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terça-feira, 16 de setembro de 2025

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao portão de um dos cemitérios da cidade do Porto. O bruxedo apareceu ali da noite para o dia, toda a gente se queixou, toda a gente se desviou e ninguém teve coragem de mexer na coisa, de a mandar para o lixo. Nem o padre da igreja ao lado nem os coveiros propriamente ditos. Trabalhar com almas e mortos está bem, desafiar maus-olhados é que não, faxavor de desculpar.
Passou-se um, passaram-se dois, três, quatro, cinco dias, e o galo ali, possivelmente já com o serviço feito e portanto sem mais poderes, mas nem assim alguém ousou sequer tocar-lhe. O pessoal da Junta de Freguesia, executivo e funcionários, reuniu e foi unânime, cada um passava a encomenda para o que vinha atrás, "Eu não, bruxedos comigo não", até que a vizinhança viva reclamou que já não aguentava com semelhante fedor, ciciando padres-nossos e ave-marias, de terço na mão e muitos sinais da cruz mas feitos ao contrário, não fosse o diabo tecê-las...
Ora, o fedor, como toda a gente sabe, é problemática que sobe a instância superior, à alçada camarária. Em conformidade, foram requisitados os serviços de limpeza da cidade, que chegaram ao local do sinistro tarde e a más horas e resolveram o assunto em três penadas. Isto é: não fizeram nada. "Eu também não, bruxedos comigo não"...
Perante o impasse, alguém tirou a mola de roupa do nariz e alvitrou que se chamassem os Comandos da Amadora ou o Grupo de Intervenção de Operações Especiais da GNR, um pediu a presença da Brigada de Minas e Armadilhas da PSP, o espertalhão do costume recomendou o Putin, se era para rebentar com aquilo tudo, o russo servia, e outra ainda sugeriu que se mandasse vir o Bruxo de Fafe para fazer a competente marcha-atrás à coisa, tornando seguro o seu manuseamento. Mas a Junta não dispunha de verba orçamentada para pagar a especialistas.
Foi quando um dos da Câmara se lembrou que o Canil Municipal tem um camião com um gancho hidráulico muito jeitoso, uma espécie de braço mandado que podia solucionar mecanicamente aquele problema bicudo, com os homens ao largo e portanto sem risco de agoiros, porque os agoiros, como é do conhecimento geral, têm um certo e determinado raio de acção, potente mas limitado. E assim foi. Ao sexto dia, o todo-poderoso veículo veio e levou a coisa, para sossego enfim de todos os moradores da zona, vivos e mortos, amém.

P.S. - Hoje é Dia de São Cipriano.

O feitiço contra o feiticeiro

Quando o Feitiço se virou contra o Feiticeiro, o Feiticeiro resmungou: - Mal agradecido...

P.S. - Hoje é Dia de São Cipriano.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Piadistas e outros mentirosos

A piada, para ser fina, não deve ter mais de três milímetros de espessura.

Havia uns tipos com piada, em Fafe. Piada fina e piada grossa, conforme. Contadores de anedotas, abrilhantadores de saraus de sociedade recreativa, animadores de café, pregadores de partidas, havia-os com fartura naquele tempo. E eram geralmente de partir a moca. Fafe é de rir, por natureza. Sempre foi. Já no meu tempo era de rir, ríamo-nos como perdidos, por tudo e por nada. Claro que antigamente éramos uns amadores, caseirinhos, artesanais, ríamo-nos uns dos outros, uns com os outros, às vezes uns contra os outros, tínhamos riso que chegasse, não mandávamos vir de fora. Éramos, em questão de riso, auto-suficientes.
As anedotas é que vinham do exterior, regra geral. Fafe não tinha então produção própria, quero dizer, os nossos piadistas eram mais divulgadores do que criadores. As redes sociais funcionavam boca a boca, como a respiração salva-vidas, e as novidades humorísticas chegavam até nós trazidas pelos vendedores ou caixeiros-viajantes que visitavam regularmente o comércio e a indústria locais. Debitar umas larachas, se possível frescas em ambos os sentidos - "já sabe a última?, é de bolinha!" -, fazia parte do ofício. Primeiro as anedotas e só depois a nota de encomenda, se corresse bem, era uma técnica de marketing como outra qualquer. Vendedor sem anedotas não ia a lado nenhum, essa é que é a verdade.
Neste deserto de criatividade, as excepções talvez fossem o António Augusto Ferreira, aliás António Augusto Abreu, e o extraordinário Zé Manel Carriço. O Tónio Augusto, pai do omnijornalista Carlos Rui Abreu, o qual, diga-se de passagem, é, sem comparança, o melhor relatador português de futebol de hoje em dia, na rádio Antena 1, e parece que Fafe ainda não tomou sentido disso, o bom do Tónio Augusto, era aqui que eu ia, abastecia-se de anedotas em Guimarães, onde por aquela altura já se encontrava estabelecido. A loja era de roupa, de moda, chamava-se T111, se não estou em erro, suponho que derivado à sua localização, no Toural, e ao número da porta, 111, ali a meia dúzia de passos da Basílica de São Pedro, cujos sinos tocavam às prestações de quartos de horas, e não sei se ainda tocam, o Hino de Guimarães. Quem também tocava o Hino de Guimarães, mas de uma ponta à outra e apenas uma vez por ano, era a nossa Banda de Revelhe quando ia às Gualterianas e fazia a rompida na cidade velha, em frente à Câmara Municipal, e eu sei de cor a música do Hino de Guimarães, e esta parte, sou obrigado a admitir, dada a rivalidade tola entre as duas terras, não abona nada a meu favor. Evidentemente também sei de cor a música do Hino de Fafe e, com ajuda, ainda me oriento na letra do refrão.
E então o que é que se segue? O Tónio Augusto todos os dias trazia de Guimarães anedotas frescas, ainda vivinhas, praticamente por estrear, e, quiséssemos ou não, dava-lhes a volta lá à maneira dele e contava-as pelas noites dentro do Verão fafense, na "esplanada" do velho Peludo, temperadas com fininhos e tremoços. Depois, terminada a função, metia-se no carro e ia para a Póvoa, ter com a família em férias, o que só lhe ficava bem.
A piada era fácil para o Tónio Augusto, porque ele era cómico de nascença. Ele era, dir-se-ia hoje, um predestinado, um Cristiano Ronaldo da pilhéria, um Lionel Messi do chiste. Uma vez, à hora da missa, jogava o Tónio Augusto nos juniores da AD Fafe, ainda no Campo da Granja, e rachou ou racharam-lhe a cabeça. Encostou ao banco, que era mesmo um banco, em madeira, corrido, ao fundo dos cinco réis de bancada, e o massagista, talvez o João Americano, tratava de enfiar-lhe uns agrafos no lanho escarrapachado e sanguinolento (não tenho a certeza se não estaria mesmo a ser cosido), mas ele não deixava, queria voltar ao jogo. Barafustava um, ralhava o outro, um a puxar para a frente e o outro a puxar para trás, escangalhados como parelha de palhaços ou bêbados matinais. Era mesmo de rir, parecia cinema mudo mas já em sonoro e a cores...
Zé Manel Carriço era outra coisa. Ele não contava anedotas. O Zé Manel contava as suas histórias, verdadeiras mais ou menos, episódios protagonizados por ele próprio, mas cenas tão improváveis, tão esdrúxulas, tão gagas, com um fim tão inesperado, preparado e teatral, e tão bem contadas, que passávamos noites inteiras naquilo, só a ouvi-lo. E o Zé Manel era o primeiro a rir-se do que dizia, e ria-se sonoramente, afagando a pêra elegante, e o seu riso era como um fósforo em mato seco. E nós à volta éramos um incêndio de gargalhadas, incontrolável, escusavam de ligar para os Bombeiros. Os mesmos empregados do Dom Fafe que, da uma às cinco da manhã, pediam, de meia em meia hora, "Ó Sr. Zé Manel, por favor, precisamos de fechar, olhe a polícia, temos de ir dormir!", às seis já só queriam "Ó Sr. Zé Manel, conte mais uma!"...
Depois tínhamos os "profissionais", o Landinho Bacalhau, o antigo, e o Zé Fala-Barato, os nossos microfónicos apresentadores de espectáculos, pontas de lança do Grupo Nun'Álvares, paus para toda a obra, cheios de categoria, e sempre com uma chalaça na ponta da língua. E tínhamos os comediantes avulsos, repentistas, atacando pelo soleno. As sentenças idiossincráticas do Eduardinho da Cafelândia, as malandrices do Valença, as aventuras do Pimenta, as tiradas do Serafim d'Eiteiro, as saídas do Moisés, o Toninho da Luísa, que eu gostava de imaginar DaLuísa por causa do DeLuise americano, o Aníbal Carriço, o Zé do Registo em dias bons e fora do horário de expediente, o Zé Maria Sapateiro, o Sr. Lem, o Rates da Fábrica, o Manel Fogueiro, o Toninho do Café Chinês, o Aurélio Funileiro, o Chico Americano, o Tónio da Legião e o Aristides Carteiro, amiúde o Sr. Aristeu da Loja Nova e até o Joãozinho Summavielle, que aparecia pouco e só à noite, mas não deixava os seus créditos por mãos alheias.
Que rica terra! Estávamos, com efeito, muito bem servidos. Aliás, sobre toda esta esplêndida plêiade de bem-dispostos benévolos e miúde militantes, tínhamos também a nossa conta de reconhecidos gabarolas e mentirosos, e Fafe era realmente abundante a esse respeito. Mentiam tanto e tão mal, patranhavam tão estrambolicamente os nossos queridos aldrabões, que acabavam por ter piada. Eram uns tontos, mas também uns pontos. Como aquele ilustre industrial fafense enquanto jovem que veio de férias do Ultramar e, palavra de honra, a guerra teve de parar até que ele regressasse ao mato. Raul Solnado, na verdade, não contaria melhor...

(Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

domingo, 14 de setembro de 2025

Tito, imperador da bola

O autogolo de Manaca
Eu estava lá. No velho estádio, em Guimarães. Fui de Fafe de propósito. Vi ao vivo o autogolo de Manaca que deu o triunfo por 0-1 e o título de campeão ao seu Sporting, sendo ele naquela altura jogador emprestado pelos leões ao Vitória. Foi no dia 25 de Maio de 1980, e eu, portista, estava lá, mesmo atrás da baliza em questão. Vi tudo, sou testemunha, lembro-me perfeitamente. E se quereis que vos diga: não sei, não tenho a certeza do que realmente vi...

Já lá vão mil novecentos e cinquenta e cinco anos, e lembro-me como se fosse hoje. Tito e as suas legiões romanas derrubaram a segunda muralha de Jerusalém. Lá dentro, os judeus, à rasca, fugiram para a primeira muralha, mas os romanos, copiando o Porto de muitos séculos depois, construíram uma circunvalação, cortando vazas aos sitiados e todas as árvores num raio de quinze quilómetros, o que foi imediatamente considerado como um escândalo ambiental. A circunvalação de Tito era também conhecida como muralha de cerco, mais uma vez plagiando por antecipação a Invicta, mas sem o mal afamado bairro. Tito era o filho mais velho de Vespasiano e foi imperador entre 79 e 81. A mãe de Tito chamava-se Domitila, a Maior, para se diferenciar da filha Domitila, a Menor, irmã de Tito.
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à guerrilha e à fundação e presidência da antiga Jugoslávia, enfim voltando-se para o futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, disse adeus às armas e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, dinheiro a sério, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Frequentava Fafe regularmente. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga, a não ser que olhem para o Bruno César que andou pelo Benfica, Estoril e, aqui atrasado, pelo Penafiel. Mas em bom.
Tito, na área, era imperial. Fino. Franco-atirador. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava regularmente. Palavra de honra, acertava! Estou aqui, que não me deixo mentir

Em Fafe, nos anos cinquenta, sessenta e pelo menos setenta do século passado, havia uma magnífica equipa de futebol popular, sazonal, que tinha o bonito nome de Embaixadores da Bola. Os rapazes representavam, se não me engano, a clientela do velho Café Peludo, que aliás raramente frequentavam, e mantinham uma terrível rivalidade com o poderosíssimo Maiense, da antiga Rua do Maia, grupo que, se fosse hoje, chamar-se-ia, por certo, Antoniossergense.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. No dia 14 de Setembro do ano 81, Domiciano tornou-se imperador do Império Romano após a morte do seu irmão Tito.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

A peita

Os ausentes
Sim, ele gostava muito de presentes. Mas os ausentes falam-lhe mais ao coração...

Peita. Dádiva ou promessa com o fim de subornar, suborno, antigo tributo pago pelos que não eram fidalgos - é o que dizem os dicionários. E peitar, seguindo esta linha de raciocínio, será, então, subornar com peitas, corromper, aliciar com dádivas e promessas. Talvez. Mas a peita, naquele tempo, ao menos em Fafe, era mais que um simples suborno e muito menos que um simples suborno. Até podia ser pagamento de favores, reais ou imaginários, simulacro de cunha, mas ia para além e ficava aquém disso. Não era corrupção tal como hoje a entendemos e usamos, era, isso sim, uma manifestação quase folclórica de uma certa subalternidade social mansamente aceite e assumida pelo pé-descalço, resquícios decerto medievais do tal imposto popular, numa gratidão imensa e sem sentido pelos de cima. Enfim, sabujice e lambe-botismo em todo o seu esplendor, os pobres davam aos ricos, não sei explicar de outra maneira, e assim funcionava o regime.
O meu avô, por exemplo. O meu avô da Bomba gostava muito de ser doente e adorava ir ao Porto "ao especialista". Era uma coisa constada. Íamos "ao especialista" como se fosse uma romaria, uma excursão familiar na catrel de três velocidades do meu padrinho Américo. Íamos, mas todos com a perfeita noção da solenidade do momento e da compostura que se exige numa ida "ao especialista" e ainda por cima ao Porto. Era um cardiologista na Rua de Sá da Bandeira, que por acaso também era médico do poeta Pedro Homem de Mello, que nós conhecíamos da televisão a preto e branco, e eu ficava muito emocionado por estar ali à beira daquela grande figura, na sala de espera, a cores, mas evidentemente sem abrir o bico, para não destoar e às tantas até "incomodar" o meu avô. O meu avô da Bomba, e este era um ponto de que toda a família estava avisada e o resto de Fafe também, "incomodava-se do coração".
Quando ia "ao especialista", o Bô da Bomba levava-lhe sempre um bom quilinho da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Sr. Abreu do Talho, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Era a peita, o regalo, é claro que o meu avô não podia ir ao Porto com consulta marcada e aparecer "ao especialista" de mãos a abanar...
As peitas aos médicos eram, aliás, aparentemente consensuais e obrigatórias, e creio saber que hoje em dia ainda há quem por aí as pratique. E não se pense que se tratava de um pagamento de consulta em géneros. Não. Era um pagamento em cima do pagamento em dinheiro vivo, pagas e não bufas, um extra, uma gratificação, uma gorjeta de mãos largas, sei lá bem por que carga de água. Em Fafe havia um médico muito famoso por receber peitas, tantas e tantas, material de luxo, belas peças de caça, dúzias de ovos caseiros, salpicões, presuntos, cabos de cebolas, rasas de milho ou feijão, frangos, capões, coelhos, cabritos, mortos e vivos, e não sei se também porcos, peitas, tantas e tantas, dizia eu, que o senhor doutor aceitava alegremente e depois vendia, inclusive aos açougueiros locais, tudo passado a patacos. Isso, o médico rico fazia negócio com as esforçadas oferendas dos seus doentes pobres, tinha até uma "criada" destinada quase exclusivamente a esse ofício. Toda a gente sabia do cambalacho, na vila e nos arredores. Alguém de bolsos mais abonados andava com desejos de uma perdiz de escabeche, precisava de um coelho-bravo para dar ao patrão, queria um pato à moda antiga para uma tainada das tais, não tinha nada que enganar, era só ir ao médico...

A peita, para ser considerada e aceite como tal, deveria ser praticada de chapéu na mão e espinha vergada, balbuciando-se no acto da entrega, reverente e agradecido, muitos "obrigados!", diversos "desculpe por ser pouquinho!", um singelo e envergonhado "semos probes!", e já à porta, sempre andando às arrecuas, um derradeiro e definitiva "desculpe"...

O Natal era uma época especialmente porreira para as peitas. Consoada não é só o banquete de Natal, a reunião da família à mesa, na noite de 24 para 25 de Dezembro. Consoada é também a prenda que se dá a alguém pelo Natal, dias antes, e esse uso da palavra era então muito comum em Fafe.
Nas férias de Natal, era costume os meninos da escola primária levarem a consoada, isto é, a peita, a casa das professoras ou professores. Uma oferta simples, chocolates, rebuçados, alguma mercearia essencial, como se fosse para o Banco Alimentar, um gesto bonito, dir-se-ia, se não estivesse desde logo ferido de uma profunda injustiça social. Havia aqui, no exercício da peita escolar, qualquer coisa de insensato, algo de paradoxal, uma gritante subversão de valores - afinal, os miúdos éramos sobretudo filhos de operários, caixeiros de baixo salário, pequenos lavradores aflitos, tarefeiros incertos, proletários de uma forma geral, e os professores, apesar do infinito desprezo de Salazar, eram professores, quer-se dizer.
Havia professoras ou professores que levavam a mal e tomavam de ponta os alunos que não lhes dessem nada. Havia professoras ou professores que aceitavam simpaticamente o mimo e entregavam às crianças uns docinhos para a troca. Havia professoras ou professores que agradeciam muito o gesto, mas pediam aos meninos que voltassem a levar as coisinhas para casa, onde faziam muito mais falta. E havia o meu professor e a esposa do meu professor.
O meu professor, melhor dito, o meu excelentíssimo professor era o Toninho da Cafelândia, o Professor Correia, que morava, se não me engano, na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, ali logo nas redondezas do Jardim do Calvário e do Tribunal. Fui lá uma vez levar a peita. Talvez um quilo de açúcar, do melhor, talvez um quilo de arroz, do melhor, ajeitados não em cartuchos normais, cinzentos, grosseiros, mas nuns cartuchos coloridos, alegres, finos, eventualmente até com fitinhas. A minha mãe caprichou.
Toquei a campainha e fui acolhido pela esposa do meu professor. Perguntou-me quem é que eu era, não precisei de explicar muito, sabia de nós, da nossa situação, a senhora agradeceu sinceramente os meus dois cartuchos, pegou neles com um sorriso, pediu-me para esperar um bocadinho à porta e foi lá dentro. A casa tinha umas escadas. A esposa do meu professor voltou num lampo e, quando voltou, vinha mais carregada do que quando foi. Trazia nas mãos, para me dar, um saquinho com rebuçados e um saco com quatro cartuchos dentro, talvez arroz, talvez açúcar, mas eram outros os cartuchos e a dobrar, para eu entregar à minha mãe e que lhe dissesse muito obrigado e que lhe mandava cumprimentos.
A boa senhora solucionara facilmente o paradoxo. E eu, todo contente, aprendi a lição da gentileza e da generosidade, do respeito pela dignidade do pobre que dá.

Por outro lado, convém não esquecer, o assunto aqui era a peita. A peita, de uma forma geral. A peita, isto é, a mama, a grandessíssima mama.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Alfabetização e Dia Internacional da Literacia.

Os livros estavam em boas mãos

E apeteceu-me dar-lhe um abraço
O homem caminhava vagarosamente ao lado da mulher. Curvado pelo peso de, fiz as contas, setenta e tantos anos, caminhava ainda assim com uma dignidade evidente. O homem velho, de casaco antigo, asseado, pé ante pé até ao café de praia e ao milagre do sol-pôr, levava as mãos atrás das costas. E nas mãos, reparei, um livrinho da Colecção Vampiro, a antiga: "O Imenso Adeus", de Raymond Chandler. Caramba!, és cá dos meus - pensei. E apeteceu-me dar-lhe um abraço.

A mania dos livros apanhei-a em Fafe, mal aprendi a somar letras, na biblioteca que na altura se chamava da Gulbenkian. Lembro-me muito bem da carrinha Citroën cinzenta em chapa canelada, a biblioteca itinerante, que frequentei uma ou duas vezes, estacionada à beira do Manel do Campo, mas o meu sítio já era edifício, do outro lado do Largo, em frente, creio que um primeiro-andar entre a loja do Damião Monteiro e a sapataria da esquina que dava para o beco da Polícia e em cima ou por baixo da Legião Portuguesa, o que certamente justificaria que fosse ali mesmo a meta de partida e de chegada da corrida de jericos dos 16 de Maio. Comecei pelas figuras, evidentemente. Depois procurei-me nos livros. E ia lá quase todos os dias. Em miúdo, ainda em tempo de escola primária, parece-me que sob a orientação rigorosa mas gentil do Senhor Alves, pai, espero não estar a dizer uma asneira muito grande, e depois já em moço, no meu regresso a casa pós-25 de Abril e pós-seminário, beneficiando da cumplicidade generosa e vanguardista do Professor Alberto Alves, que me abriu os olhos para um mundo inteiro que eu não sabia. Foi a minha sorte. Os livros são armas poderosas. E, em Fafe, estavam em boas mãos.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de FafeHoje é Dia Internacional da Literacia e Dia Internacional da Alfabetização.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Eram pobres e tinham dono

Virtudes teologais
Fé, esperança e caridade. A fé move montanhas. A esperança é a última a morrer. E a caridade tem dias.

Antigamente a caridade tinha dia certo e era um descanso. Pelo menos em Fafe. Às sextas-feiras, vamos supor, os pobres manquelitavam de porta em porta pedindo "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Os pobres da parte de fora da porta eram uns desgraçados muito rotos e muito sujos e muito aleijados, e eram assim de propósito para se distinguirem dos pobres da parte de dentro da porta, que já tinham em cima da "cristaleira" umas moedinhas negras separadas e preparadas para a função. Éramos todos pobres, dum e doutro lado da porta, uns mais, outros menos, e, à falta de quem governasse por nós, em Lisboa ou mesmo na Câmara, e porque ainda não havia "Europa", nada mais nos restava senão sermos uns para os outros. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.
(A "cristaleira" tinha sido comprada em terceira mão e paga em honradas prestações mensais.)
Naquele tempo os ricos tinham os seus próprios pobres, privativos, pessoais porém transmissíveis. Os pobres eram deixados em herança. Ter pobres por conta era, pelo menos em Fafe, inequívoco sinal exterior de riqueza. Os pobres eram exibidos, bastas vezes à porta da igreja, como gado preso à argola do tasco em dia de moscas e feira semanal. Para o senso comum, quantos mais pobres alguém tivesse, mais rico era. Os pobres eram, portanto, uma medida de riqueza e uma necessidade da Nação para que os ricos prosperassem. Quantos mais pobres Portugal tivesse e quanto mais pobres fossem os pobres portugueses, mais ricos seriam os nossos ricos, e isso certamente era bom para o Produto Interno Bruto.
Isto é: a pobreza convinha-nos, aos pobres. A pobreza era o progresso da Nação. O regime ensinava-nos desde os bancos da escola que felicidade era sermos pobres mas honrados e termos as unhas das mãos sempre limpas. E isso deixava-me cheio de pena dos ricos, infelizes, principalmente dos ricos muito ricos, que ainda, por cima, tinham as mãos sujas.
(Os ricos, pelo menos os de Fafe, não davam a roupa nem o calçado que já não lhes serviam. Vendiam a roupa e o calçado, a pronto, aos pobres da parte de dentro da porta. Vendiam. Os pobres da parte de dentro da porta, passados alguns meses de uso, davam aos pobres da parte de fora da porta a roupa e o calçado que tinham comprado a pronto aos ricos. Davam. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.)
Graças a Deus, isto era só antigamente.

P.S. - Versão publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Caridade.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Quem vê caras não vê orações

Branco mais branco
Deu o braço a torcer. E depois pô-lo a corar. Era uma pessoa muito limpa.

Um daqueles famosos restaurantes de peixe na brasa aqui ao lado, na Rua Heróis de França, Matosinhos à beira-mar, estais a ver, já vos chegou o cheiro? Ainda é cedo. Pouco passa das oito da manhã, uma velhinha varre cerimoniosamente a esplanada que por acaso é passeio ocupado com ordem municipal, os peões têm de andar pela estrada, toureando carros felizmente em sentido único. Asseada como se fosse domingo, a velhinha, corpo franzino, cabelos brancos de neve, ajeitados à moda da televisão, da telenovela, uma carinha doce, redonda como um minúsculo sol resplandecendo bondade, olhos apontados ao chão, espertos, criteriosos, os olhos, a velhinha varre varre, vagarosa e competente. Varre varre vassourinha, se varreres bem dou-te um vintém, se varreres mal dou-te um real. Se os anjos varressem e fossem velhinhas, e competentes, eram ela certamente e varreriam assim mais ou menos. Lembro-me de velhinhas tais quais no meu tempo de criança, em Fafe, as saudades doem-me na zona do fígado, estou também a ficar velho. A rua naquele sítio àquela hora éramos a velhinha e eu. Eu, que venho de mercar sardinhas madrugadoras e vivas, estremeço de comoção.
Varre varre a velhinha doce e cerimoniosa, olhos espertos e belos. Olhos que não enganam. Bondosos. Cara de sol, de anjo. E, eu a passar-lhe pelas costas, diz a velhinha, como se fosse um mantra ou, vá lá, a recitação do terço, à tardinha, na Igreja Matriz, antes da bênção do Santíssimo: - Filhos da puta! Era mas é fodê-los! Mandá-los a todos prò caralho! À puta que os pariu!...
É. Ninguém diga que está livre, amém!

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Sãos Joões há só dois, fora os outros

Foto Hernâni Von Doellinger

(Como toda a gente sabe - como ficou muito bem aprendido no filme "O Pai Tirano", o antigo, o verdadeiro, o de António Lopes Ribeiro que eu ainda conheci pessoalmente, o a preto e branco, o de 1941, o que tem mesmo piada -, como toda a gente sabe, dizia, há duas qualidades de botas de caça: as botas de caça pum e as botas de caça pim, Vasco Santana dixit. Pois, por estranho que possa parecer, com os Sãos Joões sucede exactamente o mesmo. Quer-se dizer.)

O azar do nosso São João, o Baptista, é não ter sido o outro, o Evangelista. O nosso São João era um bocado esquisito mas muito homem: profeta ambulante, vestia-se de peles de camelo, usava um cinto de couro, comia gafanhotos e mel e convivia muito bem com cabritinhos e cabritinhas. Clamava no deserto. Um deserto que inopinadamente tinha um rio chamado Jordão como o cinema de Guimarães, e foi ali mesmo, no rio que não no cinema, que João, o nosso, inventou o baptismo e baptizou o primo Jesus. O nosso São João era a Ana Gomes daquele tempo. Punha a boca no trombone sem pauta nem contenção e isso haveria de custar-lhe a cabeça, ainda nem chegara aos trinta anos. Os amigos do Baptista tinham uma certa vergonha dele e muito gosto na própria cabeça, e por isso deram-lhe o nome de código de O Precursor, para que não se soubesse de quem falavam quando falavam. Hoje em dia, o analfabetismo instalado chama-lhe "O Percursor".
O São João que não é nosso, o Evangelista, era mais manso e teve uma vida flauteada. Morreu velho e de morte natural. Filho de Zebedeu, irmão de Tiago Maior e eventualmente sócio de André e Pedro no negócio das pescas, seria o mais novo dos doze apóstolos do Nazareno, segundo consta. De pescador quiçá analfabeto, fez-se teólogo e escritor. De evangelho e epístolas, apocalíptico até mais não. Discípulo dilecto, João, o que não é nosso, era aquele a quem Jesus amava, o que se lhe aninhou no peito durante a Última Ceia, está nos retratos. E o assunto continua a prestar-se, ainda hoje, às mais diversas e variadas.

No meu tempo de Fafe, quanto a santos populares, o São João era um hospital muito grande no Porto, felizmente com a camioneta da João Carlos Soares a passar-lhe à porta. Tínhamos, isso sim, o Santo António da minha rua, o São Pedro da Recta, creio que ainda frequentei o São Pedro da Granja e, já de saída, talvez tenha presenciado os primeiros passos do que é hoje o famoso São João da Fábrica do Ferro. Quanto ao resto, deixai estar que está bem.
O mais que se sabia do São João eram uns versinhos muito antigos que certamente pertencem ao cancioneiro fafense e era de norma cantar à mesa na noite de passagem de ano, quando já estavam todos mais para lá do que para cá. Assim fazíamos na nossa família. Insisto, para quem não é de Fafe: fafense deve ler-se e dizer-se fafénsse. E os versinhos contavam mais ou menos assim:

O São João, ó dlindlindlim,
tem um carneiro, ó dlandlandlam,
com dois guizos no pescoço.
E quando toca, ó dlindlindlim,
o guizo fino, ó dlandlandlam,
também toca o guizo grosso.


Agora, quereis saber uma coisa sem pés nem cabeça, literalmente sem cabeça? É o seguinte: a 24 de Junho, com uma festa popular que começa logo a 23, o povo assinala em grande alegria o nascimento do santo, mas a Igreja Católica e outras tendências cristãs celebram a 29 de Agosto o Dia do Martírio de São João Baptista, ou a Decapitação de João Baptista, ou a Decapitação de São João Baptista, ou a Decapitação do Anunciador, ou a Decapitação do Precursor. Quer-se dizer: festeja-se a também chamada degolação do nosso São João. Valha-nos Deus! A Igreja faz da barbaridade uma festa, e não há maneira de ganhar juízo.

P.S. - Texto revisto e aumentado, publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia do Martírio de São João Baptista.

domingo, 24 de agosto de 2025

O banheiro e a banheira

Foto Hernâni Von Doellinger

Havia o banheiro. Que era um senhor geralmente concessionário de um pedaço de praia camarária e que, pelo Verão, na chamada época balnear, alugava barracas e cadeiras, e disso fazia modo de vida para o ano inteiro. É só ir à Póvoa de Varzim, à nossa Póvoa, a Póvoa que alimentamos e que nos chama "parolos", aos fafenses. Havia o banheiro. Que era um senhor robusto de calças arregaçadas que se embrulhava numa vestimenta de oleado de cor mais ou menos berrante, velho salva-vidas que levava ao banho de mar, a bem ou a mal, adultos enfermos e sem poder de locomoção ou crianças renitentes e ganintes, como no meu tempo de miúdo, na Colónia Balnear Doutor Oliveira Salazar, na Gala, Figueira da Foz, para pobres registados e sem piolhos, após vistoria relâmpago no Posto Médico de Fafe, ou ainda hoje em dia no ritual do banho santo de São Bartolomeu do Mar, Esposende. Havia o banheiro. Que era a retrete, a sentina, a latrina, a privada, o WC, a casa de banho, a casinha, o lavatório, a tina, o lavabo, o sanitário, a sanita, o toalete, sobretudo no Brasil. Portanto havia o banheiro. E havia a banheira. A banheira era a mulher do banheiro.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia de São Bartolomeu.

O verdadeiro Artista

O andar de John Wayne
O que ele queria mesmo era ter um andar como o do John Wayne. Aquele andar, estais a ver? O andar inteiro. Doze quartos, duas cozinhas, piscina com escorrega e, evidentemente, marquise.

Vem aí o Dia do Artista e eu não sei dele. Não sei do Artista, quero dizer. O Artista é de Fafe, do meu tempo, morava no Picotalho, à beira da velha casa do Sr. Armindo Bristol e do Carlos Frangueiro, andou comigo na escola, o Carlos também, o Artista é portanto rapaz da nossa idade. O Artista era Artista porque se identificava com os artistas da televisão e do cinema, e estava bem visto, porque os artistas eram os galãs, os protagonistas, os que levavam a rapariga, os que nunca morriam. Por isso, antes de começar a brincadeira, o Artista avisava logo, sem dar vez a mais ninguém: "eu é que sou o Artista". Uns diziam que eram Eusébio, outros que eram Adrião, uns diziam que eram Zorro, outros que eram Daniel Boone. O Artista era o Artista, e estava tudo dito.
Por razões talvez profissionais, o Artista gostava de frequentar a sala de bilhares do Café Império em vez do Peludo, ao contrário de nós todos, vestia sempre com grande categoria e tinha um andar estudado, foi trabalhar para o Porto há quase cinquenta anos, depois disso encontrámo-nos em meia dúzia de fortuitas ocasiões, curiosamente sempre em Fafe, ele cada vez mais impecável, parecia um lorde, invariavelmente apressado, e a seguir perdi-lhe o rasto, nunca mais o vi. Alguém me sabe dizer o que é feito do Artista?

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia do Artista.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Ia-se ao Largo ver os retratos

Gravura Município de Fafe

No tempo dos codaques
A câmara Kodak foi registada pelo americano George Eastman em 1888. E alcançou tamanho sucesso que a marca rapidamente se transformou em sinónimo do próprio produto, em substantivo comum. Codaque passou a significar máquina fotográfica. Ainda hoje, para os mais antigos como eu, um codaque é uma máquina fotográfica, seja de que marca for, e uma máquina fotográfica, seja de que marca for, é um codaque. Ou por outra, trabalho é trabalho e codaque é codaque.
Exactamente como se passou com o sumol, o panique, a gilete, a chiclete, o cotonete, o jipe, o caterpílar, o cimbalino, o jacuzi, o taparuer, a vaselina, o velcro, o quispo, a lambreta, a mobilete, a solarine, o botox, a licra, o post-it, o rímel, o sonotone e as crocas - que eram marcas e passaram a ser coisas.
Actualmente os telemóveis também são codaques, e fazem o serviço praticamente sozinhos.

Houve um tempo em que as fotografias eram tiradas por fotógrafos. Fotógrafos profissionais, competentes, conhecedores, eficazes regra geral, artistas às vezes. Por outro lado, nesse tempo ainda não havia telemóveis e portanto, quando era preciso falar com alguém que não estivesse presente, ligava-se da máquina fotográfica, nada mais simples. Os antigos sabiam tudo e antigamente é que era, estou farto de dizer. Só era pena morrerem tão cedo e sem saberem de quê. Naquele tempo tínhamos dois fotógrafos e nevava em Fafe. Não era preciso ir mais longe. Em Fafe, mesmo no centro da vila. Não era necessário alongar vistas para os cumes da Lameira ou da Lagoa e sonhar aventuras mais ou menos (hi)malaicas. Era ali nas nossas mãos, aos nossos pés, a realidade. O nosso Santo Velho pintava-se de branco, contavam-se os centímetros de altura do "nevão", faziam-se bonecos, pelo menos boneco, com nariz de cenoura e tudo, declaravam-se guerras de bolas de neve, ensaiavam-se trambolhões de criar bicho, chorar era proibido, queixinhas, nem pensar, ou ainda levávamos mais quando chegássemos a casa.
Os campos nas nossas traseiras, onde hoje está o Pavilhão Municipal, encontravam-se de vago e enchiam-se de moçarada brincalhona e apressada, porque a neve era efémera e sabia-se lá quantos anos estaríamos depois outra vez à espera que ela tornasse. Lembro-me particularmente de uma ocasião, um verdadeiro acontecimento: o Foto Victor com os filhos a fazerem uma festa tremenda, e o Foto Victor a tirar retratos atrás de retratos, fotografias sorrateiramente alpinas que depois expôs, algumas, nas montras da loja em frente aos Correios. Foi um sucesso.
Fafe também tinha disto, nomes assim, esdrúxulos. O Sr. Victor era fotógrafo com porta aberta e o estabelecimento chamava-se Foto Victor. Portanto o Sr. Victor passou a chamar-se Foto Victor. Aliás, como o Foto Jóia, mas este no Largo, à beira do Talho, do Romeu e do Fernando da Sede, como quem olha para o Mário da Louça e para a Electra. Foto Jóia era simultaneamente o nome do "estúdio" e do seu proprietário. "Vem aí o Foto Jóia!", dizia-se, e era a coisa mais natural do mundo.
Curiosamente, nunca apanhei o Foto Jóia no meio da neve, mas lembro-me de que foi ele quem me fez as fotografias para o meu primeiro bilhete de identidade, que era preciso para irmos para França ter com o nosso pai, mas, já de malas feitas, acabámos por não ir, porque o nosso pai morreu no Natal francês, desgraçadamente na neve, um ou dois meses antes da viagem programada, e a minha vida deu então esta volta que é assim.
Fafe era uma terra compacta e tudo acontecia no Largo. A feira semanal, a feira das cebolas, os 16 de Maio, a Senhora de Antime, a Volta a Portugal, cortejos alegóricos, corsos de carnaval, batalhas de flores, circos de manga curta, robertos, gincanas automóveis, corridas de patins, corridas de jericos, corridas de São Silvestre, passagens de ano, dias dos combatentes, desfiles da Mocidade e da Legião Portuguesa, despedidas e chegadas, encontros, reencontros, partidas para a Ultramar. Era tudo ali. O Largo era o centro, o Largo era Fafe. Nas ruas e nos lugares das redondezas dizia-se "Vou a Fafe", querendo dizer que se ia ao Largo.
As lojas dos dois fotógrafos, os seus escaparates, eram locais sagrados de peregrinação na vila de antanho. Aos finais de tarde ou no fim-de-semana, era à pinha. Era famoso o átrio do Foto Jóia. Ali se ficava a saber quem casou, os padrinhos e convidados, quem baptizou, os padrinhos e convidados, quem tirou retrato novo mais ou menos atiradiço sabe-se lá com que fim, amiúde para mandar para Angola, Moçambique, Guiné. Ali se revelavam namoros a estrear, paulnewmans de trazer por casa, misses universo que nunca seriam. As bodas de ouro, as juras de amor, o fato feito por medida, o carro na rodagem, a filha recém-doutora, o soldadinho condecorado na guerra e que haveria de chegar num caixão, a vida dos outros ali escarrapachada atrás do vidro impenetrável, na arte exigente e discreta do preto e branco ou no exagero quase pornográfico da cor, novidade em folha. A vida retocada à mão, porque o photoshop ainda não tinha sido inventado. Era. Ainda faltavam muitos anos para a javardice dos reality shows e para os despudores de todos os facebooks, mas não estávamos mal servidos, não senhor...
Havia uma certa rivalidade entre o Foto Victor e o Foto Jóia, e, estranhamente, também entre as respectivas clientelas, coisa tola, sem sentido, nós em casa por acaso éramos Foto Jóia! Fazia parte, em Fafe, esta maneira de nos dividirmos por tudo e por nada, uns por uns e outros por outros, como claques de nascença e irremediáveis, por causa dos dois clubes de futebol, das duas bandas de música, da Escola Industrial e do Colégio, da Fábrica do Ferro e do Bugio, do Fredinho Bastos e do Tangerina, dos "Bombeiros Novos" e dos "Bombeiros Velhos" e do mais que se pudesse inventar e sobretudo desse para desunir, disputar, desconversar. Era a trave mestra da boa e velha idiossincrasia fafense, concordar apenas em discordar, sem dúvida um bom princípio democrático, mas muito pouco jeitoso para o lado prático da vida. Uma coisa é certa, porém: Foto Jóia e Foto Victor frequentavam ambos o tasco do Nacor, o que, já agora, só lhes abona a respeito, e não me constam notícias de confrontos ou baixas a registar.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Mundial da Fotografia. Vivam os nossos velhos fotógrafos! Vivam os retratos e as memórias! Vivam os presentes e os ausentes! Viva Fafe! 

domingo, 17 de agosto de 2025

Rabo escondido com gato de fora

Já aqui contei, mas hoje vem outra vez a propósito. Em Fafe, no meu tempo, as pessoas gostavam muito de animais, como por exemplo gatos. Quase todos os lares tinham o seu gato ou a sua gata de companhia, principalmente derivado aos ratos, que também eram muitos e caseiros, mas recebiam visitas. Evidentemente estou a falar da parte de Fafe que me diz respeito e conheço, Fafe dos pobres. Ora, havendo gatos e gatas, havia também ninhadas, porque as coisas são como são e até os bichinhos gostam. Mas alimentar um ou dois gatos, mesmo com sobras, é uma coisa, outra coisa é sustentar uma família inteira de tarecos, ainda por cima largam pêlo como o caralho e nos primeiros tempos, antes de levarem naquele focinho para aprenderem, coitadinhos, cagam e mijam em todo o lado sem respeito nenhum. Que se segue? As pessoas gostavam muito de animais e pegavam na ninhada, deixavam um gatito de reserva, o mais bonito e esperto, e enfiavam os outros todos numa saca de sarapilheira bem fechada e bem atada a uma pedra bem pesada e pegavam na pedra, na saca e nos gatos e atiravam tudo ao rio, que eram vários mas lingrinhas. Não sei se Fafe conserva esta bonita tradição. E quem diz Fafe, diz Portugal regra geral.

A este respeito, hoje é Dia do Gato Preto, e daí a repetição. Histórias assim, conto-as normalmente no meu blogue Mistérios de Fafe. Devido às superstições em certas culturas, e dizer aqui "culturas" é capaz de ser um exagero, senão um equívoco, o gato preto é muitas vezes associado ao azar. Segundo leio, o gato preto é o mais abandonado, o menos adoptado e o mais rapidamente abatido dos gatos.

P.S. - Hoje é Dia do Gato Preto.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Fafe em ponto

Pegou em todas as suas economias e comprou um relógio de ponto. Agora já só lhe falta o emprego.

O mundo girava ao ritmo dos sinos da Igreja Nova e do apito da Fábrica do Ferro. Estávamos em Fafe e naquele tempo não me constava que houvesse outro mundo. A vida, as horas, os chamamentos, era tudo com norma, à tabela e a toques. Para a fé e para o trabalho, para a devoção e para a exploração - os sinos avisavam para a missa, o apito marcava a mudança de turnos, entradas e saídas de povo às revoadas na velha Companhia de Fiação e Tecidos de Fafe. Comia-se quando a igreja desse meio-dia. Aquelas eram as horas certas de Fafe. Oficiais.
Claro que havia quem destoasse, porque o mundo, para ser realmente mundo completo, e Fafe era completíssimo, tem de ter de tudo, mesmo tolos e destoantes, senão o que é que seria de mim? E era também o caso daquele operário da Fábrica do Ferro que uma vez foi impedido de picar o ponto para pegar ao serviço, porque, disseram-lhe, passava um minuto da hora.
- Estás atrasado! Não ouviste o apito? - atirou o porteiro.
- O apito está adiantado, ainda faltam dois minutos. Olha, tenho e relógio acertado pela Emissora Nacional! - argumentou o operário.
- Então vai trabalhar para a Emissora Nacional... - mandou o porteiro.

Era assim a vida. Era assim o mundo. E o mundo era em Fafe, disso não há dúvidas.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. A Emissora Nacional, actual RDP, foi fundada oficialmente no dia 4 de Agosto de 1935. Era a rádio nacional e rádio do regime. Os seus "pis" horários, antes dos noticiários, acertavam os relógios do país inteiro.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Moelas de coelho só no Peixoto!

O requinte e o requente
A diferença entre requintado e requentado passa quase despercebida. No arroz de marisco é que se nota mais. E na sanita, consequentemente.

Embora notoriamente os coelhos não tenham moelas, devo informar que ninguém as cozinhava tão bem como o meu amigo Peixoto, em Fafe. Uma verdadeira especialidade! O Peixoto tinha mãozinha amestrada para a plancha e para a cozinha em geral. Eram famosos os seus pregos, em pão ou aos trambolhões, as suas francesinhas chamavam pessoas de fora, o seu marisco, ou "meterial", estava sempre muito bem trabalhado, uma categoria, mas as moelas de coelho suplantavam tudo o que é possível imaginar. Eram incomparáveis, exclusivas, únicas, um pitéu digno de deuses, indesmentível ambrosia do ramo dos salgados e afins. As moelas de coelho e os ovos cozidos, ovos de galo, às vezes, mas que na semana da Páscoa eram evidentemente ovos de coelha, e lá estavam expostos em cima do balcão, com o cu enfiado em sal grosso como manda a tradição, ao lado da terrina das moelas prontas a aquecer.
Eu ia a Fafe e ia ao Peixoto, como se fosse uma religião. A minha mulher também ia e era muito bem tratada. E o meu filho foi ensinado a ir ao Peixoto desde pequenino. Quando eu ia lá com amigos, tantas e tantas vezes, geralmente a horas escusadas, o Peixoto perguntava-me sempre pela família e mandava-me trazer "cumprimentos para a esposa e para o menino". E eu trazia.
(E é curioso. Porque, pensando bem, o Sr. Peixoto dispensava-nos, a mim e à minha família, um certo tratamento de excepção, uma gentileza indubitavelmente sincera mas que, na verdade, não era lá muito do seu feitio...)
Pois aqui há coisa de três ou quatro anos, talvez mais ou talvez menos, eu e o tempo agora não andamos certos, fui a Fafe e fui ao Peixoto, de fugida, para lhe dar um abraço e duas de letra, mas Peixoto de grilo. Foi um choque muito grande, uma tristeza que ainda me dói. Porque o Peixoto faz-me falta. O malandro passou o negócio, e decerto encheu-se de massa, mas não me avisou. Na verdade, ninguém me avisou. E devia ter saído em edital camarário, com voto de louvor e medalha: afinal, o Peixoto era uma instituição, dizia eu.
Mas lá está, o que eu digo não se escreve, e muito menos em Fafe, a não ser que seja eu próprio a fazê-lo. E portanto cá está.

Por outro lado. A ciência ainda não encontrou uma resposta plausível e, pelo menos, isenta de misoginia acerca de porque é que os ovos de galo são maiores do que os ovos de galinha, mas não é isso que interessa aqui agora. Lembrei-me foi do seguinte: se existe o Dia Internacional do Coelho, que se assinala anualmente no último sábado de Setembro, eu acho que Fafe, pelo menos Fafe, devia festejar o Dia Mundial das Moelas de Coelho, já que as inventámos. E a criação de uma, digamos assim, Confraria Gastronómica das Moelas de Coelho à Moda de Fafe, o seu a seu dono, também não estaria mal vista. A minha terra, diga-se em abono da verdade, é muito dada a isto das confrarias e dos dias internacionais ou mundiais. Lembro-me, por exemplo, que o Dia Internacional do Tigre, que não sei se já tinha sido descoberto para o dia 29 de Julho, era celebrado quando calhava, exactamente no Peixoto, pela madrugada dentro e já com as portas encerradas e vidros tapados. Íamos do Porto, de propósito, eu e a minha equipa, depois do fecho do jornal, e não podia ser de outra forma. O "meterial" era um bom "meterial", mas o molho secreto do Peixoto fazia-o ainda melhor. É claro que estou a falar de camarões, dos enormes, tigres, abertos em dois, grelhados na chapa, e o Peixoto, que me avisava quando os recebia, era realmente um desembaraçado domador. Na hora de pagar, por minha conta e com todo o gosto, lá se ia praticamente a entrada para a compra de uma casa, mas éramos novos e tolos, e o que é que se havia de fazer?...

P.S. - Versão revista e (bastante) aumentada, publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional do Tigre.

domingo, 13 de julho de 2025

Os dias da Senhora de Antime

Foto blogue Morgado de Fafe

Anjinhos, não!
Deveria querer dizer alguma coisa a nosso respeito, agora que penso nisso, mas não sei se diz. Já reparastes, certamente. Não há procissão no mundo que leve e chame tanto povo como a procissão da Senhora de Antime, em Fafe. Um mar de gente, povo atafulhado, a rebentar pelas costuras, sem espaço sequer para descruzar os braços e coçar repentinas aflições. Isso, povo em barda e de todos os feitios. Nós. O povo da terra, inteiro e simples, ali na procissão como na vida. Povo, povo, povo. Mas anjinhos, não...

Mete-se o mês de Julho, chega o calor, e Fafe vive os seus dias mais extraordinários. É tempo de Senhora de Antime. São as Festas de Fafe, que já foram da Vila, do Concelho e da Cidade. Os senhores da Câmara podem chamar-lhe o que quiserem, e até já lhe chamaram "certame", santa ignorância, mas toda a gente sabe que é a Senhora de Antime e o resto é conversa. Toda a gente, quero eu dizer, os fafenses do rés-do-chão, o povo, que é quem realmente sabe das coisas. Lá em cima, há evidentemente uma "organização", que antigamente era comissão de festas, e a "organização" apresenta um programa com muitos bombos, cabeçudos e gigantones, bandas filarmónicas, ranchos folclóricos, fado de Coimbra, nunca percebi porquê, e um considerável naipe de artistas mais ou menos musicais, à dúzia, de dentro e de fora, do TikTok e da televisão, famosos regra geral, excelentes às vezes, para quase todos os gostos. Três ou quatro desses artistas, a "organização" é que escolhe quais, são anunciados como "cabeças de cartaz".
A Senhora de Antime, no entanto, é a procissão. E isto é tão básico, valha-me Deus! Há séculos que o digo, mas afinal não adianta: a procissão é que é cabeça de cartaz das nossas festas. Domingo, o segundo domingo de Julho é a Senhora de Antime, a Senhora de Antime é esse domingo exacto, o nosso domingo mais fafense, o domingo mais esperado do ano. O dia único de ir "ver a Senhora", que coisa tão linda de dizer! O domingo da procissão que me leva às lágrimas, que quase me sufoca num soluço sacrista, palerma, aperto a mão da Mi, que já sabe do que a casa gasta, despejo a água dos óculos, de sol, para a próxima trago óculos de mergulho, rio-me desajeitadamente para o Kiko, com legendas de cinema mudo, não ligues, filho, é a velhice, não vem mais vinho para esta mesa. O Kiko sorri, faz sinal que percebe, que me compreende, parece que me promete um abraço para melhor altura. Tem razão. A Senhora está mesmo à nossa frente. Foi ao cabeleireiro, penso todos os anos, e aproveito para recompor-me. Não tem nada a ver com fé, religião ou família, é sentimento, fafismo tão-somente, fafismo puro e duro, e fafismo não se explica, vive-se, e nem é preciso ter nascido em Fafe para sentir fafismo, também dou isso de barato.
A procissão é que é. A procissão e a explosão do encontro das duas senhoras, das Dores e da Misericórdia, no Lombo ou na Ponte de São José. A sirene que toca à tradicional paragem dos dois andores no cruzamento do Santo Velho, junto ao Palacete, o nosso sítio combinado, como se os Bombeiros antigos ainda ali estivessem ao pé. E a sirene não toca, é um pranto. As pombas largadas e atordoadas e os salamaleques e foguetes excessivos e emproados à porta dos Paços do Concelho.
A procissão da Senhora de Antime, costumo ensinar a quem não sabe, é provavelmente a melhor procissão do mundo e certamente uma das maiores do mundo. Alguns palavrosos chamam-lhe até "Majestosa Procissão", mas ela é tudo menos majestosa. É popular, é simples, espontânea e incomensurável - a olhos de fora, impreparados, poderá até parecer desorganizada, mas não. É o povo que desce inteiro com as duas senhoras até à vila a que agora chamam cidade, não vejo com que vantagem. O povo de pé-descalço e bico calado, respeitoso, talvez com um flor nos lábios fechados para garantir fidelidade ao silêncio juramentado. Milhares de pagadores de promessas furando em marcha lenta pelo meio de milhares e milhares de devotos de bancada, apreciadores, preguiçosos, retardatários, ressacados, curiosos ou simples mirones, famílias inteiras, reunidas, carteiristas, apalpadores e empernadores que se atravancam nas beiras da estrada e nos passeios das ruas. É uma procissão tremenda e comovente, multitudinária e única, uma procissão a sério - A Procissão -, como tenho a mania de explicar aqui aos meus vizinhos que ficam banzados com a meia dúzia de almas penadas e a dúzia e meia de figurões autárquicos e outras autoridades civis, militares e religiosas, assim catalogadas, que todos os anos acompanham a imagem do Senhor de Matosinhos pelas ruas desta cidade que me acolhe, num deserto que só visto.
A procissão da Senhora de Antime é que é. Por mais dias que metam nas festas, por mais estrelas que chamem ao palco, a procissão será sempre cabeça de cartaz. Em Fafe, ano após ano, a Senhora é que arrasta multidões.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. E a extraordinária procissão é hoje!

domingo, 29 de junho de 2025

O homem e o cão (e vice-versa)

O melhor amigo do cão
Havia um cão que tinha um dono muito bem mandado. Um dono obediente, brincalhão, carinhoso, esperto - só lhe faltava ladrar.

Todas as manhãs o homem e o cão passeiam pela praia, naquela incerta linha de sobe e desce onde o mar enrola na areia e acaba Portugal. Par pândego, havíeis de ver. O homem atira a velha bola de ténis e o cão, dez-réis de cão, rasteirinho e de raça incerta, corre e salta, como uma bala, como uma mola, abocanhando-a, à bola gasta e sebenta, ainda no ar. Cão danado para a brincadeira. E habilidoso. "Bem, muito bem, espectáculo!", diz o homem. E o cão regressa e larga a bola, e corre e salta à volta do homem, e ladra no verdadeiro ladrar que não morde, e abana o rabo, abana, que quer dizer "Obrigado, estou muito contente, mais, quero mais!...", e põe a língua de fora, que quer dizer "Ainda havemos de fazer isto mas ao contrário".
Um quadro enternecedor. Homem e cão, numa simbiose perfeita. O amigo dos animais e o melhor amigo do homem. Fossem eles polícias, o homem e o cão da bola de ténis, matinais frequentadores de oceanos, e estaríamos na presença de um binómio exemplar e definitivo. Decerto já vistes nas notícias: binómio é um polícia e um cão que são colegas de trabalho. Já um carteiro e um cão, se coincidirem, são um perónio. Um perónio partido e o fundilho das calças esgaçado.

(Lembro-me agora. Aquilo de passear o canídeo à beira-mar, eu bem o tentara em Fafe, nos meus vinte anos, com o Buck, o nosso cão na Rua do Assento. A beira-mar que tínhamos mesmo à mão, e por acaso bem jeitosa, se não fossem as silvas e outro restolho jurássico, eram as bordas do rio de Pardelhas, quando levava água, mas o Buck nunca me deu hipótese. O cão era quase do meu tamanho, muito mais forte do que eu e completamente dono do seu nariz. Saímos apenas uma vez. No seu habitat natural, o Buck era manso para as pessoas de dentro e sobretudo para as crianças. Sim, era lerdinho, porém destrambelhado. Gostava muito de brincar com gatos e galinhas, às vezes matava dois ou três frangos, mas era sem querer, diga-se em abono da verdade, fruto da loucura do momento, no descontrolo e afã da brincadeira. Íamos então passear, eu e o cão. Coloquei-lhe a poderosíssima trela, feita por encomenda e medida, própria para bisontes e elefantes, custou uma fortuna, dei-lhe calmamente a primazia, pus o pé fora de porta, todo lampeiro, e, como um raio ou talvez uma enorme marretada, num safanão sem preliminares nem precedentes, fui imediatamente arrastado de cangalhas para o empedrado, levantei-me como e quando pude, sempre de zorra, o Buck galopava a seu bel-prazer, sem parar sequer para cheirar ou alçar a perna, e eu atrás, agarrado à trela como quem se agarra à vida, aos solavancos, aos repelões, aos trambolhões, contra esquinas, árvores de pequeno e médio porte, tabuletas de trânsito e demais mobiliário urbano, o caralho do cão andou a exibir-me e a enxovalhar-me por onde lhe apeteceu, a vila inteira à janela a rir-se de mim, a fazer pouco do moço tolo, o filho da viúva da Bomba, tornei a casa feito num oito, num cristo, quando sua excelência achou que já chegava, e portanto nunca mais.)

Todas as manhãs, dizia, tornando à praia atlântica. Eu também por ali ando comigo pela trela e por isso é que sei o que estava a contar, mas ninguém me atira a bola, e antes assim. Ontem desatei a rir com o raio do cão, que realmente tem jeito, parece do circo o lingrinhas, um autêntico brinca-na-areia. Entre uma acrobacia e outra, o cão tendia a enfiar-se na água, coisa de cão certamente, e o homem dizia "Sai daí, Rex, anda cá, Rex, já vais levar, Rex!...", nem de propósito Rex, eu seja cão se estou a inventar. O cão chamava-se mesmo Rex, como o cão actor, o cão artista da televisão, e, sem terem nada a ver um como o outro, por acaso até vinha a propósito. O homem, que tomara nota do meu riso, decidiu pôr-me ao corrente, quisesse eu ou não: "É todos os dias isto, a mesma merda, ele gosta, o filhadaputa do cão mete-se no mar e eu depois é que me fodo a dar-lhe banho, secar e escovar, olha, lá vai ele outra vez, ó corno!, ó boi!, não adianta, fode-me sempre..."

O cão resolveu apanhar a última, mas sem boca. Estava-se a armar para mim, eu dei fé, creio que lhe percebi até um certo piscar de olho. Dominou a bola com o peito e, sem deixar cair, rematou em grande estilo e foi golo, palavra de honra que foi golo. Depois colocou o açaime ao homem e levou-o para casa.

P.S. - Versão corrigida e (bastante) aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Olha a triste viuvinha

O homem da casa falecia, por esta ou por aquela razão, às vezes inadvertidamente mas geralmente por razão de força maior, e a família tinha logo uma carga de trabalhos, um rol de importantes e inadiáveis decisões a tomar, a primeira das quais era pegar na roupa toda da recém-viúva e mandá-la para a tinturaria, que, se não me engano, ficava ali ao lado do Foto Victor e da entrada para o Senhor Fernando Enfermeiro, junto aos Correios, na hoje muito justamente chamada Rua Dr. António Marques Mendes. A roupa ia para tingir de preto, a roupa e a vida da jovem viúva dali para a frente. Viúva em flagrante delito. Fafe tomava conhecimento e não perdoava. Também sabia ser cruel. Ser-se viúva era uma sentença automaticamente transitada em julgado, um castigo, provavelmente divino, para todos os efeitos. Viúva sem apelo nem agravo. Com penitência mas sem perdão. Doravante, proibida a cor, proibida a alegria, proibido o riso, proibido o sorriso. Sair de casa, apenas para a missa, ida pela volta, nem mais um minuto, encostada às paredes e de olhos no chão e bico calado. Atenção ao comprimento da saia, ao cabelo! Xaile, era preciso muito xaile. E lenço preto escondendo a cabeça, a cara. Os holofotes apontavam para a porta, tomando conta de entradas e saídas, a horas ou fora delas, que nem as havia. A mulher ficava marcada, vigiada, não lhe viesse de repente a tentação, o desejo. Quer-se dizer, era viúva e já não mulher. E começava por ficar pelo menos quinze dias metida na cama, tapada até ao nariz, sem rádio, sem televisão que não tinha e com as luzes sempre apagadas, sozinha, sozinha, sozinha, compulsivamente afastada dos próprios filhos, crianças, alimentada a canjas e venenosas recomendações das putas das vizinhas, onzeneiras, agoirentas e mal-fodidas, para se ir habituando ao resto da vida, como se tivesse acabado de parir o próprio destino. E esta merda toda, ainda por cima, porque o marido lhe morreu.

P.S. - Publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional das Viúvas. Lamento informar.

sábado, 21 de junho de 2025

O boleto e a merenda

Nos grandes concertos sinfónicos, o maestro sai sempre no final de cada peça para ir à casinha mudar a água às azeitonas. Depois volta para as palmas, para as vénias e para as flores, sorridente e aliviado. E os músicos? Os músicos protestam batendo nas estantes e continuam em palco de perninhas apertadas e, quem sabe, a urinarem-se por elas abaixo...

O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto, que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número nas procissões e outras arruadas, mas "ainda não ganhavam". Funcionava, em todo o caso, como um prémio, um extra. Uma espécie de consoada recebida a prestações.
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Beethoven, por exemplo, muito dado a repentinas modificações de humor, compôs algumas dezenas dessas miniaturas para piano, verdadeiras jóias, autênticas obras-primas, a mais famosa das quais será certamente "Für Elise", que toda a gente conhece. Tornando, porém, ao boleto: se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito, na vez da outra banda tocar.
Posso ter inventado esta memória, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E que se segue? Não sei porquê, mas desconfio, a minha cabeça começou então a associar boleto a merenda, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango abusivamente churrascado, moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em vinho até ao nariz.

Vinho, como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para disfarçar o pique a vinagre. Mas bebia-se. Porque beber fazia parte da arte, tinha o seu próprio solfejo. Como eu costumo dizer, e não me canso de repetir, a diferença entre uma colcheia e uma colmeia está na medida. Isto é: uma colmeia corresponde exactamente a uma semicolcheia. E deve servir-se de preferência numa seminfusa. Bem fresca...

P.S. - Versão optimizada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Europeu da Música.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Quando os Tonys eram de Matos

Foto Hernâni Von Doellinger

Sou de Fafe e sou dum tempo. Frequentei os campos de milho do Santo, de Cavadas e do Sabugal, vindimei e pisei uvas, fui a desfolhadas e malhadas, andei em carros de bois e na carroça do Moniz Azeiteiro, fui à merda para selar o forno de cozer broa, ajudei a matar porco, arranquei batatas, depenei frangos, montei jericos, andei aos ninhos e aos pardais, guardei cabras no monte, tínhamos quintal, galinheiro e coelheira, meia dúzia de olhos de couves no tempo delas e um céu com estrelas. Tive feira todas as quartas. Comi gafanhotos, vivos. Fui uma vez ao mar, à pesca da faneca, e trouxe também cavalas e respeito. Eu e a natureza sabemo-nos. Quero campo, montes e rio, se possível com o Atlântico debaixo de olho. Sou um rústico e disto não saio. A cidade é-me modo de vida, mais nada.

Mas nem todos têm a minha sorte. Os lisboetas, por exemplo. Os lisboetas são uns infelizes, uns desgraçados, não sabem da vida, não sabem da terra, não sabem sequer de que terra são. Aqui atrasado, o Continente, esse, o dos supermercados, fazia de velho mestre-escola e, uma vez por ano, tomava conta dos lisboetas, assim ditos, e levava-os em gaiteira excursão de volta às suas raízes mais profundas. Às berças. Aos campos do Minho, de Trás-os-Montes, das Beiras, do Alentejo ou dos Algarves de onde eles partiram há duas ou três gerações, com a saca da merenda enfiada no cajado ao ombro, os pés descalços e as chancas nas mãos. Quer-se dizer: embora o ignorem, os lisboetas são tão parolos como os outros parolos todos à volta. Lisboa já não diferencia. Faz cada vez mais parte do resto que é paisagem neste país que não existe.

Naquele dia, os lisboetas, que são parolos mas não se lembram, aprendiam ou reaprendiam, por exemplo, que o leite não nasce em pacotes, que as galinhas estão vivas antes de estarem mortas (a senhora dona Lili Caneças saberá ainda explicar o fenómeno), que os ovos só podem ser produzidos com aquele feitio ou que o bife não é um animal, pelo menos um animal completo. E, com um bocadinho de sorte, até talvez pudessem descobrir o mais extraordinário segredo da vida, que é: a vaca não dá leite. Isso, a vaca não dá leite, ao contrário do que consta. A vaca não dá leite, não dá carne que serve para a nossa alimentação, não dá pele que serve para fazer sapatos nem dá chifres que servem para fazer pentes, como nos exigiam nas redacções da escola primária.  A vaca não dá nada, porque a vida não é de graça. É preciso ir lá, à vaca, e dar-se ao trabalho e tirar e tratar e transformar e fazer - é assim que o Lopes ensina os netos.
Mas então, o Continente oferecia aos lisboetas uma espécie de circo rural onde não faltavam as vacas e os cavalos, os patos e os gansos, as ovelhas e os porcos, as avestruzes e os burros. E enfartava-os com um megapiquenique a que o analfabetismo vigente não se cansava de chamar "Mega Pic Nic". Um arraial dos antigos para recriar, em plena Avenida da Liberdade e no Parque Eduardo VII, o "espírito do campo", o "ambiente de uma grande quinta", com o patriótico desiderato - acrescentava a propaganda do Continente - de "chamar a atenção dos portugueses para a importância do apoio à produção nacional". Pois se calhar.
E os lisboetas juntavam-se aos milhares, aos milhares de milhares, de boca aberta, entusiasmados até mais não com a novidade, fresquinha e ao vivo, das cores, dos sabores e dos aromas do campo, como se o campo fosse aquilo. Mas, sobretudo, os lisboetas do país inteiro, do país que não existe, iam ao cheiro do concerto do Tony Carreira. À borla. Tony Carreira apresentado aos lisboetas como "o melhor da música portuguesa".
Ora bem. Honra lhe seja, Tony Carreira, isto é, António Manuel Mateus Antunes, 61 anos, natural de Pampilhosa da Serra, é um profissionalão, provavelmente o melhor do seu ofício, mas não é "o melhor da música portuguesa". Entendamo-nos: por mais multidões que congregue, por mais corações que despedace, por mais sutiãs ou cuecas de senhora que lhe atirem ao palco, Tony Carreira é apenas um cantor romântico com imeeeeeenso sucesso e acaba de fazer constar que o próximo disco pode ser o último, Deus o ouça. Mas a música portuguesa, desculpem-me a expressão, é outra coisa. E felizmente.

Depois o Continente trouxe o arraial para o Porto, para os lisboetas do Norte. O estardalhaço chama-se cá em cima Festival da Comida e continua a atafulhar o martirizado Parque da Cidade, aproveitando parte da parafernália montada para o já de si devastador Primavera Sound. E com Tony Carreira sempre!
Este ano é a sétima edição do hecatómbico evento, dias 12 e 13 de Julho, e eu, ferrinho, mais uma vez não ponho lá os pés. Já disse. Sou de Fafe e doutro tempo. Do tempo em que os Tonys eram de Matos.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Piquenique. E Dia Internacional do Sushi. E Dia da Gastronomia Sustentável. E, evidentemente, dia de ouvir Tony de Matos.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...