca fizeste nada, pois não? Quer-se dizer, és padre, não é?...

Em todo o caso e nos tempos que correm: como diria a minha mãe, que é sábia mas também queria um filho padre, "mais vale não fazer nada do que fazer asneiras"...

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Portugal gaiteiro e excursionista

Foto Tarrenego!
O meu avô da Bomba jurava que nunca pôs nem nunca na vida poria pé na praia. Que era muito sol ao desamparo, areia demais para a sua camioneta. Queixava-se: a água estava constantemente molhada e, ainda por cima, salgada. O meu querido avô era "uma pessoa muito doente" e precatada quanto ao sal. Portanto, o sol e o sal. "Se ainda ao menos houvesse a sombrinha de uma árvore", dizia, molageiro, aí que contassem com ele nem que fosse só para a soneca da tarde. Mas o meu avô era um exagerado, um mentirosinho sem tenção de ofensa - e aquela jura eu sabia que era a mangar.
Para o avô da Bomba, como para todo o fafense que então se prezasse, a palavra praia queria dizer Póvoa de Varzim. Exactamente. Ir à praia e ou ir para a praia (conceitos que importa diferençar) era ir à Póvoa ou ir para a Póvoa, via Famalicão. E no entanto o meu avô conhecia também satisfatoriamente os longínquos areais de Ofir, da Figueira da Foz e da Nazaré, o que já não era brincadeira! E de onde é que lhe vinha esta extraordinária mundivivência, este cosmopolitismo fafense tão antes do tempo? Pois bem: o meu avô organizava excursões - dois dias ao Alto Minho, com pernoita em Viana do Castelo, dentro do autocarro, no Largo da Agonia a esbordar de camionetas e parolos como nós, e umas senhoras cá fora a fazerem café de cafeteira em máquinas a petróleo, à luz do petromax até que o sol nascesse. Três dias a Fátima, pelo 13 de Maio. Ano sim, ano não. Partida e chegada no quartel dos Bombeiros, sempre, então na Rua José Cardoso Vieira de Castro, ao lado da garagem do Zé Bastos e entre os dois palacetes. Com as estradas que tinha, Portugal era naquele tempo um país imenso. Ir de Fafe aos Arcos de Valdevez ou a São João da Madeira, por aquela altura, era como embarcar por engano numa expedição de Júlio Verne ao fim do mundo. Agora imaginem uma viagem praticamente de circum-navegação com escala no Portugal dos Pequeninos e no Mosteiro da Batalha, e com procissão de velas e tudo. Era um verdadeiro acontecimento, um marco de vida!

O meu avô era um videirinho, já aqui contei. Tinha casa e salário de quarteleiro dos Bombeiros, não sei se era muito ou pouco, mas não perdia oportunidade de fazer dinheiro extra no que lhe estivesse mais à mão: o tasquinho na cave do quartel, os tremoços, os bolinhos de bacalhau e o vinho na Festa da Bomba, a aguardente e o vinho, sempre o vinho, nas sessões nocturnas do cinema ao ar livre na parada das traseiras, muito antes de a sétima arte descer ao campo de futebol, a banca de sapateiro por baixo das escadas que subiam para o salão de festas, umas refeições especiais encomendadas por um certo grupo de amigos, respeitosos admiradores das mãos de ouro da minha avó para a cozinha. Uma vez há mais de cinquenta anos o papa Paulo VI veio a Fátima e pouca gente tinha televisão em casa. No salão dos Bombeiros foram montados um projector e uma tela para a transmissão em directo e em "ecrã gigante", com entradas a pagar. A sala encheu, o dinheiro da receita revertia naturalmente para a Associação Humanitária, mas de certeza que o avô também conseguiu sacar dali algum, nem que fosse a vender rebuçados para a tosse ou cascas de amendoins...
Ora é aqui que encaixam as excursões, que os candidatos a excursionistas pagavam em suaves prestações semanais desarriscadas nuns cartõezinhos que o meu avô mandava fazer na tipografia. Isto para aí durante um ano. O avô da Bomba fazia a cobrança aos sábados ou domingos de manhã, não sei precisar. Ia de motorizada e às vezes levava-me, primeiro numa Florett e depois na Lambreta, uma Vespa azul, antes e depois de haver sentidos proibidos nas ruas de Fafe. Para o meu avô nunca houve, o caminho foi sempre o mesmo e tinha sempre razão quando lhe apitavam ou gritavam para não ir por ali. Eu, nem pio...

(A Florett tem muito que se lhe diga em Fafe, era um veículo de pecado, mas por ser verdade aqui declaro que o meu avô nunca foi dado a essas actividades por assim dizer extracurriculares. A Florett calhou-lhe, e só isso...)

Mas as excursões. Eram viagens épicas, cheias de cheirinho bom a merendeiro e muitas paragens para "mudar a água às azeitonas", enjoos e borracheiras de caixão à cova. Cheiravam também a gomitado, a naftalina, a sapatos novos, a botas ensebadas de fresco, a chulé, a urina, a tabaco, a suor, a desodorizante Lander, a perfume barato, a brilhantina, a laca, a mundo. A coberto da noite soltavam-se uns traques enfeitados com risinhos solertes que ajudavam à festa. Era uma convívio muito grande. A camioneta avariava, pessoas perdiam-se. Cantava-se o "Treze de Maio", o "Queremos Deus" e "O carrapito da Dona Aurora". Rezava-se o terço ao passar a Ponte de Fão, sobre o rio Cávado, porque constava que a estrutura estava a cair de podre. Morreríamos todos muito bem - iríamos para o céu, se Deus quisesse, embora o grupo excursionista do meu avô se chamasse, com todo o mérito, "Grupo Excursionista "Os Arrebenta Pipas" - Fafe", assim tal qual, num pano hasteado por dentro no vidro traseiro da camioneta. Na Póvoa as mulheres arregaçavam saias e combinações, os homens arregaçavam calças e ceroulas e os miúdos ficavam em cuecas ou em pelote, consoante a idade, e todos se agarravam com quanta força tinham à grossa corda que ligava o mar ao areal, brincando aos sustinhos e trambolhões de felicidade histérica ali no sítio onde o mar enrola na areia, que também se cantava.
Sei disto tudo porque estive lá. Que me lembre, fui uma vez a Fátima e outra ao Alto Minho, esta ainda com o meu pai. O meu irmão Lando ainda não tinha nascido. Eu, o Nelo e a Nanda queríamos ir sempre, mas não podia ser. O meu avô não dava borlas, nem aos netos. (Na verdade, o meu avô não dava nada a ninguém. Isto é: dava os bons-dias mas pedia recibo com número de contribuinte.) Ia portante só um, e no colo da mãe, mais do que isso seria prejuízo.
O meu pai, que gostava de fazer rir a minha mãe, dizia aos dois que ficavam: "Não é preciso chorar, vós também ides. Na sombra..."

Tanto relambório para chegar aqui: herdei do meu avô o horror à praia em dias de sol e gente, mas tenho a árvore que ele reclamava. Uma árvore na praia. Encontrei-a aqui em Matosinhos, mesmo ao pé da porta, encostada à esplanada do Lais de Guia. Passo por lá todos os dias e vejo o avô à sombrinha, com os pés mansamente enfiados na areia morna. Gosto de o ver assim, peço-lhe a bênção e beijo-lhe a mão. Sossego as saudades. O avô da Bomba era molageiro e videirinho, forreta do piorio, mas é meu.

P.S. - A 13 de outubro de 1930, o bispo de Leiria declarou dignas de crédito as aparições e autorizou oficialmente o culto de Nossa Senhora de Fátima. Paulo VI foi o primeiro Papa a visitar Fátima, no dia 13 de Maio de 1967.

Conta a lenda que 9

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

David Alves ensinava

David Alves ensinava: o melhor guarda-redes do mundo era Clemence, o inglês. Nem o checo Plánicka, nem o russo Yashin, nem o alemão Sepp Maier, nem outros que tais - antes, durante e depois. Era Ray Clemence, que nos anos setenta e oitenta do século passado brilhou ao serviço do Liverpool e da selecção inglesa. E o David sabia do que falava: ele próprio tinha atrás de si uma interessante carreira como guarda-redes, posto que de mais recatados recursos. Sendo de Fafe, fizera a sua formação nos juniores do FC Porto, passou algumas temporadas no Paços de Ferreira, se não me engano, e ainda o vi jogar pelo Desportivo das Aves, creio que no tempo em que por lá andava também (ou andou pouco tempo depois) um famoso defesa central chamado Kentucky, que só me lembrava os Definitivos, pecados velhos. Por outro lado, o David Alves foi o primeiro José Mourinho que eu conheci. Isso mesmo. O David era inteligente, culto e visionário, carismático, tinha mundo, era um estudioso e metódico transgressor, promovia a acção psicológica: com um par de décadas de avanço, inventou em Portugal aquilo que hoje em dia é corriqueiro em todo o lado. Pensador por natureza, pedagogo, ele passava o futebol ao papel, e do papel passava o futebol ao campo. E no campo era bonito de se ver. O treino era ciência, os treinos eram aulas - ele levava-me muitas vezes para assistir. E era uma prazer ouvi-lo. Se não me engano, o David começou a carreira de treinador no Maria da Fonte, da Póvoa de Lanhoso, e eu pressentia que ele iria longe, muito longe, primeira divisão, estrangeiro até. A vida, porém, não lhe deu tempo para levantar voo...
Por aquela altura, o meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente um frangueiro de créditos firmados. Era uma acrobata voador, um contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até - guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos, voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca, pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola, ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo, era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para explicar. Para ensinar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático, sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos grandes jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu em 2020, tinha 72 anos. Lembrei-me dele e deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, numa idade em que devia ser proibido morrer. O David morreu e ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...

Já disse. Qualquer dia, quando eu estiver pronto, espero escrever a sério sobre David Alves, o nosso David Alves, guru natural e sem querer de uma ou duas gerações de jovens fafenses. Fomos uns sortudos!

A visita da Veneranda Figura 2

Foto Tarrenego!

terça-feira, 11 de outubro de 2022

E se o fim do mundo for isto?

Matosinhos à tarde. Sol que era um consolo. Puxado pela trela do pequeno cocker, o casal descia a rua, a minha, em direcção ao mar ali à beira. Eis senão quando, porventura desarranjado pelo strogonoff de vitela de primeira ou pelo leite-creme que lhe serviram ao almoço, o aflito canídeo arriou as calças e cagou ali mesmo em pleno passeio, com evidente alívio pessoal e grande satisfação dos babados papás. Acabada a obra, a madama, higiene e civismo acima de tudo, foi à carteira e retirou um lenço de papel de um branco imaculado, abriu-o, ao lenço casto, provavelmente perfumado, e voltou a dobrá-lo, liturgicamente, agora apenas em dois, baixou-se, quase que me pareceu que se benzia, e limpou o cu ao cão. Isso, limpou o cu do cão. Depois amarrotou o papel e lançou-o para junto do saralhoto. E ali ficou o serviço. No meio do passeio. Do meu. E lá seguiram os três para o mar e para o sol, dois deles puxados pela trela.
A autarquia agradece. Faz colecção. No brasão de Lisboa figuram corvos, no de Matosinhos deveriam desenhar saralhotos. A cidade de Matosinhos, para além das muitas outras coisas muito boas, é isto: não há passeios que cheguem para tanta merda de cão. E não é só Matosinhos, embora Matosinhos abuse. E a culpa não é do cão.

Volto ao enternecedor quadro urbano que pincelei o melhor que pude e soube no longínquo Outubro de 2011, então no meu blogue Tarrenego! e sob o acutilante título "Matosinhos, sol e saralhotos". E volto, uma década depois e por esta mesma altura do ano, porque a coisa piorou drasticamente, está que não se pode. Eu não sei qual é actualmente a situação em Fafe a este respeito, mas aqui em Matosinhos é merda por todos os lados, se me dão licença, e há quem se convença que são ornamentações de Natal. Não são! São mesmo saralhotos de cão, cada vez mais e cada vez maiores, saralhotos nojentos que tomaram conta dos passeios e das ruas, já não se pode pôr pé fora de casa. A coisa alcançou proporções dramáticas. Pandémicas. Dantescas. Apocalípticas. É caso de calamidade pública, já vem tarde o alerta vermelho de colapso iminente. É o fim do mundo, pelo menos em Matosinhos, e eu nunca na minha vida pensei que o fim do mundo fosse este monte de merda.
Muitos temem que Matosinhos desapareça do mapa, num futuro mais ou menos próximo, derivado ao aquecimento global, ao degelo e à subida do nível das águas do mar. Néscios! O fim, o afogamento de Matosinhos é agora, está a ser, submersa a cidade num irreprimível turbilhão de saralhotos de cão. E - insisto - a culpa não é do cão.

O cãodutor, o pendura e o fotógrafo penetra

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Quando o futebol não era para cátias vanessas

Os nomes interessam-me muito. "Diz-me o teu nome, dir-te-ei quem és" - acredito neste ancestral provérbio chinês que acabo agora mesmo de inventar, e não no outro, bem intencionado e de autor incerto, "Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és". Millôr Fernandes explicava melhor do que eu o meu ponto de vista: "Judas andava com Cristo. E Cristo andava com Judas". Estamos percebidos?
Portanto, dou-me ao trabalho dos nomes. Quando eu era miúdo marcava no jornal os nomes dos jogadores de futebol que me pareciam esquisitos. Ainda não tínhamos chegado à babel que agora é, mas o Marreca, o Camelo, o Cansado, o Repolho, o Chouriça, o Torto, o Maneta, o Sacristão, o Mouco e o Aguardente enchiam-me de alegria as segundas-feiras. Também gostava muito do Araponga, do Alhinho e do Manaca. O Penteado e o Careca já me apareceram fora de tempo, mas isto é tudo nomes só por exemplo.
Com os nomes sublinhados eu fazia equipas que jogavam umas contra as outras, num campeonato de partir a moca, porque eu imaginava os jogadores exactamente conforme o nome, não sei se estão a ver o Marreca a driblar o Sacristão e o Repolho a entrar de pé em riste ao Camelo.

(Não é preciso ir mais longe: sou de Fafe, uma terra que deu ao futebol e ao mundo nomes tão extraordinários como Ricoca, Riga, Piré, Rates, Estafete, Mulato, Preto, Zebras, Caganito, Trolas, Feira Velha, Machica, Esparrinhento, Pescoça, Ferradeira, Mocho ou Mofo. Nomes que são uma primeirinha, do tempo em que o futebol era desporto e jogado por gente como nós. Uns antes, outros depois, estes e mais, foram e ainda são os meus ídolos.)

Sempre apreciei particularmente os jogadores de um nome só. Mas nome de barba rija, se me faço entender. O Freitas, o Gomes, o Antunes, o Meneses, o Martins, o Ferreira, o Oliveira, o Marques, o Almeida, o Lopes, o Carvalho - eram nomes que me punham em sentido. E se os nomes tivessem bigode farfalhudo, inclusive nas sobrancelhas, então ainda melhor. Nomes assim davam-me segurança, transpiravam autoridade, infundiam Respect. O agente Freitas, o chefe Gomes, o comissário Antunes, o nosso cabo Martins, o sargento Almeida, o capitão Carvalho... - estão a acompanhar-me?

Mas já não há nomes assim da boa e velha casca-grossa, e os bigodes de antanho foram de momento substituídos por falsas barbas jihadistas em caras de sobrancelhas depiladas. Temos agora em campo o Paulo Vítor, o João Mário, o Paulo Bernardo, o André Paulo, o Mário Rui, o Rui Miguel, o João Paulo, o Paulo Jorge, o João Afonso, o Rúben Tiago, o Cristiano Ronaldo. Enfim, cátias vanessas.

Eu trigo-me, tu trigas-te, ele triga-se

Foto Hernâni Von Doellinger
Biju, papo-seco, carcaça, molete, pada ou trigo, consoante a região de origem e a idade de cada qual. Assim se chamava e parece que ainda se chama ao pão pequeno, arredondado, regra geral de risca ao meio e feito à base de farinha de trigo. Em Fafe aprendi-o biju e trigo, sobretudo trigo, e é o que me tem bastado até hoje: vou à padaria e peço cinco trigos, se faz favor. Riem-se e eu acho muito bem, porque rir é porreiro, desopila, embora também possa ser sinal de ignorância e estupidez natural. Em Fafe aprendi, ainda por cima, o verbo trigar - ou, talvez melhor dizendo, trigar-se -, que, naquele pedaço baixo-minhoto rural e de entranhável confluência galega, Monte Longo e Basto, significava acanhar, constranger, envergonhar, intimidar, embaraçar, coibir. Dizia-se, por exemplo, "Ande lá, não se trigue, tire mais um bocadinho de presunto!", ou então, "Nem consegui dizer ao que ia, triguei-me...", e eu achava um piadão àquilo. Ao presunto, quero dizer.

domingo, 9 de outubro de 2022

Adeus, até ao meu regresso

Foto Tarrenego!
Fernando Pessoa inventou e patenteou o aerograma. Exactamente esse Fernando Pessoa, o da "Mensagem" e dos heterónimos - se não sabiam, ficam a saber. O aerograma era uma carta sem envelope e andava de avião. Escrevo era e andava porque não sei se ainda há aerogramas. Se há, são fáceis de reconhecer: os aerogramas são cartas levezinhas e contorcionistas que se dobram e fecham sobre si mesmas. É procurar nos circos.
O aerograma foi um enorme sucesso durante a Guerra Colonial. Era o meio de comunicação preferido entre as famílias cá na então chamada metrópole e os militares enviados lá para o então chamado Ultramar, para o campo de batalha do regime. O aerograma matava saudades entre Portugal e África. Mas também inventava amores, alimentava namoros, alcovitava casamentos. Contava histórias.
Em Fafe, os aerogramas eram vendidos no palacete do Grémio da Lavoura, onde hoje se instala o Arquivo Municipal. Entrava-se pela porta das traseiras, e está certo, porque a guerra era uma vergonha e as vergonhas devem ser escondidas. Eu ia comprar aerogramas para a Mila Tripa, que se tornara madrinha de guerra do soldado Valentim que eu não conhecia. Nem ela. A Mila trabalhava na Fábrica Alvorada e era como se morasse connosco, era da família a bem dizer, uma espécie de tia e irmã mais velha, mulher extraordinária que o tempo me obrigou a admirar e respeitar cada vez mais.
Os aerogramas eram oficialmente grátis e já não me lembro quanto é que custavam realmente. Que se segue? Aerograma para lá, aerograma para cá, fotografia para cá, fotografia para lá, e poupando nos pormenores, a Mila e o Valentim passaram naturalmente a namorados e noivaram por correspondência. O soldado Valentim deixou as pernas na guerra, mas voltou homem inteiro e bom. Ele e a Mila casaram. E foi um final feliz.

Noutros casos, não. Às vezes os aerogramas não vinham. Chegava um telegrama. Um telegrama e a seguir um caixão. Vi disso em Fafe naqueles anos cinzentos. Apesar da meninice, vivi-o e senti-o profundamente. Vezes demais. Trinta e sete militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar. O funeral do Zeca Lopes - que era dos nossos, da nossa rua - marcou-me para toda a vida. Creio que há coisa de trinta anos escrevi para a rádio nacional uma crónica a pretexto deste episódio que me persegue, mas não sei dela. E assim não me resolvo.

P.S. - Hoje é Dia Mundial dos Correios. A foto pertence ao arquivo pessoal do pára-quedista fafense Álvaro Magalhães, meu cunhado.

O homem de licra e o boião perdido

Estão a ver esses maratonistas bissextos mas cheios de intenção que treinam aos domingos de manhã artilhados com todos os matadores, como por exemplo aquele cinto tipo canivete suíço onde acomodam boiãozinhos de várias cores e feitios, barras energéticas, bananas, ananases, pepinos, couves-galegas, sandes de marmelada com tulicreme, tremoços, caldo de nabos, as chaves de casa, do carro, do totobola e do euromilhões, um par de algemas, um bastão extensível, lingerie de senhora e um spray de pimenta forte? Estão a ver? Pois era um desses com um daqueles.
O homenzarrão de calções de licra pelo joelho passou por mim no meu Passeio Atlântico, em Matosinhos, e naquele exacto momento despencou-se-lhe do extraordinário cinto multifunções um dos frasquinhos de plástico. Aos meus pés. Eu, que só quero ajudar, gritei "Olhe, caiu-lhe um boião!", vergando-me para apanhar a garrafinha e levá-la ao dono, e bem me custou. O superatleta, talvez apenas cinco metros à minha frente, ouviu-me, sempre correndo, virou levemente a cabeça e sobretudo o braço direito num gesto redondo e grande, creio que metendo-nos no mesmo saco a mim e ao vasilhame perdido, para tonitruar, desportista até mais não:
- Que se foda!...
E lá foi para casa assapar na mulher e comer cinco frangos de churrasco sem picante em somente 1h43m36s, tudo incluído.

P.S. - Hoje é Dia do Atletismo. No Brasil.

Crocodilos no Jardim do Calvário

Foto Hernâni Von Doellinger O Jardim do Calvário, em Fafe, recebe a partir de amanhã um exposição de dinossauros . E isso é porreiro. Quinze...