Mostrar mensagens com a etiqueta jornalismo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta jornalismo. Mostrar todas as mensagens

sábado, 3 de maio de 2025

Quando me mandaram tramar Sócrates

Ano de 2004. O Presidente da República Jorge Sampaio despede o primeiro-ministro Pedro Santana Lopes, por indecente e má figura. Eleições legislativas são antecipadas e marcadas para 20 de Fevereiro de 2005. José Sócrates é o novo líder do PS e da oposição. Vai a votos. Durante a pré-campanha e campanha eleitoral, critica Santana Lopes, que se recandidata pelo PSD e promete não aumentar impostos.
O meu jornal manda-me "tramar" Sócrates. É preciso ligar-lhe imediatamente e perguntar-lhe se, caso ganhe as eleições, vai subir os impostos. Mas que pergunta inteligente! Que armadilha bem montada! Pincéis desta marca sobravam sempre para mim. Como já aqui contei, as pessoas de bem, ou as pessoas de mal que faziam questão de uma fachada de bem, recusavam-se a falar com o 24horas: tinham consciência de que, se abrissem a boca, tudo o que dissessem poderia ser usado contra elas. E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para saber as horas, haveria de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha e espalhávamos a merda. Dito de outra forma: as pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. Por outro lado havia quem fizesse tudo para aparecer.
Portanto o meu jornal manda-me "tramar" José Sócrates. É só ligar-lhe, a ele que nunca atende o 24horas e que escorna os jornalistas em geral por uma questão de princípio. Ligo, ligo, ligo, o dia inteiro. E nada e nada e nada, o dia inteiro. Ao pôr-do-sol tento o inimaginável truque, o long shot, como Lisboa gosta de me dizer e eu parto-me a rir: marco o número de Pedro Silva Pereira, o braço-direito de Sócrates, e sai-me do outro lado o Sócrates inteiro e desconfiado, num por acaso que me enche de adrenalina. Identifico-me, ele vai desligar de seguida, peço-lhe que não e faço-lhe a pergunta de um milhão de dólares: - Se vencer as eleições, se for para primeiro-ministro, vai subir os impostos?
José Sócrates não me manda àquela parte, mas podia, que eu não lhe levaria a mal. Ainda assim, empertiga-se, serigaita-se, despeita-se, esganiça-se e responde-me agressivamente: - Mas quem é que você é? E quem é que pensa que eu sou? Isso é uma pergunta ridícula. Acha mesmo que eu lhe vou responder? Sei muito bem o que quer, mas daqui não leva nada. Não lhe respondo. Acha que eu sou um principiante? E o senhor não tem nada de útil para fazer?...
Tenho. E faço. "Reformulo" e ponho pó de talco na pergunta: - Se o Senhor Engenheiro for o próximo primeiro-ministro, posto que ganhe as eleições, vai subir os impostos?
Sócrates quase que rebenta. Discutimos mais uns três minutos, tempo de um assalto no boxe, um a bater no ceguinho, o outro a agredir o invisual, eu não sabia que sabia discutir assim com cabeçudos, e ele desliga.
Saio dali exausto, nervoso e contente com a discussão. É ainda a adrenalina a mexer comigo. Geralmente o que (não) consegui é mais do que suficiente para ser a capa inteira do meu jornal no dia seguinte, em letras garrafais: "Sócrates entalado pelo 24horas" ou "24horas entala Sócrates" ou "Sócrates não responde ao 24horas" ou "Sócrates tem medo do 24horas" ou "24horas assusta Sócrates" ou.
Apresso-me a ligar para Lisboa. Conto a minha façanha, espero pelos parabéns. O chefe critica-me, irritado, "A resposta do gajo é inaceitável!", engulo em seco e explico ao chefe "Olha, foi o que eu disse ao gajo, que até ia da tua parte e que tu nunca na vida irias aceitar uma resposta assim, e que portanto ele que me dissesse mas é o que tu queres que ele diga, que até já tens o título feito e tudo, mas não adiantou..."
O meu textinho saiu a uma coluna numa página interior, provavelmente par. Do assunto da manchete desse dia não me lembro. Quanto a José Sócrates, por aí anda...

P.S. - Publicado originalmente no dia 18 de Maio de 2020, no meu blogue Tarrenego! José Sócrates ganhou as eleições em questão, sacando a primeira maioria absoluta para o PS. O resto é o que se sabe e o que mais virá a saber-se. Ou não. Hoje é Dia Internacional da Liberdade de Imprensa.

terça-feira, 22 de abril de 2025

António Rebordão quê?...


Uma vez, há catorze ou quinze anos, eu tive a sorte de almoçar com o escritor António Rebordão Navarro. Eu e mais três amigos e velhos camaradas de ofício, dos jornais, num acidental e feliz reencontro à beira-Douro, lá na Ribeira de Gaia. Falámos sobretudo de banalidades risíveis, como convém à mesa, mas era fatal chegarmos aos livros. Meti conversa, como quem não quer a coisa:
- Sabe que fomos praticamente vizinhos durante alguns anos? O senhor doutor ainda mora lá para a nossa Foz?...
O senhor doutor era para mim senhor doutor porque Rebordão Navarro era formado em Direito e chegou a exercer de advogado e de delegado do Ministério Público, antes de se entregar de corpo e alma à escrita, como ficcionista, poeta e editor. Já quanto à resposta, às respostas que eu, molageiro, lhe pedia, disse-me que não e que sim. Que não sabia que fôramos vizinhos, que aliás não me conhecia de lado nenhum nem isso lhe fazia falta, mas que realmente continuava pela Foz, embora já não na Praça de Liège.
Porém era ali que eu queria chegar. Com esta minha notável capacidade para fazer figuras tristes, que já então se manifestava exuberantemente, eu estava mortinho por demonstrar mais uma vez quão sólido é o cuspo com que argamasso os meus pindéricos alicerces culturais. E acrescentei, todo vaidoso:
- Sabe, eu tenho o livro, tenho "A Praça de Liège". Se soubesse que me ia encontrar com o senhor doutor, até o tinha trazido para que me fizesse o favor de uns sarrabiscos, de um autógrafo. Tenho o livro, está lá em casa...
- Ai tem o livro? Mas eu escrevi mais livros, escrevi para aí uns catorze... - cortou Rebordão Navarro, sem disfarçar o sorriso malandro como o arrozinho de feijão e legumes que lhe acompanhava os bolinhos de bacalhau com que se deliciava.
A minha primeira reacção foi largar o meu habitual "Eu sei!" com que tento sair das enrascadas em que por mania me meto, e recitar ali mesmo, de cor e salteado, da trás para a frente e da frente para trás, por ordem alfabética e depois por ordem cronológica, os outros treze títulos do reputado autor que tinha à minha frente de faca em punho, mas a verdade é esta: eu só conhecia "A Praça de Liège". Optei, portanto, por tornar pública a minha segunda reacção, que também me saiu uma boa merda e que foi "Pois faço ideia, mas lamentavelmente não tenho acompanhado a carreira do senhor doutor"...

"A Praça de Liège" foi um sucesso tremendo aquando da sua publicação, em 1988. Era o livro da moda (pois se até eu o comprei!) e ganhou o Prémio Literário Círculo de Leitores. Na altura em que me encontrei com o autor, contou-me o próprio, no Círculo de Leitores já não sabiam quem ele era, quem era o escritor António Rebordão Navarro. Alguém do Círculo contactou a irmã do escritor por uma razão qualquer, a senhora falou do irmão e do famigerado prémio e obteve como resposta um lamentável
- Quem? Rebordão quê? Não conheço...
Pois é: a memória! As empresas enxotam quem sabe da poda, despedem os funcionários pelas mãos dos quais passaram os factos e as pessoas, preferem juniores renováveis e analfabetos, verdes como os recibos, fiam-se no Google e na inteligência artificial mas não vão lá. E depois ninguém sabe nada de nada, por manifesta estupidez natural.
Há anos que está a acontecer o mesmo nas redacções dos jornais portugueses e até se contam algumas saborosas anedotas a esse respeito. São de rir tanto, as anedotas, que às tantas até são verdade.

No que me diz respeito, e como penitência pela minha ignorância àquela data quanto à dimensão da obra literária de António Rebordão Navarro, que afinal era qualquer coisinha mais do que catorze títulos, aqui deixo o registo essencial, com sinceros votos de que faça também bom proveito à rapaziada do Círculo de Leitores: poesia - "Longínquas Romãs e Alguns Animais Humildes", 2005; "A Condição Reflexa", 1989; "27 Poemas", 1988; "Aqui e Agora", 1961; teatro - "Sonho, Paixão, Mistério do Infante D. Henrique", 1995; "O Ser Sepulto", 1972; crónica - "Estados Gerais", 1991; ensaio - "Juro Que Sou Suspeito", 2007; conto "Dante Exilado em Ravena", 1989; romance - "As Ruas Presas às Rodas", 2011; "A Cama do Gato", 2010; "Romance com o Teu Nome", 2004; "Todos os Tons da Penumbra", 2000; "Amêndoas, Doces, Venenos", 1998; "A Parábola do Passeio Alegre", 1995; "As Portas do Cerco", 1992; "Mesopotâmia", 1984; "A Praça de Liège", 1988; "O Parque dos Lagartos", 1981; "O Discurso da Desordem", 1972; "Um Infinito Silêncio", 1970; "Romagem a Creta", 1964.

P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego! O escritor e editor António Rebordão Navarro morreu no dia 22 de Abril de 2015, aos 82 anos. E Portugal adormecido parece que já não sabe quem é que ele foi, quem é que ele é, o que significa. Actualmente, acho isso mal. Para ignorante, bastava eu.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

No tempo em que os animais falavam

Foto Gaspar de Jesus

Houve um tempo em que os presidentes dos maiores clubes de futebol falavam com os jornalistas e até convidavam os directores dos jornais para jantar. Todos eram tratados por igual e quem tivesse unhas que tocasse viola. Mas isso foi muito, muito antigamente, no tempo em que os animais falavam e não havia telemóveis. Depois, conta-se que os presidentes dos maiores clubes resolveram dividir os jornalistas em dois grandes grupos: os que levavam recados e os que levavam pancada - e deixaram de falar aos restantes. Mais tarde, os presidentes dos maiores clubes criaram as suas próprias televisões e passaram a ser "entrevistados" pelos seus próprios assalariados. E agora, quando se dignam descer até ao ecrã das televisões ditas generalistas, exigem tratamento de primeiro-ministro. São outros tempos! E entretanto já não sobramos todos daquela mesa...

P.S. - Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego! no dia 30 de Maio de 2014. E aqui no dia 3 de Janeiro de 2023.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

A sonsice em letra de imprensa

O jornal, apudorado, escreve c******! E o leitor, por mais virgem que seja e ainda que não seja de Fafe, imediatamente lê caralho! O jornal escreve f***-se! E o leitor lê logo foda-se! O jornal escreve filho da p***! E o leitor lê filho da puta! O jornal escreve m****. E o leitor lê merda. Então, para quê tanta sonsice?...

P.S. - O jornal desportivo A Bola foi fundado no dia 29 de Janeiro de 1945.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O cancro, entre "vencedores" e "vencidos"

Um dos títulos mais useiramente infelizes na nossa comunicação social são dois: "Fulano venceu o cancro" e "Sicrano derrotado pelo cancro". Os heróis e os falhados. Ultrapassa-se o cancro simplesmente porque se faz muita força, morre-se de cancro por indecente e má figura.
Ora, a realidade lá fora dos teclados e da tabela de vendas não é assim. Sobreviver ao cancro está muito pouco nas mãos de quem o padece. Depende de tantas e tantas variáveis exteriores ao doente e à "coragem" do doente, que só vou citar duas, dinheiro e médicos, e nada é garantido, e tudo se resume, no final, a tempo, sorte ou azar. Não há fortes e fracos, competentes e incompetentes, lutadores e cobardes. Não há vencedores nem vencidos nisto do cancro, assunto sério. É a vida.

Imagine-se o ridículo que seria levar o jargão jornalístico até às últimas consequências e, em casos de atropelamento, escrevermos, elogiando os sobreviventes, "Fulano venceu a motorizada", aos pontos obviamente, ou, injustiçando os mortos, "Sicrano derrotado pelo motociclo". Horrível, não é? Pois com o cancro também.

P.S. - Hoje é Dia Nacional de Prevenção do Cancro da Mama. Escrevi e publiquei este textinho de protesto no dia 10 de Maio de 2014, no meu blogue Tarrenego! Não é a primeira nem posso garantir que seja a última vez que o republico. É a minha luta contra a estupidez. E outra coisa: eu não alinho nessa moda nova de que o cancro é uma revelação, uma epifania, uma experiência transcendental, "o melhor que me aconteceu na vida". Não, perdoem-me a curteza de vistas, mas eu continuo a achar que o cancro é uma merda.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Hugo Viana, o gentleman

Estou extremamente vaidoso com este acontecimento de uma pessoa que me conhece ir para director desportivo do importante clube de futebol Manchester City, de Inglaterra. Note-se, eu não conheço o Sr. Hugo Viana de lado nenhum, senão como figura pública, mas ele diz que me conhece. Ou pelo menos disse que me conhecia lá pelos primeiros anos deste século, estando ele como jovem jogador do Sporting e eu como velho jornalista do jornal 24horas, no Porto. O rapaz tinha uma questão familiar qualquer, que eu não quero trazer agora aqui ao caso, e o meu jornal mandou-me explorar a coisa. Do meu ponto de vista, o assunto era irrelevante e sobretudo particular, íntimo, tipo ninguém tem nada com isso, mas as minhas chefias, de Lisboa, invocaram o sagrado "interesse público e jornalístico" para me encostar à parede.
Fiz alguns contactos exploratórios, falei com duas ou três pessoas mais ou menos envolvidas ou sabedoras, e de repente recebi uma chamada do próprio Hugo Viana, que tinha e tem idade para ser meu filho, e atirou-se assim: - Ouve lá, estás avisado! Eu conheço-te, pá, sei onde trabalhas e os teus horários, sei onde moras e onde comes. Se escreves alguma coisa sobre mim, estás lixado comigo, faço-te a folha, pá!...
Eu, se querem saber, ri-me. Aquilo era tão infantil, tão coisa de miúdo, que não só não levei a sério como nem sequer levei a mal. A verdade é que, naquela altura, nem eu sabia os meus horários e amiúde não acertava com a porta de casa. Trabalhava pelo menos treze ou catorze horas por dia, sem hora de entrar ou de sair, muitas vezes na rua, e comer era só depois do serviço arrumado e onde calhasse...
Em todo o caso, não cheguei a escrever o artigo, que, repito, realmente não interessava nem ao Menino Jesus, era essa definitivamente a minha opinião, e ainda é. Mas não foi por causa do telefonema pândego e das ameaças de Hugo Viana que a "notícia" não saiu. Não. Acontece que, por aquela maré, as camisolas do Sporting (e do Benfica e do FC Porto) eram patrocinadas pela PT - Portugal Telecom, que por acaso era também a dona do grupo de comunicação que detinha, entre outros títulos, o jornal 24horas. Quer-se dizer: era como se eu e o Hugo Viana, deixem-me exagerar um bocadinho, tivéssemos o mesmo patrão. O Sporting mexeu-se. O imbróglio foi tratado ao nível das mais altas esferas, disseram-me, os meus ilustres chefes, sempre sábios e cheios de razão, mandaram imediatamente às malvas o inefável "interesse público e jornalístico" e recebi ordens expressas para abortar um trabalho que, em bom rigor, nem sequer tinha começado. O jornalismo, quer queiram quer não, meus amigos, era e ainda é, se o houvesse, uma coisa muito bonita.

Resumindo e concluindo: se precisarem de alguma coisa do Sr. Hugo Viana, agora que ele é gentleman por geografia e está no topo do mundo, digam, que eu trato disso. Ele conhece-me.

(Publicado originalmente no meu blogue Tarrenego!)

sábado, 5 de outubro de 2024

O meu bisavô Lindolpho, pedagogo e jornalista

Um por acaso lembrou-me aqui atrasado do meu bisavô Lindolpho, pai do meu avô da Bomba e egrégia figura que infelizmente não conheci. Fui aos papéis. Lindolpho Von Doellinger, pedagogo, nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, na freguesia de Santo António dos Pobres - tanto quanto consigo perceber na certidão de nascimento do meu avô, assento n.º 71, que preservo com devoção e fita-cola. Dos Pobres, e eu nunca tinha ligado. A minha vida começa finalmente a fazer sentido...
Que se segue? Fafe marcou o 10 de Junho de 2017 com a inauguração do Museu da Educação, em Silvares, dando estupenda serventia ao recuperado edifício da centenária Escola Deolinda Leite. Ora acontece que o primeiro professor desta escola deverá ter sido exactamente o meu bisavô (situemo-nos nos anos de 1892 a 1894), sendo certo que não parou por lá muito tempo - o que me faz lembrar uma pessoa que conheço muito bem. Ano e meio, se tanto, e já o "Sr. Lindolpho Von Doellinger" manifestava a sua "vontade férrea" de mudar de ares para "abrir uma escola particular denominada Santa Virgínia, em Fafe, por insistência de muitos pedidos de vários seus amigos", segundo leio num documento do sítio do Museu das Migrações e das Comunidades.
Outro por acaso fez-me descobrir que, provavelmente entre os anos de 1907 e 1912, o meu bisavô Lindolpho - a quem puseram uma alcunha que, por maldosa, aqui não repito, embora não me envergonhe - foi director do semanário político fafense "A Verdade". Quer-se dizer: isto anda tudo ligado, velho camarada.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Professor.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

O princípio das coisas

Foto Tarrenego!

No dia 27 de Agosto de 1989, na Bulgária, José Garcia conquistou o bronze em K1 10.000, primeira medalha da canoagem portuguesa em campeonatos do mundo. Faz hoje anos.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Ovnis à saída do café

Aqui ao lado mas junto ao mar, em Vila do Conde, existe o CIFA, isto é, o Centro de Investigação de Fenómenos Aeroespaciais, que toma conta dos avistamentos de ovnis. O CIFA faz "relatórios anuais estatístico de ocorrências de fenómenos aeroespaciais em Portugal" e acaba de informar, de acordo com o jornal O Minho, que 2023 foi um bom ano, com 33 avistamentos atestados, contra os apenas 31 de 2022 e os modestos 19 de 2021.
"Esta ano há um caso registado no distrito de Braga, mais concretamente na freguesia de Aborim, em Barcelos - escreve o jornal -, quando um homem que ia a sair de um café avistou "várias luzes no céu com arestas nas pontas, de cor verde, amarela, azul e vermelha". A situação aconteceu às 23:20 do dia 10 de maio de 2023.
O CIFA analisou o vídeo e as fotos enviados pelo barcelense e concluiu que se tratavam de "aeronaves teleguiadas em evoluções no espaço de curtas distâncias" com 100% de certeza. Mais concretamente, drones com luzes de múltiplas cores." Fim de citação.
Tomaram atenção ao "quando um homem que ia a sair do café"? Ora bem. Ir ao café ou ao tasco, alapar, conviver, e depois sair do café ou do tasco, no nosso Minho, neste caso em Barcelos, e à saída ver ovnis, que é ver ovni mas a dobrar, e luzinhas de várias cores, lamento mas tenho de dizer que não me parece uma coisa muito científica. Uma informação assim explicada, suspeito que não credibiliza por aí além o dito avistamento. Em Fafe, pelo menos no meu tempo, víamos ovnis todos os dias ao sair do café, quero dizer, todas as noites, e nunca apresentámos queixa. O único problema é que, como se sabe, os avistamentos de ovnis, com o passar dos anos, acabam por fazer mal ao fígado...

terça-feira, 25 de junho de 2024

Jornalista, disse ele

Perguntaram-lhe:
- Profissão?
Respondeu:
- Jornalista.
Perguntaram-lhe:
- Imprensa, televisão, rádio, agência noticiosa ou multimédia?
Respondeu:
- Câmara municipal.
 
P.S. - Dia Nacional do Multimédia.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Feridas de guerra 9

Foto Tarrenego!
"Doutora, vou-me matar!"
A verdade é que só agora a ciência arranca buscando explicações inteligentes para o sofrimento destes homens, e a estatística oficial, para além de referenciar os 25 mil feridos e os 10 mil mortos directos da Guerra Colonial, pouco mais adianta.
Quem está por dentro do assunto garante a existência de vários casos de suicídio (dois no último ano, só na área do Porto) e muitos de homicídio com raiz no stress de guerra. E falam-me de desesperança de vida, que faz com que "muitos se vão embora aos 40 anos", e de alcoolismo, e de cirroses, e de droga, e dos divórcios, e de sem-abrigo, e do homem que em apenas um ano correu mais de cem empregos, e da falta de coragem da Nação para encarar e assumir as suas obrigações. O que tem sobrado é o silêncio.
Porque, para começar, como denuncia Paula Frazão, a psicólogo clínica, o Exército tem de admitir que, excepção feita às chamadas forças especiais, "a maior parte da tropa ia para a guerra, técnica e psicologicamente, mal preparada, e muitos acidentes aconteceram por causa dessa má preparação".
Está clinicamente provado: o DPTS pode ser prevenido - e foi-o recentemente na Guerra do Golfo - se o soldados forem esclarecidos de que o medo e a ansiedade fazem parte da guerra, são situações normais, humanas, e não sinais de cobardia ou de doença mental. Além disso, o desenvolvimento de um DPTS crónico até pode ser evitado se o soldado, em plena fase aguda, for atendido próximo à frente de batalha, iniciando imediatamente os tratamentos e sendo mentalizado para a expectativa de retorno aos deveres normais e para a brevidade do contacto terapêutico.
Menos do que pensões, os traumatizados pela guerra reclamam atenção, atendimento, compreensão, apoio, tratamento. Há quem tema que, com o andar dos anos - porque a doença, não sendo tratada, tende a agravar-se -, os demónios de África venham a degradar inexoravelmente os restos de vida dos ex-combatentes envelhecidos. A Nação terá de estar preparada para o desmoronamento de toda uma geração...
Aos centros da ADFA chegam todos os dias, e cada vez mais, pedidos de socorro, lágrimas por uma "última tábua de salvação" para um filho, para um pai, para um marido, para um irmão, para um amigo. Gente à beira do abismo. O bom-dia que Paula Frazão ouve muitas vezes quando os seus doentes lhe entram no consultório é: "Doutora, vou-me matar!..."

(Fim)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Feridas de guerra 8

Foto Tarrenego!
Seis tentativas de suicídio: a sétima foi fatal. A ideia do suicídio passou a ser natural, e era com naturalidade que Manuel falava de matar-se. Tentou cinco vezes com sobredoses de comprimidos e uma com "remédio" de escaravelho, antes da definitiva. Seguiam-se, cíclicas, as desintoxicações no Hospital de São João e os internamentos no Conde Ferreira.
Tão grave era a situação que, caso singular, deu-lhe direito a pensão por incapacidade - o que, nos últimos quatro anos, viria a agravar a confusão no espírito de Manuel Teixeira. A cisma agora eram os sessenta e sete contos e setecentos escudos com que a Nação de desobrigava mensalmente pelo mal que lhe fizera. Manuel achava que a tença era "um roubo ao Estado". Aflito, temia pela chegada da GNR para o levar preso "por receber uma reforma que de certeza não era para ele"...
A 2 de Maio de 1990 terminou com tudo. Ingeriu o conteúdo de uma embalagem de "remédio" de escaravelho, lançou fora o recipiente e deitou-se calmente, como tantas vezes tinha avisado, à espera da morte. Que veio. No guarda-fatos o ex-combatente escondia mais quatro embalagens de veneno, pelo sim e pelo não...

Outras vezes a violência chama-se homicído. Poderá ser o caso de João Silva, ex-comando de 41 anos, que em Campanhã, Porto, na madrugada de 8 de Setembro de 1991, resolveu a tiro de pistola o seu diferendo com a vida, matando, num acerto de contas, um indivíduo de 42 anos.
João entregou-se à Polícia e confessou o crime. Está na cadeia de Custóias, aguardando julgamento. Diz quem o conhece que também ele deixou muito mais na guerra do que a perna que lá perdeu e que lhe garante o direito a pensão. E afirmam os estudiosos que os feridos na alma, convivas naturais de armas, sangue e morte, guardam causas para reacções extremas fora do entendimento comum.

(Continua)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Feridas de guerra 7

Foto Tarrenego!
"Já não sou um homem".
Manuel Teixeira tinha 42 anos quando resolveu terminar com a vida, "partindo para um caminho feliz". Fora uma criança normal, se bem que "um pouco aérea", fez a quarta classe e sonhou ser futebolista - conta a irmã, Edite. A juventude encontrou-o porém agricultor, cuidando capazmente dos terrenos dos pais, na zona ribeirinha do Freixo, resto do velho Porto rural.
Inspecções chegadas, tudo tentou a família para livrá-lo da tropa, mas nada resultou. O mancebo acabou incorporado, Espinho e Santa Margarida foram breves passagens para vinte e oito meses de Moçambique. E, mal lá chegou, o prenúncio de fatalidade: camaradas de armas conseguiram resgatá-lo, nos segundos derradeiros, ao aperto de um cinto que o pendurava ao tecto da caserna...
A irmã não consegue precisar no tempo esta primeira tentativa de suicídio conhecida, se antes ou depois de um acontecimento que viria a determinar o desenlace da história: uma "brincadeira" infeliz entre militares, que acabou com Manuel agredido a pontapé nos testículos.
A gravidade da lesão obrigou a uma intervenção cirúrgica, em Moçambique, e tudo parecia ter voltado à normalidade. Manuel cumpriu até ao último dia marcado a comissão ultramarina e só depois voltou para a sua margem do Douro. Mas já nada era como dantes. O homem que "tinha ido inteiro para a guerra" não regressara, conta-me um tio do ex-combatente. A impotência sexual, provavelmente provocada pela agressão imbecil, vinha marcar irremediavelmente a existência deste jovem.
"Já não sou um homem", costumava lastimar-se Manuel, que - recorda a irmã - "perdeu o gosto de viver" e tornou-se agressivo, violento, "um bichinho autêntico".

(Continua)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Feridas de guerra 6

Foto Tarrenego!
Obcecado pela "injustiça".
Outra é a história de António Pereira, 51 anos, do Porto. O que obceca é a "injustiça": desde logo, a injustiça de o terem mandado para a guerra, logo a ele que não tem "nenhuma mística de herói, antes pelo contrário"; depois, a injustiça da própria guerra; ainda, "a discriminação de tratamento entre soldados, sargentos e oficiais"; finalmente, a hipócrita posição dos generais, que, escondendo-se num "nacionalismo exacerbado e na chama do patriotismo", não admitem que a Guerra Colonial deixou as suas sequelas psicológicas.
Os sete meses passados no Norte de Angola em 1961/62 foram-lhe penosos desde o primeiro dia. A fartura de cerveja e de uísque não bondou para afogar o choro e os temores. António não voltou o mesmo. Sentia-se perdido quando tornou a casa, no final da comissão. Andou de neurologistas para psiquiatras e em 1971 esteve internado no Hospital Conde Ferreira. E desde aí nunca mais parou com as consultas: diz que tem "descarregado toneladas de preocupações".
O que mais o afligia eram os pesadelos, "corpos esventrados, cabeças e pénis cortados e espetados em paus simulando macabros sinais de trânsito". Remorsos não, porque a sua arma, "a 1035, nunca disparou contra corpo humano". O que o desanimava era "uma certa falta de apoio familiar". O que o "salvou" foram o 25 de Abril, que lhe veio "encher a vida", o investimento de tempo e de energias no seu curso de engenheiro-técnico, mas principalmente a sua filha, actualmente com 24 anos. "Era a Ana quem reacendia a fogueira, quem me ligava à vida", confessa.
Porque, a par de uma "vontade obsessiva de matar os autores de injustiças", que persiste, o suicídio era então também um pensamento constante na cabeça de António. Hoje passa "mais ou menos indiferente pelos sítios que tinha escolhido" para o caso...
Tal como José Rodrigues, António Pereira parece ter chegado a um estádio de convívio tolerante com os seus fantasmas. Mas há quem definitivamente não o tenha conseguido.

(Continua)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.

domingo, 21 de abril de 2024

Feridas de guerra 5

Foto Tarrenego!
A vida num filme, todos os dias.
Ainda por cima, quando largou a tropa, já em meados da década de setenta, o emprego que José Rodrigues conseguiu arranjar, à sociedade com um irmão, foi o de projeccionista de cinema ambulante pelo seu Alentejo natal, enfrentando no dia-a-dia - como conta - "um mundo de fitas da Guerra do Vietname, às vezes uma dúzia de vezes a mesma fita". Uma tortura...
E tornavam os fantasmas. "Companheiros a morrerem ali à minha frente, outros feridos, e nós a batalharmos para que fossem recuperados, a chamar o helicóptero, e o helicóptero que não chega, aquela ansiedade..."
Ou daquela vez em que José estava com "uma mulher nativa" e de repente rebentou um morteiro ali quase em cheio. "Fomos projectados, eu e ela. Eu felizmente sem nada, mas ela com um pé todo esfacelado, ali ao meu lado..."
Ou. "O moço que era furriel miliciano, nunca mais o vi, que um dia, na Guiné, quando fazíamos um grande transporte de urnas de uma povoação para outra, desatou a correr em histeria por um descampado fora, a correr e a gritar. Era o meu camarada de quarto, e a partir daquilo passou a ser um inválido. Levava os dias sentado na cama, a olhar para nada, um moço de vinte e poucos anos..."
Ou...
Quando fez o seu primeiro grupo terapêutico, José Rodrigues "estava na porta da loucura" - ele mesmo o diz. Mas então pôde finalmente confessar-se, "desabafar junto de quem passou o mesmo, de quem está afectado pelo mesmo problema". Hoje - garante -, fruto de quatro anos de terapia e, é verdade, dos tranquilizantes de que não pode separar-se, sente-se "muito melhor", mas o futuro passa pelo tratamento contínuo.

(Continua)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.

sábado, 20 de abril de 2024

Feridas de guerra 4

Foto Tarrenego!
"Já nem a família me conseguia aturar". José Rodrigues, "primeiro e ultimo nome", 45 anos, fez já dois grupos, na ADFA. Prepara-se para um terceiro, no Hospital Júlio de Matos. Ao fim de longos anos consegue finalmente falar sobre os seus males, mas logo ali avisa que o fará "sempre de costas para a parede"...
Ex-sargento pára-quedista, fez guerra em Moçambique (1968/69) e na Guiné (de 1970 a 1972), sempre "no barulho". Veio da última comissão "com o sistema nervoso alterado". Fez a via-sacra dos consultórios e hospitais.
Casado, pai de duas filhas, desabafa: "Cheguei ao ponto em que até a minha mulher teve de fazer parte da terapia de grupo. Já nem a família me conseguia aturar". Recordando esses tempos de agressividade, de choques constantes "sem motivos aparentes", reconhece que aos poucos foi contaminando toda a família, destruindo o carinho das filhas e tornando-as também "doentes". Justifica-se: "Ninguém compreendia o meu problema, não tinham passado pelas situações, não passaram pela guerra"...
Na rua era ainda pior: cansou-se de passar por charlatão quando falava da guerra. As pessoas pensavam que ele "estava a exagerar, a ir além daquilo que realmente é a realidade, quando muitas vezes nem chegava a metade da própria realidade".
"O sistema nervoso arriou". Fechou-se. Desligou da família e dos amigos, "pessoas que não tinham capacidade de entender". Para si guardou os "pensamentos e pesadelos" trazidos de África e que o "martirizavam".

(Continua)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Feridas de guerra 3

Foto Tarrenego!
Classe médica não ajuda. Afonso de Albuquerque revela que a classe médica "está pouco sensibilizada para o diagnóstico desta doença" e avisa que "é necessário um esforço dos médicos em geral e dos seus órgãos e sociedades científicas na maior divulgação de informação relacionada com o DPTS". Vai mais longe Paula Frazão, denunciando que a classe médica "põe em causa a credibilidade deste tratamento, diagnosticando depressões com esquizofrenias, quando a doença da pessoa é outra".
Ainda assim, alguns médicos começam a enviar os seus doentes àqueles serviços especializados. Ali, principia-se por uma consulta, espécie de acto de confissão durante o qual, pela primeira vez ao fim de muitos anos, o ex-combatente consegue verbalizar e encarar o som das suas experiências; depois, uma entrevista, sob a forma de questionário de personalidade, por forma a avaliar a gravidade dos sintomas; segue-se o diagnóstico, dizendo-se então à pessoa o que se passa com ela e propondo-lhe o tratamento: a terapia de grupo e, em casos extremos, o complemento de medicamentos antidepressivos e ansiolíticos.
Os grupos de dez ou doze indivíduos reúnem uma vez por semana, durante quatro meses. Os doentes são encorajados a contarem as suas histórias de guerra ou consequentes desajustes sociais, familiares ou profissionais. Entre combatentes, camaradas, gente que viveu os mesmos pesadelos e tenta exorcizar os mesmos fantasmas, aprendem a ganhar à-vontade para o fazer.
Paula Frazão recorda homens que chegam ao primeiro encontro e não alcançam dizer coisa com coisa, homens que ouvem a palavra "guerra" e logo geram ansiedade, homens que, em fez de falar, choram. E se cada caso é um caso - dependendo da natureza do trauma, das características do indivíduo e do contextos dos eventos, do desenvolvimento ou não do DPTS -, todos vêm marcados pelo silêncio em que tentaram esquecer durante anos os seus medos, o que resulta no aumento do distúrbio, e a maioria está condenada a viver de terapias de grupo, tentando, até aos últimos dias, o equilíbrio possível.

(Continua)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. O Dr. Afonso de Albuquerque faleceu no dia 5 de Abril de 2022. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Feridas de guerra 2

Foto Tarrenego!
Afonso de Albuquerque. Do trabalho do psiquiatra Afonso de Albuquerque, posto em estudo preliminar, ressalta que, no contexto português, para além das crises agudas no teatro de operações, os sintomas do stress de guerra aparecem quase sempre após o fim das comissões (cerca de 80 por cento dos casos), e numa percentagem elevada a doença só é notada mais de cinco anos depois dos últimos combates, com o ex-combatente a recorrer ao médico especialista, em geral, ao fim de treze anos.
Por ordem, cefaleias, abuso de álcool e drogas, pânico e fobias são as principais consequências do DPTS, e a morte de um camarada, o combate, ferimentos, sede e fome, assassínio, tortura e violação, morte de uma mulher ou de uma criança e bombardeamentos são os principais factores de stress. A especificidade da guerra de guerrilha, em que são pouco frequentes os combates cara a cara, explicará certamente a baixa percentagem atribuída nesta escala à morte do inimigo.
Hoje em dia, Afonso de Albuquerque continua o seu trabalho no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, mas na ADFA ficou uma sua ex-assistente, a psicóloga clínica Paula Frazão. Nestes dois pólos - da capital para todo o País - é posta à prova a técnica terapêutica, baseada essencialmente na verbalização em grupo das experiências traumáticas.
Os objectivos do tratamento são a redução dos sintomas - porque não existe cura total -, a prevenção de incapacidades crónicas e a reabilitação social e ocupacional dos ex-combatentes atingidos pela doença. Os resultados têm sido avaliados como satisfatórios, sendo que o programa, paradoxalmente, não terá atingido senão pouco mais de meia centena de indivíduos.
E se são dados adquiridos a ignorância dos prováveis atingidos perante o que realmente lhes está a acontecer e a vergonha da assunção da maioria (mesmo os pouco que admitiram o seu "problema" e o relacionaram com o tempo de guerra, e procuraram a ajuda de especialistas, fizeram-no "obrigados" por familiares e amigos), a verdade é que são os médicos, como classe, o principal obstáculo ao tratamento da doença.

(Continua)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. O Dr. Afonso de Albuquerque faleceu no dia 5 de Abril de 2022. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Feridas de guerra

Foto Tarrenego!
Manuel Teixeira, 42 anos, suicidou-se. João Silva, 41 anos, aguarda julgamento por homicídio. José Rodrigues, 45 anos, faz terapia de grupo. António Pereira, 51 anos, vive obcecado pelas "injustiças" e já pensou matar ou matar-se - convive desde 1963 com psiquiatras e tranquilizantes. Manuel, João, José e António têm em comum a Guerra Colonial e o medo dos seus medos. São casos à mostra dos cerca de 140 mil ex-combatentes portugueses atingidos pelo stress de guerra, essa doença camuflada numa espécie de clandestinidade.

São homens marcados. Hipersensíveis, desconfiados, revivem em permanente alarme os pesadelos do teatro de guerra. Deprimidos, ansiosos, agressivos, perderam a vontade de viver e do afecto, desfizeram amizades e família, saltam de emprego em emprego, isolam-se, porque "não os compreendem, não passaram pelo que eles passaram", e frequentemente entregam-se ao álcool e à droga. Em casos extremos, fogem pela porta do suicídio ou desabafam na violência do homicídio.
São cerca de 140 mil portugueses, atingidos por uma perturbação psicológica crónica com o nome clínico de distúrbio pós-traumático de stress (DPTS) ganho nos matos de Angola, Guiné ou Moçambique, e que, mal entendida pela generalidade da classe médica e ignorada pela instituição militar, existe quase na clandestinidade e sem direito aos "privilégios" da incapacidade de papel passado. Dezoito anos após o seu fim, e trinta e um depois do seu começo, a Guerra Colonial continua a contabilizar vítimas.
A questão só há três anos começou a ser estudada entre nós. O número avançado, 140 mil - extrapolado dos números indicados pelos americanos em relação aos seus ex-combatentes no Vietname -, corresponde à metade aritmética dos 280 mil soldados portugueses que enfrentaram situações de combate em África, no meio do milhão que passou pelos treze anos de guerra.
Afonso de Albuquerque, psiquiatra de Lisboa, foi quem teve a coragem de ir à gaveta da História arejar este dossiê incómodo e convenientemente arrumado. Fê-lo servindo-se do natural campo de ensaio que é, para o caso, a Associação de Deficientes das Forças Armadas (ADFA), com os seus cerca de 14 mil sócios.
Na sede da ADFA, na capital, Afonso de Albuquerque realizou os seus primeiros estudos e orientou pioneiras sessões de terapia de grupo, sete anos depois de o manual estatístico de doenças mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM III) ter pela primeira vez catalogado e elaborado os critérios de diagnóstico da doença - sim, é uma doença! -, baseado ainda na experiência da Guerra do Vietname e como conclusão do seguimento de casos de "estado de choque" pendentes da II Guerra Mundial.

(Continua)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Os nomes dos ex-combatentes são, aqui, fictícios. O Dr. Afonso de Albuquerque faleceu no dia 5 de Abril de 2022. Segundo dados que considero credíveis, 40 militares fafenses morreram na Guerra do Ultramar.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Era o tempo do jornalismo em cuecas

Imagem retirada dos Arquivos RTP
Uma vez eu fui a Roma comprar um Pinóquio para o meu filho, que era pequenino, coitadinho. E aproveitei para acompanhar a visita de Cavaco Silva ao Vaticano e a Itália, creio que assim nos entendemos. Isto foi em Outubro de 1987, Cavaco era primeiro-ministro de Portugal, mas eu não. Eu trabalhava no Primeiro de Janeiro e o jornal é que me mandou atrás do outro. Lembro-me muito bem do mês e até de um dia em especial, porque eu fazia anos, certos e determinados, e o padre António Rego, que ia pela Rádio Renascença, se não me engano, pôs a comitiva de jornalistas portugueses a cantar-me os "Parabéns!" ao jantar.
A imagem ali de cima é exactamente desse dia de festa, cantam as nossas almas, numa conferência de imprensa dada por Cavaco Silva nos jardins da Embaixada de Portugal junto da Santa Sé. No retrato só couberam pessoas importantes. O João Pacheco de Miranda, da RTP, televisão única, a fazer perguntas sem se rir, o nosso "primeiro" e o embaixador respectivo muito atentos, ou a fazerem de conta, e eu, não sei como é que fui ali parar, altaneiro e barbado, dominando a cena e fiscalizando as obras, até parece que faço parte da súcia. Reparem-me na airosidade, na categoria da minha pessoa, não é para me gabar, na classe da meiinha branca, no requinte do sapatinho dirópito. O casaco a estrear tinha cotoveleiras de camurça. E a gravata? A gravata evidentemente era azul e branca, como a cor única do meu coração, em delicado degradê. Gostava muito daquela gravata, acho que ainda a tenho, mas não faço ideia para quê. Eu não uso gravata, eu nem sequer uso colarinho ou casaco, eu há anos que não uso sapatos, valha-me Deus!...
Cavaco Silva foi a Roma e viu o Papa. Era João Paulo II, que agora dizem que é santo. O primeiro-ministro português levava-lhe o delicado e doloroso dossiê Timor-Leste. E eu levava umas palas de sol polaroid em cima dos óculos de ver. Umas palas de levantar ou baixar, consoante a sombra ou a luz, It is I, Leclerc, o que de repente descompôs um par de guardas suíços, que se partiram a rir, eu seja ceguinho.

Era uma das minhas primeiras saídas em serviço ao estrangeiro. E eu levava muito a sério a encomenda de enviado-especial. O meu chefe - o grande Costa Carvalho - exigia-me pelo menos uma página por dia, e uma página por dia, naquele tempo, se querem saber, era obra desenganada. Instalaram-me no Collonna Palace Hotel, na Piazza di Monte Citorio, e era do quarto com vista para a praça e pornografia na televisão que eu, ao fim do dia, antes do jantar, preparava e enviava o serviço. Por telefone. 
Eram duas ou três horas de alta tensão. Conferir apontamentos, seleccionar e hierarquizar assuntos, escrever tema principal e caixas, escolher títulos, pedir a ligação para o Porto, esperar, esperar, esperar, ditar para o gravador o material todo de uma ponta à outra. No Porto, o camarada da secretaria de redacção ouvia a cassete com travão, marcha-atrás e acelerador, como os pilotos de rali ou os pivôs de telejornal, batia os textos a todo o vapor e no final ligava-me de volta, para uma releitura que pudesse servir de emenda a eventuais lapsos de transmissão, que eram praticamente palavra sim, palavra não. E esperar, esperar, esperar. Eram muitos nervos, muita ansiedade, muito ruído e interferências na linha, muita chamada a ir abaixo, muita pomba assassinada, muito aperto na garganta, muito coração nas mãos.
Eu suava em bica, quero dizer, em espresso. Portanto trabalhava em cuecas. Isso mesmo, em cuecas. Um pobre jornalista em cuecas, era o que eu era, com uma toalha a cobrir a cadeira, outra enrolada no pescoço e um lenço tabaqueiro atado à volta da cabeça. Um homem de família, pai de filho, respeitado em dois ou três sítios de Fafe e pelos menos numa freguesia de Cabeceiras de Basto, um ex-seminarista de créditos firmados, um intrépido frequentador dos Comandos da Amadora, e ali naqueles preparos, a trabalhar em cuecas. Que triste figura! Que ridículo! Que vergonha! Em cuecas!
Para disfarçar, eu imaginava que era nadador-salvador...

Entretanto o Kiko cresceu e uma vez foi a Itália e trouxe-me dois Pinóquios. Eu nunca mais fui a Roma e, é claro, sinto-me em dívida...

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...