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sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Pardentro, pardentro! Já tocou!

Foto Hernâni Von Doellinger

Alegria, alegria a sério era aquilo: chegar à escola e a "empregada" mandar-me embora. Ordenava, porque naquele tempo as "empregadas" é que mandavam nas escolas primárias, repito, ordenava: - Vai já para casa, diz à tua mãe que a senhora professora está doente. E ordenava com o braço estendido e no fim do braço estendido tinha uma mão estendida com um dedo estendido que não admitia discussão e queria dizer "rua!"...

(Também poderia querer dizer "Salazar! Salazar! Salazar!", mas sem dedo. Naquele tempo, insisto, as "empregadas" é que mandavam nas escolas. Mandavam nos alunos, mandavam nos pais e mandavam nos professores. Mas mandavam tanto na escola como na rua - o melhor era fugir-lhes. Lembro-me especialmente de uma "empregada", a Dorzinhas, se não estou em erro, que vim a conhecer na Escola da Feira Velha e que era a verdadeira delegada escolar de Fafe. A seguir ao presidente da Câmara, ao comandante da Legião Portuguesa, ao regedor de pistolete à cinta e eventualmente ao Miguel Cantoneiro, a Dorzinhas era a autoridade local. Parece que a estou a ver, estatura meã, seca de carnes, morena, cabelo curto, despachada de pernas e de boca, severa, especialista em orelhas e cachaços, com todo o ar de solteirona, e se calhar não, e às tantas nem se chamaria Dorzinhas e era uma excelente pessoa.)

Mas então, rua! O coração rebentava-me pela boca mal saía o portão, aos gritos e aos saltos - Não há escola!, não há escola!, não há escola!, Rua Montenegro fora, enervando desnecessariamente o pobre Baptista do Asilo, que desatava às cabeçadas contra o gradeamento carcerário, e eu festejando efusivamente a dor de barriga da professorinha, dando a boa nova aos colegas retardatários, que vinham ao contrário e faziam logo ali meia-volta-volver e também saltavam e gritavam - Não há escola!, não há escola!, não há escola!...
(Alegria ingénua, pura, intensa, física. Era evidentemente uma manifestação de profunda catarse, embora eu na ocasião não o soubesse, porque ainda não tínhamos chegado a essa palavra, catarse. "Não há escola!, não há escola!, não há escola!..." era de certeza a antítese do "Pardentro, pardentro! Já tocou!" que gritávamos, em dias menos afortunados, desgostosos mas sempre aos saltos, em anticlímax, mal a sineta anunciava o fim do recreio e a hora de voltar à sala, antítese, estou em crer, mas eu também não fazia ideia, também ainda não tínhamos chegado a essoutra palavra, nem tão-pouco a anticlímax, que me lembre, mas foi para aqui que me deu hoje...)
Não há escola! Para trás, que se faz tarde! Virávamos costas ao casarão da sopa, passávamos a Casa de Santa Zita, que caducou, a Cafelândia, que é um banco, a Rosindinha Catequista, que desapareceu, o Largo, que estreitou, a Loja Nova, que morreu de velha, o Peludo, que acabou, o Cinema, que é outra coisa, a Aurorinha Maia, que era um vulcão e mudou de ares, a Padaria, que se foi, a Quiterinha, que é só memória, as Grilas, que Deus tem, o Funileiro, que já não há, quer-se dizer, alarmávamos a vila inteira - Não há escola!, não há escola!, não há escola!, eu chegava a casa, no Santo Velho, esbaforido e feliz, e a minha mãe, por tradição, enfiava-me logo à entrada duas ou três galhetas derivado àquele "espectáculo todo" e "para aprender". A nossa mãe era, como agora se diz, uma mãe muito táctil.

Aqui que a criançada não nos ouve, a verdade é esta: melhor do que ter escola (porque, agora a sério, escola é bom!), só mesmo não ter escola. Ao longo da minha vida aconteceram-me outros momentos extraordinários, episódios marcantes, memoráveis, como, por exemplo, o nascimento do meu primeiro pentelho ou a descoberta do tesão, mas, palavra de honra: nada se compara com aqueles dias gloriosos em que chegava à Escola Conde Ferreira e me mandavam para trás. Nada. E quem mos dera outra vez, esses dias de antigamente, embora Fafe já lá não esteja...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Educação.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Ser pobre é perigoso e pode até ser fatal

Ser pobre é fodido. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é apenas título de jornal, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas de pele e osso. O jornal Público anunciava no tempo da troika e de Passos Coelho: os "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Vejam bem o que se escrevia e escreve em Portugal e já vamos no século vinte e um, o tal que nem deveria existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles. Os pobres não são leitores do Público.

Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo, amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante, porque a burguesia é muito dada a certas e determinadas promiscuidades. E a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados que em dias certos batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Pediam-nos a nós, porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que eles.

Sei muito bem como tudo isto já funcionou em Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974, lembram-se? E era desde os bancos da escola - da Escola Primária - que se aprendia, na carne, e com a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha para ir comer uma sopinha. Pediam.
Exactamente: a sopa e a senha. Naquele tempo - no tempo em que os rapazes não se misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os pobres -, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali servia-se uma sopa. Assim era na minha Escola Conde Ferreira. Era só atravessar a estrada, mesmo em frente.
Para terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha, que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco feito pelo professor armado em médico. Aqui há anos sugeri que o Governo de Pedro Passos Coelho copiasse tão peregrina ideia para o seu tempo: um carimbo na testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do Estado saiba imediata e inequivocamente quem pode comer a sopa.
Claro que já então - no antes do 25 de Abril de 1974 que de verdade existiu - havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade copulativa. E só peço que, quando chegar a minha vez, quando me vierem entregar a minha misericordiosa dose de "alimentação, vestuário e medicamentos", façam o favor de me deixar também os caixotes de cartão. É que as noites estão cada vez mais frescas.

Para quem não sabe ou não se lembra. No casarão onde era servida a sopa às crianças pobres da escola de Fafe, em condições sem condições nenhumas, funcionaram também, que me lembre e não sei se coincidindo, o centro de saúde e os serviços municipalizados de água e electricidade. Fui lá uma vez, para ver como era. E não gostei.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...