sábado, 30 de setembro de 2023

A Bíblia era em Cima da Arcada

O sítio da Bíblia, em Fafe, era em Cima da Arcada, às quartas-feiras, entre o homem da banha de cobra e o triciclo motorizado com as mezinhas e os milagres da santa Alexandrina de Balasar, tudo muito bem documentado. Em certas ocasiões também por lá constava o Rei das Limas, que usava um capacete colonial e tinha lábia de encantador. A Bíblia apresentava-se nuns grandes desenhos muito coloridos e muito bonitos, montados num cavalete de madeira, e eu tinha-lhes muita devoção porque me pareciam cartazes de cinema, cenas de filmes de gladiadores e assim, e o cinema, naquela altura, era a minha verdadeira religião.
Quarta-feira era e é dia de feira semanal em Fafe. E eu perdia-me ali, naquele pedaço de passeio junto às escadas que desciam para o Largo antigo, mesmo em frente à actual praça de táxis. Adorava as lérias do cavalheiro das limas, facas e tesouras, que afinal vendia tudo e um par de botas, ajudado pela mulher, uma senhora toda jeitosa, em cima da camioneta. Falava pelos cotovelos, o homem, embora, derivado aos perdigotos, tivesse pendurado ao pescoço, por um arame, um potente microfone envolto num lenço de assoar que era uma categoria. Dizia que tinha nascido numa freguesia de Fafe, não me lembro em qual - e Serafão vem-me agora à cabeça, mas não sei porquê -, e contava as aventuras passadas nas suas mais de mil voltas ao mundo, sobretudo a África, e daí certamente o capacete. Para mim, estava tudo explicado. Com aquele capacete, o arame, o microfone e o lenço, eu via-o até, ao intrépido Rei das Limas, a ir à Lua ou mesmo a Marte, assim equipado de explorador. Ainda por cima, o astronauta era nosso, de Fafe, eventualmente de Serafão, não sei porquê, insisto, e quem diz Serafão pode dizer Moreira de Rei...
Eu admirava os propagandistas. Profetas, apóstolos, missionários, pregadores, palavristas. Propagandistas. Costumava, aliás, colaborar com o da banha da cobra, era o seu habitual ajudante naqueles números gagos de chamar povo e enganar tolos, a promessa sucessivamente adiada de exibir a gigantesca cobra jibóia guardada na velha mala de cartão colocada, sob rigorosas medidas de segurança, em cima de um banco de cozinha manco de uma perna. Competia-me alinhar em duas ou três pataqueiras habilidades de circo. Eu era o palhaço pobre, a cobaia, a vítima, e gostava de fazer parte. No término do espectáculo, ou da apresentação, digamos assim, o vendedor de banha da cobra dava-me de pagamento um pequeno sabonete que eu, de todas as vezes, entregava religiosamente à minha mãe, e a esperadíssima cobra, ia-se a ver, pouco maior era do que a bicha solitária exposta num frasco cheio de álcool e que, colocada sobre o capô do carro, como prova, ao lado das dezenas de embalagens da famosa pomada multifunções, atestava aos mais cépticos, caso os houvesse, que o assunto era científico, e de cura garantida, como estava ali à vista de toda a gente.
Eu deixava-me seduzir. Os da Bíblia explicavam os desenhos, um atrás do outro, qual deles o mais impactante e sugestivo, com aquelas senhoras muito vestidas e de cabelos compridos e aqueles senhores muito barbudos e grisalhos, as senhoras e os senhores em respeitosas poses colossais, e seguiam-se confortáveis paraísos terreais, e serpentes onzeneiras, e dilúvios vingativos, e cordeiros degolados, e sodomas e gomorras, e sarças ardentes, e cavalos e lanças, e baleias e leões, e pragas de gafanhotos, e mares abertos ao meio, e davides e golias, e céus escancarados, e bastante inferno, e raios e coriscos, e o fim do mundo, que por acaso em Fafe era feminino, dizia-se "a" fim do mundo. Cada conjunto de desenhos era um história inteira, completa, um filme. Pelo menos para mim. Spartacus, Maximus, Maciste, Hércules, Sansão, Demétrio, Ursus, eu via-os ali, claramente vistos. Até via o Homem Mais Forte do Mundo, que mais tarde conheceria pessoalmente, não é para me gabar, eu vi-o antes de o ver, juro, lá estava ele estampado de pleno direito nos santos desenhos, mas essa parte os da Bíblia às quartas-feiras infelizmente nunca viram, não sabiam, não faziam ideia. Eram, Deus lhes perdoe, uns circunspetos.
Ah! A Bíblia! Eu adorava a Bíblia. Eu adoro a Bíblia. E ainda estou para perceber como é que nunca cheguei atrasado à escola...

Ora bem. No dia 30 de Setembro de 1452, faz hoje anos, começou a ser impressa a chamada Bíblia de Gutenberg, considerada o primeiro livro do mundo. Hoje é Dia da Bíblia Católica, crê-se que em homenagem a São Jerónimo, doutor da Igreja e conhecido por ser o primeiro tradutor das Escrituras para o latim vulgar, popularizando assim o seu conteúdo. Já agora, e só para que conste: a minha Bíblia é protestante. Curiosamente, hoje é também Dia da Blasfémia ou, melhor dito, Dia Internacional do Direito à Blasfémia.
Ainda a respeito da Bíblia. Ando a ler "O Reino", de Emmanuel Carrère. Uma delícia, uma obra-prima.

E viu Deus que isto era bom

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

As despesas da corrida

Fez todas as despesas da corrida. Quando lhe apresentaram a conta, no fim, ia morrendo do coração...

Amor à camisola

Marcou golo. Golaço! Deslizou de joelhos pela relva, arrancou a bandeirola de canto, fez um coração com aos mãos para a câmara mais próxima, bateu no peito como tarzan, abraçou-se à camisola suada, beijou-a com acrisolada paixão, puxou-a mais para si e para cima, no limite do amarelo, e... assoou-se-lhe copiosamente.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Coração.

Na catedral da vitela assada


Festival da Vitela Assada à Moda de Fafe, em oitava edição, no fim-de-semana de 7 e 8 de Outubro. Marque na agenda! De regresso ao formato inicial, em tenda, o certame assenta arraiais na Praça das Comunidades (espaço da feira semanal), com a participação de quatro restaurantes do concelho - Adega Popular, Casa de Pasto Reis, Desigual e Dom Egas.
A famosa vitela assada em forno de lenha, vinho verde, pão-de-ló e doces de gema, num menu de degustação a módicos 15 euros por pessoa. Mostra de artesanato e produtos regionais, muita música e animação. Mais informação sobre o evento, aqui. E mais sobre a vitela assada à moda de Fafe, sob o meu ponto de vista, aqui, aqui, aqui e aqui.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O princípio da sabedoria

O princípio da sabedoria é a letra esse. Essa é que é essa.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Direito ao Saber. Também é Dia Internacional para o Acesso Universal à Informação, Dia de Confúcio, Dia Marítimo Mundial, Dia Mundial da Raiva e dia de ligar à minha mãe. É, portanto, um dia em cheio...

Um grande passo para a humanidade

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

No que respeita à canalização

O Brasil celebra hoje o Dia do Encanador, ou Dia do Canalizador, como ainda se diz em Portugal. O Dia do Canalizador é um dia muito importante para as donas de casa em geral e nomeadamente para o segmento pornográfico da indústria cinematográfica. Fafe nunca teve grande tradição no que diz respeito a filmes pornográficos, pelo menos antes da invenção dos telemóveis com vídeo e das redes sociais. No meu tempo, ia-se a Guimarães, ao Jordão. E era para adultos. Pervertidos, mas maiores de idade. E era isto.

Em cada esquina um amigo

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Relações públicas, vícios privados

Uma vez, há muitos anos, começava eu no meu ofício, mandaram-me a uma conferência de imprensa no palacete da secção do Porto da Ordem dos Médicos. A Ordem dos Médicos do Porto tinha então um assessor de imprensa, relações públicas ou director de comunicação, como parece que agora se diz, que era jornalista no activo, certamente com carteira profissional validada, com cargo de chefia em agência noticiosa pública e que, se a memória não me atraiçoa, também era treinador de futebol. Era portanto o verdadeiro enciclopedista do século vinte. Ou o sebastião come tudo, tudo, tudo. O homem sorria à porta da salinha preparada, com uns bilhetinhos na mão que ia entregando um ou dois a cada jornalista que entrava, como se estivesse a passar rifas.
Os bilhetinhos. Eram perguntinhas dactilografadas como quadras para concurso de São João no Jornal de Notícias. As perguntinhas que os da Ordem dos Médicos do Porto ou pelo menos o meu obtuso camarada queriam que os jornalistas fizessem na tal conferência de imprensa, posto que eles por acaso já tinham a resposta na ponta da língua, "Ora ainda bem que me coloca essa questão...". Perguntas de conveniência, batotice, jornalismo viciado, por assim dizer, que também o há! Mandei o assessor da treta lamber sabão, vim-me imediatamente embora e nem sequer quis saber se alguém aceitou a encomenda e alinhou na fantochada.
Mas por acaso sei.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Relações Públicas.

O poder nas próprias mãos

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Um nobel para o Quinzinho da Farmácia

Hoje é Dia Internacional do Farmacêutico e amanhã é Dia Nacional do Farmacêutico, quer-se dizer, Portugal é um atraso de vida, é oficial, está atrasado um dia em relação ao resto do mundo, mas não é isso que aqui interessa. Importante é: hoje e amanhã são dias do farmacêutico e vem-me à memória, grata, o Quinzinho da Farmácia. O nosso Quinzinho da Farmácia, que, sendo farmacêutico e sobremaneira autodidacta, era o melhor médico do mundo, o médico privativo e gratuito dos pobres de Fafe, o verdadeiro médico de família ainda os médicos de família não tinham sido inventados.
Em caso de fanico arrevesado ou maleita repentina, primeiro ia-se ao Quinzinho, que tratava toda a gente por tu e tinha uma voz arrastada e grossa por baixo de um bigode em forma de bigodinho e lá em cima uns óculos muito cómicos de tirar e pôr que me faziam rir. Era uma espécie de rastreio, uma primeira opinião, que até podia ser definitiva. O Quinzinho, que me apresentou à Pasta Medicinal Couto e mais do que uma vez salvou as minhas desgraçadas amígdalas de irem ao corte, observava cada caso minuciosamente e decidia. Se o assunto fosse da sua competência e não ultrapassasse os seus saberes, a questão ficava ali mesmo remediada sem outras alcavalas senão o preço geralmente módico dos medicamentos logo usados ou aviados para consumo doméstico, e apenas quando tal era necessário. Aos casos mais bicudos, que lhe chegavam frequentemente, às vezes em pressurosos carros de praça que se acotovelavam à porta da Farmácia Moura, impedindo o trânsito na Rua Montenegro, mesmo em frente aos Mercadinhos, o Quinzinho reencaminhava-os na hora para os médicos encartados ali das redondezas, não raramente sugerindo este ou aquele clínico, consoante as sintomatologias averiguadas, ou então despachava-os com urgência directamente para o hospital. E a engrenagem funcionava. Eu estou em crer que o homem merecia um nobel! Da medicina, da química, da física, da economia, da literatura - o Quinzinho ensinava bulas a analfabetos -, da paz, da compaixão, não sei bem, mas um nobel de certeza, isso é que eu sei!
E sabeis que mais? Gosto de pensar que foi a partir do nosso Quinzinho que os ingleses inventaram, muitos anos mais tarde, em 1994, o Protocolo de Manchester. E essa é que é essa.

Nós, os pássaros

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 24 de setembro de 2023

Povo que lavas no rio

Vamos então falar de tanques. Dos tanques públicos e lavadouros oficiosos de Fafe, pelo menos daqueles que eu conheci e de que ainda me lembro. Havia os muito concorridos tanques da Rua de Baixo, servindo também a Granja, ali nas imediações da Esquiça e da velha Sacor. Para roupas de maior porte, havia os tanques do Matadouro, nos limites da Rua do Maia com a Ponte do Ranha, aproveitando a água e mesmo ao lado do "rio" onde eram lavadas as vísceras e espancadas as tripas e a sola dos animais abatidos, e era um cheiro a sangue e merda que só visto. Um pouco acima, nem meio quilómetro, creio que na mesma ribeira, havia a poça-tanque da Ponte de Pardelhas. No outro extremo da vila antiga, havia os tanquinhos do Bairro da Fábrica de Ferro, que na verdade tinha tudo. Havia o tanque de Santo Ovídio, de que eu soube apenas de passagem. Tornando ao centro, havia a poça do Santo, do Santo Velho, logo a seguir ao casarão brasonado e à capela e antes dos campos de milho onde hoje medram as traseiras da Escola Secundária. E não quero acreditar que zonas tão povoadas como o Retiro, a Cumieira ou a Recta não dispusessem também dos seus tanques ou lavadouros, mas não os sei. Não me lembro deles, pelo menos neste momento, e isto não é uma investigação, levantamento ou trabalho etnoarqueológico, antes pelo contrário.
A minha mãe frequentava diariamente a poça do Santo, ali à mão de semear, e deslocava-se amiúde ao Matadouro, "ao rio", carregada da cabeça aos pés, para as grandes barrelas sazonais. Éramos pelo menos cinco em casa, mãe e quatro filhos, às vezes também a Mila, às vezes também os meus avós, tios e primos e outros parentes de Basto, só a roupa de nós todos já era uma sacada, um fardo. Ainda por cima, a minha mãe tinha a mania de oferecer-se para lavar "umas pecinhas" de alguma vizinha mais velhinha, adoentada ou recém-regressada da maternidade. E houve mesmo uma altura em que, por necessidade, a minha mãe lavou oficialmente para fora, para uma ou duas famílias "ricas", mas nem por isso largou de mão a vizinhança mais pobre e aflita.
Era duro. Eu ia com a minha mãe e bem via. Era mesmo muito duro! Tão duro que eu, preguiçoso por idade e por feitio, fazia tudo para "ajudar". Mas não me deixavam. Nem a minha mãe nem as outras lavadeiras, sobretudo estas. Diziam-me, entre cantigas e caralhadas, que os meninos do sexo masculino não podiam lavar roupa. Se os meninos do sexo masculino lavassem roupa - dizia o mulherio -, quando fossem homens não lhes crescia a barba, ó terrível maldição, e davam em maricas!...
A mim, confesso, nem me aquecia nem me arrefecia, aquilo da barba. Eu já estava por tudo. Faltavam-me dois ou três meses para entrar no seminário, e logo que lá chegasse - também me diziam - iriam capar-me sem dó nem piedade! Então olha, perdido por um, perdido por mil...

P.S. - Hoje é Dia Mundial dos Rios. Por isso aqui torno.

O mar começa em Fafe, devagarinho

O rio Vizela nasce em Fafe, exactamente no Alto de Morgair, antiga freguesia de Gontim. Depois de banhar Fafe, sobretudo na barragem de Queimadela, o rio Vizela passa também, por esta ordem, pelos concelhos de Felgueiras, Guimarães, Vizela e Santo Tirso. Neste seu interessante percurso, o rio Vizela acolhe diversos e variados influentes. O influente mais importante é o rio Ferro, mas não podemos esquecer o rio Bugio e, se não me engano, as ribeiras de Docim, de Moreira e de Ribeiros e o ribeiro de Costas Antas. São influentes porque eles é que abastecem de água o rio Vizela, que, por sua vez, é influente do rio Ave, que desagua no oceano Atlântico. Creio portanto não ser exagero nenhum dizer que o mar começa em Fafe, pelo menos um bocadinho.

P.S. - Texto publicado aqui no dia 2 de Fevereiro de 2023, sob o título "Os influentes (Ou o mar começa em Fafe)", a o propósito do Dia Nacional do Vigilante da Natureza e Dia Mundial das Zonas Húmidas.

Alto e pára o trânsito!

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 23 de setembro de 2023

Orlando Castro e a UNITA

O novo livro do jornalista Orlando Castro, "Eu e a UNITA", chegará às bancas no próximo mês de Novembro. A obra conta com prefácio de William Tonet.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Piratas de meia-estação

Por outro lado. Corsários são, como se sabe, calças curtas e geralmente ridículas que vão um pouco abaixo dos joelhos. E podem ser chamados também bermudas, sítio de irrevogáveis desaparecimentos, porque isto realmente anda tudo ligado, e daí vem a história do triângulo.
O assunto, como de costume, não era pacífico. Prestava-se, aliás, a discussões mais ou menos geométricas e atlânticas. Com efeito, só o Equilátero acreditava no Triângulo das Bermudas. Era parte interessada, refira-se. O Isósceles e o Escaleno faziam pouco, gozavam o patau, partiam o coco a rir. Sobretudo por causa daquela vestimenta ridícula que não chega a ser calças mas sobeja para calções...

O Capitão Gancho e o Capitão Iglo

Discutia-se se o Capitão Gancho era pirata ou corsário. Em Fafe discutia-se tudo. Conversa vai, conversa vem, uns que corsário, outros que pirata, alguns até que contrabandista, moina, ladrão, gatuno, filhodaputa, ó corno!, és pouco boi és!, como num normal jogo de futebol, mas não havia maneira de se chegar a uma conclusão ou, vá lá, como remedeio, a um consenso - e era precisa uma maioria qualificada, isto é: dois terços mais pelo menos uma via-sacra. O animado debate mudou bruscamente de rumo quando alguém recém-entrado a bordo alvitrou que o Capitão Gancho se chamava Capitão Gancho para não ser confundido com o Capitão Iglo dos douradinhos mas sobretudo porque comandava o seu navio, o Jolly Roger, com mão de ferro e vencia o Capitão Iglo quantas vezes lhe apetecesse, aliás como o Super-Homem também é mais forte do que Thor, isso então nem se discute. Aprovado por unanimidade, e ali se fez história.
Bebia-se verde tinto, mansamente, e era uma rica pinga. E ainda dizem que nos tascos não se aprende nada...

P.S. - Hoje é Dia Internacional de Falar Como Um Pirata. Aaarrr!...

Net 3

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

O camurro

Os dicionários mais profundos admitem que camurro é o mesmo que casmurro. Isto é, teimoso, obstinado, sorumbático, macambúzio. Ou o mesmo que camurrão. Isto é, enfocinhado, mal-encarado, enfadado. Os dicionários às vezes parecem tolos, inclusive os mais profundos. Não. Camurro não é aquilo! Camurro é o rapaz que não aprende nada na escola, o moço que não tem jeito para os livros. Isto é, o cabeça-dura, o tapado, enfim, o burro. Quem for de Fafe e antigo, sabe muito bem...

Desdobrável, espero...

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 17 de setembro de 2023

Aristeu, do Olimpo à Loja Nova

Aristeu era filho de Apolo com Cirene. Foi criado por ninfas na Líbia, aprendeu a coalhar leite e tornou-se pastor, sendo adorado como protector de caçadores e rebanhos e considerado o inventor da apicultura e do olival. É representado como um jovem pastor com um cordeiro, mais ou menos à maneira do nosso São João, mas de manjerico e pirilau ao léu.
Cansado de ser um deus menor, Aristeu aprendeu a contar pelos dedos e dedicou-se às matemáticas, adoptando o astuto cognome de o Velho - Aristeu, o Velho -, isto já para aí trezentos anos antes de Cristo ter vindo ao mundo. Mais de vinte séculos depois meteu-se no comboio e estabeleceu-se em Fafe, com a Loja Nova, extraordinária catedral de mercearia fina e grossa, drogaria e bebidas várias, alfaias agrícolas, verguinha e outro material de construção, louças e todo o tipo de ferragens, que ocupava quase um quarteirão inteiro, ao lado do Peludo e em frente à Casa da Cera, com a Feira das Galinhas atrás. O Senhor Aristeu da Loja Nova, fafense excelentíssimo, era um vivaço. Gentil, elegante, conservador e culto, molageiro com as mulheres, às vezes vestia bata de cotim no trabalho e tinha sempre uma piada na ponta da língua. A Loja Nova morreu de velha.

O textinho acima, escrevi-o em Junho de 2018, no meu blogue Tarrenego!, acrescentando mais um capítulo à série "Lições de História". Este publicação mereceu, na altura, um "reparo" por parte de Pedro Sousa, que está dentro do assunto. Um "reparo" que, na verdade, é um mimo, tal a gentileza e a limpidez literária que o enformam, e que eu em tempo agradeci e hoje aqui destaco. Dizia assim:

Caro Hernâni,
Antes de mais, quero dizer-lhe que sou um atento seguidor do seu blogue.
Receio que na segunda parte da "estória" do Aristeu tenha confundido o próprio com o irmão João e com o pai de ambos.
Na realidade, o Aristeu não veio, passados 20 séculos, para Fafe de comboio. Limitou-se a reencarnar num moço que nasceu, em 1915, na rua Monsenhor Vieira de Castro. Nessa altura, já cá andava a Loja Nova, ainda viçosa, pronta a mudar-se, daí a dois anos, para o sítio onde viria a falecer no final do século. Estoiradinha.
O pai do Aristeu, que lhe asseguro não ter sido nenhum Apolo, é que poderia ter arribado a Fafe de comboio se a respetiva linha já existisse. Porém, como a dita linha ainda não estava alinhada, terá porventura apanhado um táxi.
Peço-lhe desculpa pelo reparo a um simples exercício de escrita que possivelmente até ficou mais divertido por ter acrescentado, a um deus menor, três homens e um comboio.
De resto, apenas espero que continue a escrever sobre Fafe dessa forma apurada, refrescante e bem-humorada.
Cumprimentos,
Pedro Sousa

O infinito? Diz-lhe que entre.

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Eram uns pontos...

Havia uns tipos com piada, em Fafe. Piada fina e piada grossa, conforme. Contadores de anedotas, abrilhantadores de saraus de sociedade recreativa, animadores de café, pregadores de partidas, havia-os com fartura naquele tempo. E eram uns pontos!
As anedotas vinham de fora, regra geral. Fafe não tinha então produção própria, quero dizer, os nossos piadistas eram mais divulgadores do que criadores. As redes sociais funcionavam boca a boca, como a respiração salva-vidas, e as novidades humorísticas chegavam até nós trazidas pelos vendedores ou caixeiros-viajantes que visitavam regularmente o comércio e a indústria locais. Debitar umas larachas, se possível frescas em ambos os sentidos - "já sabe a última?, é de bolinha!" -, fazia parte do ofício. Primeiro as anedotas e só depois a nota de encomenda, se corresse bem, embora fosse tudo dar ao mesmo.
As excepções talvez fossem o António Augusto Ferreira e o extraordinário Zé Manel Carriço. O Tónio Augusto, pai do omnijornalista Carlos Rui Abreu, o qual, diga-se de passagem, é o melhor relatador de futebol português de hoje em dia e parece que Fafe ainda não tomou sentido disso, o Tónio Augusto, era aqui que eu ia, abastecia-se de anedotas em Guimarães, onde por aquela altura já se encontrava estabelecido. A loja chamava-se T111, se não estou em erro, suponho que derivado à sua localização, no Toural, e ao número da porta, 111, ali a meia dúzia de passos da Basílica de São Pedro, cujos sinos tocavam, e não sei se ainda tocam, o Hino de Guimarães às prestações de quartos de horas. Quem também tocava o Hino de Guimarães, mas de uma ponta à outra e apenas uma vez por ano, era a Banda de Revelhe quando ia às Gualterianas e fazia a rompida na cidade velha, em frente à Câmara Municipal, e eu sei de cor a música do Hino de Guimarães e esta parte, sou obrigado a admitir, não abona nada a meu favor.
E então o que é que se segue? O Tónio Augusto todos os dias trazia de Guimarães anedotas ainda vivinhas, praticamente por estrear, e, quiséssemos ou não, contava-as pelas noites dentro do Verão fafense, na "esplanada" do velho Peludo, temperadas com fininhos e tremoços. Depois, terminada a função, metia-se no carro e ia para a Póvoa, ter com a família, e só lhe ficava bem.
A piada era fácil para o Tónio Augusto, porque ele era cómico de nascença. Ele era, dir-se-ia hoje, um predestinado, um Cristiano Ronaldo da pilhéria, um Lionel Messi do chiste. Uma vez, jogava o Tónio Augusto nos juniores da AD Fafe, no Campo da Granja, e rachou ou racharam-lhe a cabeça. Encostou ao banco, que era mesmo um banco, em madeira, corrido, ao fundo dos cinco réis de bancada, e o massagista, talvez o João Americano, tratava de enfiar-lhe uns agrafos no lanho escarrapachado e sanguinolento (não tenho a certeza se não estaria mesmo a ser cosido), mas ele não deixava, queria voltar ao jogo. Barafustava um, ralhava o outro, um a puxar para a frente e o outro a puxar para trás, escangalhados como parelha de bêbados matinais. Era mesmo de rir, parecia cinema mudo mas já em sonoro e a cores...
O Zé Manel Carriço era outra coisa. Ele não contava anedotas. O Zé Manel contava as suas histórias, verdadeiras mais ou menos, episódios protagonizados por ele próprio, mas cenas tão improváveis, tão esdrúxulas, tão gagas, com um fim tão inesperado e teatral, e tão bem contadas, que passávamos noites inteiras naquilo, só a ouvi-lo. E o Zé Manel era o primeiro a rir-se do que dizia, e ria-se sonoramente, afagando a pêra elegante, e o seu riso era como um fósforo em mato seco. E nós à volta éramos um incêndio de gargalhadas, incontrolável. Os mesmos empregados do Dom Fafe que, da uma às cinco da manhã, pediam, de meia em meia hora, "Ó Sr. Zé Manel, por favor, precisamos de fechar, olhe a polícia, temos de ir dormir!", às seis já só queriam "Ó Sr. Zé Manel, conte mais uma!"...
Depois tínhamos os "profissionais", o Landinho Bacalhau, o antigo, e o Zé Fala-Barato, os nossos microfónicos apresentadores de espectáculos, paus para toda a obra, cheios de categoria, e sempre com uma chalaça na ponta da língua. E tínhamos os pontos avulsos. As malandrices do Valença, as aventuras do Pimenta, as tiradas do Serafim d'Eiteiro, as saídas do Moisés, o Toninho da Luísa, que eu gostava de imaginar DaLuísa por causa do DeLuise americano, o Aníbal Carriço, o Zé do Registo em dias bons e fora do horário de expediente, o Zé Maria Sapateiro, o Sr. Lem, o Rates da Fábrica, o Manel Fogueiro, o Toninho do Café Chinês, o Aurélio Funileiro, o Chico Americano, o Tónio da Legião e o Aristides Carteiro, amiúde o Sr. Aristeu da Loja Nova e até o Joãozinho Summavielle, que aparecia pouco e só à noite mas não deixava os seus créditos por mãos alheias.
Estávamos, com efeito, muito bem servidos. Aliás, sobre toda esta esplêndida plêiade de bem-dispostos benévolos e geralmente militantes, tínhamos também a nossa conta de reconhecidos gabarolas e mentirosos, e Fafe era realmente abundante. Mentiam tanto e tão mal, patranhavam tão estrambolicamente os nossos queridos aldrabões, que acabavam por ter piada! Eram uns tontos, mas também uns pontos...

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Ponto.

Como disse?!

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

A arte de estragar comida

E já que estou com as mãos na massa. Adoro ver na televisão o trabalho dos jovens e famosos chefs da nouvelle cuisine portuguesa. Adoro!
Adoro ver aquele modo de confecção improvável, os ingredientes inovadores, variados e mínimos, o requinte e a cerimónia, o circo com a faca, a delicadeza, a anorexia na dose, a obra de arte final, aquela espécie de ilha cubista no meio do prato em branco, adornada com bagas, com ervas inventadas, com sucos e espumas, com salpicos e rabiscos de geleias coloridas. Salpicos e rabiscos aparentemente displicentes porém profundamente cultos, cosmopolitas. Adoro!
Adoro ouvir aquelas palavrinhas francesas, parecem palavras mágicas, nominhos de perlimpimpim. Adoro!
Tudo muito confitado, muito braseado, muito abisnagado, muito resumido, muito em cama de. Adoro!
E a frescura?, ui, sobretudo muita frescura! Adoro! Adoro! Adoro!...
Mal termina o programa, e enquanto ainda está fresco, salto para a cozinha, enfio dois bolinhos de bacalhau da véspera dentro de meio biju ressesso, bebo um copo de verde branco, atiro-me à galinha de arroba que a minha mãe me mandou e faço a boa e ancestral arrozada de cabidela. A cabidela monumental e histórica. E vai para a mesa no panelão, fumegante como a velha locomotiva a vapor chegando a Fafe já nas últimas. Ei, rapazes!, então é que eu me consolo...

Vamos a casa

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Carolino, sempre!

O Naninho Carolino, que é solteiro militante e uma jóia de moço, chama-se Carolino por causa da avó, que era a Senhora Carolina, casada com o extraordinário Zé de Castro, o nosso poeta cauteleiro, que uma vez mandou a mulher para o hospital com uma sacholada na cabeça. E teve a sorte de nascer filho da querida São Machica, que era um furacão, e do Sr. Zé Manel, que era um anjo, isso mesmo, um anjo, e talvez também o melhor calceiro de Fafe. Calceiro, para quem não sabe, é o alfaiate especializado em fazer calças. O Naninho, os avós, os pais, os irmãos, o tio Luís Mário, meu amigo, tudo gente de categoria do nosso Santo Velho. De resto, o Naninho até se chama Hernâni Ferreira Castro, pertenceu à ínclita geração dos Sexy Rannas e era um dos heróicos resistentes que iam mantendo viva a Associação Desportiva de Fafe, o seu verdadeiro caso de amor, e digo "era" e "iam" porque, tanto quanto julgo saber, o Fafe faleceu aqui atrasado e agora é outra coisa. E o que é que acontece? Quando se fala em arroz, lembro-me sempre do Naninho a soprar pelo canto da boca ao peidinho do penteado. Carolino ou agulha, eis geralmente a questão, e eu, palavra de honra, não percebo onde é que está a dúvida.
Tomem nota, antes de mais, desta pescadinha de rabo na boca: o arroz carolino é um produto português, nado e criado nos estuários dos rios Sado, Tejo e Mondego, e Portugal é auto-suficiente na produção de arroz carolino. Já o arroz agulha é de origem asiática, quase todo importado. Não vou entrar em contradição com o que já escrevi outras vezes noutros lados, não tenho nada contra o que é estrangeiro, sobretudo se for melhor. Mas a verdade é que, se todos comêssemos do nosso arroz, e nós comemos arroz como se fôssemos chineses, dávamos um bom empurrão aos produtores nacionais e até podia ser que o preço ao consumidor baixasse.
Mas, patriotismos à parte, o fundamental é que o carolino é o arroz ideal para os pratos tradicionais da cozinha portuguesa. Com uma cozedura mais demorada e a exigir maior presença e atenção, é certo, mas mais cremoso e aveludado na calda final, e absorvendo melhor os condimentos e os paladares dos outros ingredientes, o carolino é a base indispensável para os nossos mais deliciosos arrozes, os malandros: do arroz de polvo ao arroz de tomate, do arroz de marisco ao arroz de bacalhau, do arroz de feijão ao arroz de peixe, do arroz de grelos ao arroz de cabidela, do arroz de sarrabulho ao arroz de lampreia, e fico-me por aqui, que isto assim também é um castigo...
Quanto ao agulha, é absolutamente recomendado para quem não sabe cozinhar (por exemplo, os novíssimos chefs do arroz de atum, de lata, que lata!) ou para quem, como agora se diz, não tem tempo para estar na cozinha, que é a mesma coisa.
Portanto: carolino, sempre! E um grande abraço para o Naninho!

Agarrada ao sol

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 12 de setembro de 2023

As doenças têm dias

Hoje é Dia Europeu da Enxaqueca, amanhã é Dia Mundial da Sépsis, depois de amanhã é Dia Mundial da Dermatite Atópica e sexta-feira, se Deus quiser, será Dia Mundial do Linfoma. Dá-me jeito assim, as doenças. Um dia de cada vez, cá me vou aguentando...

Net 2

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

O bombeiro profissional

Ele era um bombeiro verdadeiramente profissional. Só aceitava incêndios das 9h às 13h e das 14h às 17h, de segunda a sexta-feira. Fora do horário de expediente, que ligassem aos voluntários!

P.S. - Hoje é Dia Nacional do Bombeiro Profissional.

Dá-me lume

Foto Hernâni Von Doellinger

O homem mais procurado

Estão a ver o Florindo Cabeças, também conhecido como Lindinho da Mamã, Flox Bigfoot, Becas Língua-e-Dedo, Garanhão da Cumieira, Rochedo da Pegadinha, Estripador do Matadouro, Campeão da Ponta-e-Mola, Príncipe dos Faquires, Guardião dos Piças-Moles, Estoura-Vergas do Retiro, Comandante-em-Chefe da Sargaça, Perseguidor de Lampiões, Esticadinho de Medelo, Fângio da Recta de Armil, aliás Colosso de Rodas, Fantasma do Palacete, Furacão do Twist, Doutor Corrente-de-Ar, Duque do Palmanço, Fantástico do Terilene, TGV de Cepães, Weissmuller de Calvelos, Stradivarius de Golães, Sete-de-Paus do Assento, Cabeçudo Machoman ou Fló Ajeitadinho, também chamado Vânia Toleirona e, às vezes, Selma Sabrina? Não? Não estão a ver? É o que eu digo: hoje em dia ninguém sabe quem ele é. Nem eu.

De manhã, o acrobata

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 10 de setembro de 2023

Um dia com os dias contados

Hoje é Dia do Gordo e é um dia com os dias contados. Porque hoje em dia não se pode dizer gordo de ninguém. Nem obeso, porque obeso quer dizer gordo e gordo não se diz, que agora é proibido. A palavra gordo, aliás, está a ser tirada dos livros e até das letras das cantigas e dos iogurtes, da manteiga, do queijo, das natas e do leite. Meio gordo e gordo. E quem não diz gordo, não diz forte, cheio, pesado, corpulento, encorpado, robusto, parrudo, nutrido, fornido, gorducho, balofo, anafado, roliço, redondo, rechonchudo, arredondado, barrigudo, banhudo, gordalhão, gordalhaço, gordalhufo, rolho, rotundo, cevado, adiposo, inchado, repolhudo, trambolho, amatronado, grande, volumoso, farto, grosso, graúdo, avantajado, vultoso, avultado, alentado, abundante, generoso, considerável, rico, polpudo, enorme, imenso, vasto, excessivo, copioso, profuso, basto, lauto, gorduroso, gordurento, oleoso, engordurado, besuntado, untuoso, gordureiro, sebento, graxento, graxo, fértil, fecundo, produtivo, rico, humoso, úbere e uberoso, são palavras que vão ser apagadas como se nunca tivessem existido, porque, lá está, vai tudo dar ao gordo. E gordo foi cancelado. Diremos então, como deve ser, "indivíduo ou indivídua ou indivídue denotando cubicagem corporal talvez digna de registo". Isto é, para abreviar, gordo ou gorda ou gorde.

Bem te vejo, bem te beijo!

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 9 de setembro de 2023

Nas horas, mas por dever de ofício

Mr. Bean estampou-se contra uma árvore. A cena tem piada, mas não é para rir. O comediante britânico Rowan Atkinson teve mesmo um violento acidente, aqui há uns anos, e quase desfez o carro, que por acaso não era o Mini amarelo com aloquete (cadeado, se lido em Lisboa) da famosa série de televisão, mas um McLaren F1 que, segundo leio, é caro que eu sei lá e dá mais de 380 à hora. Tento imaginar que 380 à hora deve ser muito à hora, à hora demais para a minha camioneta, mas não consigo, não faço ideia, embora suponha que seja como andar de avião porém sem levantar cabeça. A reparação do automóvel acidentado - se é que se pode chamar automóvel a esta aeronave de calças curtas - custou à companhia de seguros mais de um milhão de euros. E eu também não sei quanto é um milhão de euros. Não faço ideia, por mais que tente imaginar vários campos de futebol cheios de notas e com moedas por cima por causa do vento.
A história tem muito que se lhe diga e realmente já possui barbas, mas a problemática que lhe subjaz está outra vez na ordem do dia, como adiante se verá.
A inveja é uma cena que não me assiste. Mr. Bean que tenha o carro que quiser e os jogadores de futebol também. Ganham bom e merecido dinheiro, melhor para eles. Que o gastem como quiserem e que gastem muito, que é óptimo para nós todos, até para as oficinas, seguradoras e outros intermediários - que eles, os bines e os da bola, espetam-se como tordos. Do fundo do coração, o que lhes estimo é o que lhes desejo. E que, com a graça de Deus, seja sempre só chapa. Mas, tenho de confessar, não percebo a queda desta gente para carros de mil à hora só para ir de casa ao café e do café para casa, como fazia antigamente em Fafe um certo relojoeiro, menos de cem metros na rua do Cinema, entre o Peludo e a loja, sempre nas horas, sempre a levantar paralelo. Sabem o que se diz, aparentemente comprovado por recentes estudos científicos: grande bomba, pila pequena? Pois se calhar. Não estudei para isso nem fui estudado, ninguém me perguntou e eu não faço a mínima. E mais até estou à vontade para falar sobre sexo. Isto é, não tenho carro e nem sei conduzir...

P.S. - Hoje é Dia da Velocidade. Cuidado ao atravessar a estrada!...

Na prise

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Concelhos de mãe

Cátia Soraia entrou na universidade e, mal se instalou, mandou uma mensagem à mãe a pedir um concelho. A mãe, que é rica e boa alma, enviou-lhe Freixo de Espada à Cinta.

Dores artroses

Ele padecia de "dores artroses". E também de evidente analfabetismo.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Literacia. E Dia Internacional da Alfabetização.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Nem lhe teni, senhor árbitro!

O grande Costeado. João Costeado, que, vem hoje nos jornais, regressa ao seu Vitória de Guimarães para tomar conta da braçadeira que o treinador Paulo Turra não pode usar. O grande Costeado, que jogou no meu Fafe na passagem da década de 1970 para a década de 1980 e que brilhou naquela extraordinária equipa de Nelo Barros que fez frente ao Sporting nas meias-finais da Taça de Portugal e que era assim, tal como a anunciei aos altifalantes do estádio cheio como um ovo: Zé Maria, Costeado, Cândido, Castro e Manuel Fernandes; Albano, Sousa Pinto e Valença, Valdemar, Daniel I e Nogueira. Que luxo! Que máquina! Quem no-la dera naquele ano administrativo em que fomos cheirar a primeira divisão! Nem teríamos descido, digo eu...
Mas a tal meia-final da Taça, e já era a segunda em apenas três anos. Nós na segunda divisão, que era o nosso sítio, e o Sporting que era o Sporting. Foi na época de 1978/79, no nosso campo, e roubaram-nos a glória da final no Jamor, ou pelo menos a hipótese de um segundo jogo em Alvalade, roubaram-nos, dizia, com um penálti produzido pelo árbitro e convertido por Jordão aos 94 minutos, isto é, já no prolongamento. A peregrina falta que deu origem ao castigo que teve tanto de máximo como de injusto foi assinalada, imaginem, ao nosso Costeado.
O João era uma riqueza de moço. E o Costeado, que depois até jogou quatro vezes pela Selecção, à pala de Saltillo, era um defesa direito velocista porém tecnicamente equilibrado, raçudo e amiúde sarrafeiro. Mas estava inocente naquele dia, diga-se em abono da verdade. A Bola, o insuspeito jornal do Benfica, fazia até notar que o árbitro "julgou mal o famigerado lance de Costeado, conferindo-lhe, primeiro, uma natureza e uma intencionalidade, depois, que a nosso ver não teve", e parece que estou a ouvir o Joaquim Rita, com vírgulas e tudo.
Ora bem. Acontece que naquele tempo não havia VAR, o que não era mau de todo, porque assim também não avariava, mas não havia VAR. O VAR daquele tempo eram o Carlos Manuel ou o André a andarem sempre à volta do árbitro a dizerem o que devia ou não devia ser marcado, e nunca falhava. À falta do Carlos Manuel e do André (e, já agora, do Bruno Fernandes, que é actualmente VAR em Inglaterra), o próprio Costeado deu conta do recado, colando-se ao juiz da partida, Santos Luís, agarrando-o respeitosamente pelo avental, pedindo-lhe, rogando-lhe, rezando-lhe, implorando-lhe, jurando-lhe, repetindo-lhe quase em lágrimas, estou em dizer que mesmo em lágrimas - Eu nem lhe teni, senhor árbitro! Nem lhe teni, senhor árbitro! Nem lhe teni!...

O árbitro, o senhor árbitro, não reverteu a decisão. Chamaram-lhe "o roubo do século". Conta A Bola que "Santos Luís saiu fardado de polícia". E Costeado, baptizado pelo Valença, ficou o "Teni"...

Pegada ecológica

Ele tinha uma pegada realmente ecológica. Fosse aonde fosse, ia sempre em pezinhos de lã.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Ar Limpo para o Céu Azul.

Por ocaso

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Pespontamento

Era alfaiate. Mas não era de modas. Podia ser uma ave pernalta limícola da família dos recurvirrostrídeos, de bico comprido, fino e muito curvado para cima, patas azuladas e plumagem branca e preta, mas não. Era um insecto aquático, hemíptero, da família dos hidrometrídeos, de pernas longas, que se desloca sobre as águas. Exactamente. Alfaiate. Quem for de Fafe e de rios, sabe do que eu falo...

P.S. - Hoje é Dia do Alfaiate, do de corte e costura. No Brasil.

Daniel Bastos apresenta livro em Ourém

Daniel Bastos estará no próximo sábado, 9 de Setembro, em Ourém, para apresentar o seu mais recente livro, "Crónicas - Comunidades, Emigração e Lusofonia". Sessão agendada para 17 horas, no Auditório do Paço dos Condes de Ourém, no âmbito do Festival Setembro, subordinado ao tema "Nós, Migrantes".

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Precisa de dinheiro?...

Metido sorrateiramente na caixa de correio da porta de casa, um prospectozinho 21x10 em couchê fatela escrito dum lado só. Pergunta, em letras garrafais, vermelhas, "Precisa de dinheiro?" e, ainda enorme mas a preto, "Tem imóvel?"... E passa a explicar, em caracteres mais recatados: "Mesmo com penhoras, dívidas fiscais ou problemas bancários, temos a solução! Contacte-nos. Resolvemos em 48 horas. Análise gratuita". Seguem-se dois números de telemóvel, e mais nada, nem um nome, uma morada, uma marca, pois, como diz o Evangelho, "Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que fez a direita, a fim de que a tua esmola fique em segredo" (Mateus 6:3-4). Ó almas caridosas e secretas! Ainda há gente boa, graças a Deus...

Virtudes teologais

Fé, esperança e caridade. A fé move montanhas. A esperança é a última a morrer. A caridade tem dias.

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Caridade.

Net

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

É só saúde!

"Sexualmente falando, és imprestável", disse ela. "Tá bem", disse ele, e foi organizar-se com a vizinha. Ele percebera "emprestável". São coisas que acontecem...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Saúde Sexual.

Já não vamos para velhos

A verdade é esta: biblicamente falando, Moisés viveu até aos 120 anos, Jacob até aos 147, Abraão até aos 175, Adão até aos 930, Noé até aos 950, e Matusalém, filho de Enoque, pai de Lameque e avô de Noé, faleceu de repente aos 969 anos. Antigamente era assim. E agora? Agora andamos à rasca para chegarmos aos sessenta e damos graças a Deus se alcançarmos os setenta. O que estará por trás desta alteração tão radical? Glaciares, asteróides, falta de médicos de família ou tão-só falta de fé, não tenho a certeza, mas creio que a segurança social também já não aguentava...

P.S. - Hoje é Dia de São Moisés. O profeta Moisés nunca foi canonizado, portanto não é oficialmente santo, mas pronto, é assim que ele é celebrado.

sábado, 2 de setembro de 2023

Já não há mulheres com bigode

Foto Hernâni Von Doellinger
Sempre gostei de ir a Ponte de Lima por causa do arroz de sarrabulho e dos bigodes das mulheres. Mulheres feias é ali. Feias e bigodudas. Basta um raio de sol espreitar por entre as nuvens e elas saltam todas não se sabe donde para as bordas do rio a arejar as carantonhas e respectivas piaçabas. Palavra de honra, é um espectáculo digno de ser visto. Comprar um cartucho de jornal cheio de castanhas assadas e comê-las, ainda quentes, enquanto observamos o mulherio, picadeiro acima, picadeiro abaixo, como num desfile de moda mas para bigodes fêmeos, nove pontos para aquela, treze para a das suíças, há lá melhor maneira de passar um pedaço de tarde! Não sei o que a bela vila alto-minhota tem, mas é assim que as coisas são.
Cuidado. Antes de me soltarem os cães, façam o favor de perceber que eu não disse que as mulheres limianas são bigodadas e feias. Não. O que eu digo é que, sobretudo aos fins-de-semana e feriados, elas, as bigodadas e feias, concentram-se todas ali, à beira-Lima, como se fosse um congresso de camafeus ou um concurso de feieza. Numa dessas ocasiões, eu próprio fui confundido com a cantadeira de um rancho folclórico derivado às minhas barbas. De resto, não sei de onde elas vêm, as mulheres abigodadas, nunca perguntei.

Vou a Ponte de Lima desde pequenino, desde o tempo das excursões ao Alto Minho organizadas pelo meu avô da Bomba, sobrevivente dos sete ofícios. Aqui atrasado tornei lá todo contente e tive um desgosto muito grande. A vila mais antiga de Portugal, Ponte de Lima monumental e histórica, bela, tradicional, está mais pobre. As mulheres continuam particularmente feias, honra lhes seja, mas deitaram abaixo os bigodes. Sentei-me no banco do costume, junto à vendedeira de castanhas, queimei os dedos a comê-las, mas bigodes de mulheres, que era ao que eu ia, nem um para amostra. É lamentável. Os cremes depilatórios estão a dar cabo do nosso património.
Não sei se volto a Ponte de Lima. Ainda por cima, o arroz de sarrabulho também não estava grande coisa. Mas as castanhas eram bem boas.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Barba.

Um bigodinho em forma de talvez

Tinha um belo bigode. Elegante, ralo, fino, um bigode talvez à Errol Flynn. Nada de assombroso realmente, mas para mulher não estava mal...

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Todos à uma e cada um à sua

Foto Hernâni Von Doellinger

Viva a Banda de Golães! Viva a Banda de Revelhe!

Hoje é Dia Nacional das Bandas Filarmónicas. O glorioso dia das nossas bandas. Sendo Fafe a terra musical que é, de certeza que o município celebrará a efeméride com todas as fanfarras e muitas fotografias ao senhor presidente da Câmara e ao meu primo Bertinho, que agora, não sei o que é que lhe deu, aparece sempre nos retratos. Ou então não vai acontecer nada, a data passa como se nada fosse, e por causa das coisas festejo-a já eu aqui no Fafismos, republicando alguns dos meus textos sobre o assunto. E portanto é o que se segue. Desliguem os telemóveis. Silêncio, por favor...

Eles são os apaixonantes

Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com gestos semibreves de deleite e aprovação, procurando com um sorriso de conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E pedem chiu!, semiconfusos e comovidos até às lágrimas, à espera dos ribombos do grand finale, para então se desfazerem em aplausos. Eles estão a ouvir a melhor banda do mundo, a sua banda, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham bom ouvido. Não precisam dos ouvidos sequer. Eles ouvem a música com o coração. Eles são os apaixonantes.
Regra geral, são homens, reformados e musicalmente analfabetos. Mas também são sábios, quando conseguem reduzir a sublime arte que tanto os apaixona à sua simplicidade essencial. "Perceber de música é gostar do que se ouve", dizem. Eles, sim, são os verdadeiros filarmónicos, fazendo jus à explicação da origem grega da palavra: phílos = amigo + harmonikós = de harmonia. Exactamente: eles são os amigos da música.
Eles vão ouvir os ensaios, da parte de fora, na rua, por respeito. Trazem na carteira o calendário dos concertos para o Verão inteiro. Seguem a banda para todo o lado, se possível de boleia na camioneta que transporta o material e os músicos. É verdade, como eles apreciam a proximidade e o convívio com os seus artistas! Oferecem mais um copo a troco de dois dedos de paleio, discutindo clarinetes e bombardinos, marchas e fantasias, com demonstrativos e desafinados terululi-fá-dó-mi-rol-fé-poropopó-trró-pum! pelo meio. Pedem "mais peso", querem "peças pesadas" para afogar sem misericórdia a banda do outro coreto no emocionante despique que apenas intervala. Entusiasmados, metem na conversa o Tchaikovsky e o Giménez, num tu cá, tu lá mais próprio de quem evoca uma famosa dupla de defesas centrais. Se eles sabem do que falam? Talvez não. E isso interessa?
Na terra onde eu nasci há duas bandas de música. E dois grupos rivais de apaixonantes, simetricamente filarmónicos e copofónicos. Qualquer observador independente dirá que, objectivamente, uma banda é melhor do que a outra. Mas isso aqui também não interessa para nada. Para os apaixonantes, a qualidade absoluta é um valor irrelevante. A nossa banda é que é sempre a melhor. O ouvido dos apaixonantes, para além de geralmente duro, é um ouvido selectivo, faccioso: surdo às fífias da casa e inventor de desafinações na concorrência. "Eles estão fraquinhos este ano"...
Portugal deve ser o único país do mundo que tem apaixonantes. E os apaixonantes são uma raça em vias de extinção. Há-os em Fafe. Alguns dos poucos sobreviventes podem ainda ser avistados numa festa ou romaria perto de si, em grupos de dois ou três, encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, como lhe contei. Se por caso os vir, respeite-os, admire-os, mime-os, ajude à preservação da espécie.
Porque os apaixonantes e as bandas de música são como aqueles casais antigos, fiéis e mansos, doces, em que um não vive sem o outro. Ela morre e ele vai logo atrás. Ele morre e ela vai logo atrás. É. No dia em que desaparecer o último apaixonante, enterrem-se também as filarmónicas. E que permaneçam juntos, para toda a eternidade.

Sempre atrás do solidó

Eu não posso andar na rua e ver bandas de música ou grupos de zés-pereiras, que me perco. Vou atrás, sigo-lhes os passos, esqueço-me da vida, já não sei que recado ia fazer. Eram quatro ou cinco pães? Ou seriam bananas? Ou era para dar a contagem da luz? Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, comovem-me quase até ao ranho. Queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro" cantado de mansinho mas muito bem picada de tasco em tasco. Queria pedir desculpa por ignorantemente lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E da saudade.

O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João Massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do seu tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo manso e exacto que ele gostava de explicar, maestro, como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante, por correspondência. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.

Seminfusas bem colcheias

A diferença entre uma colcheia e uma colmeia está na medida. Isto é: uma colmeia corresponde exactamente a uma semicolcheia. E deve servir-se de preferência numa seminfusa. Bem fresca...

Filarmónicos e outros copofónicos

O Texas era um tasco e era em Fafe. Chamava-se também Quiterinha, derivado ao nome da dona, senhora respeitável, ou Pensão Império, e isso eu nunca soube derivado a quê. Estão a ver a Rua Monsenhor Vieira de Castro, quem vai para o Picotalho, do lado do Cinema, depois da padaria e encostado ao Noré, mesmo em frente à cabine, antes de chegar às Grilas e ainda mais às Turicas, nas barbas da procissão da Senhora de Antime? O Texas era exacta e geograficamente aí, previamente a ter-se instalado de armas e bagagens no sul dos Estados Unidos da América, resvés com o México, segundo vi depois nos filmes a cores.
O Texas, o nosso Texas, o verdadeiro Texas, era a preto e branco como o regime que nos apertava os calos e tinha, após o balcão, um reservado com vista para a cozinha e para os campos do Santo, onde hoje se ergue o cimento do Pavilhão Municipal. Foi no nosso Texas, na sala da frente, que eu vi na televisão os jogos de Portugal no Mundial de 1966. Eu e a RTP éramos miúdos praticamente da mesma idade. Ao Texas fui com o meu pai, no Texas confraternizei com os músicos antigos da Banda de Revelhe, que tinha casa de ensaio ali a dois compassos, coisa tão a calhar, aprendi com o querido Senhor Ferreira do Hospital ou com o Queirós, meu camarada bissexto na fábrica e provavelmente o melhor tintureiro do mundo, desse-se o caso extraordinário de ele aparecer ao trabalho...

(Isso. O Texas era como se fosse uma segunda casa de ensaio da Banda de Revelhe, centro de convívio líquido, a verdadeira sede da agremiação. Músicos e apaixonantes reuniam-se e discutiam ali, à volta de umas valentes infusas de vinho verde. Falava-se de música, cortava-se na casaca, dizia-se mal da Banda de Golães, faziam-se ateimas, celebrava-se a vida. Quando o meu pai foi para França, os compinchas que ficaram, incluindo o meu padrinho e tio Américo, irmão do meu pai, o Chico Silva da Sargaça, o Toneta e outros que tais escreviam-lhe de vez em quando mandando-lhe novidades de Fafe, da banda e do tasco, e, malandros, castigadores, costumavam carimbar a assinatura colectiva da missiva com um fundo de caneca esborratado de tinto matão, acirrando-lhe saudades e apetites. Lembro-me como se fosse hoje.)

Vamos dizer, então, que o Texas, o nosso, era uma casa de pasto - sem ofensa para todos os verdadeiros americanos do faroeste, incluindo gado cavalar e vacum. As portas do Texas eram verdes, mas não eram de saloon, de ida e volta. Cobóis, apareciam alguns, sobretudo às quartas-feiras, armados de varapaus, porém não me lembro de tiros, e os índios era como se fossem da família. Naquele tempo em Fafe, terra de paz e amor, matava-se mais à sacholada, domesticamente, e a Justiça de Fafe era um postal com quadras bairristas do meu vizinho Zé de Castro, poeta-cauteleiro, o nosso Aleixo. Borracheiras havia-as, e eram acontecimento de alta patente, é preciso que se note. Não tínhamos xerife, mas tínhamos o Chester, tínhamos o regedor de pistolete à cinta e tínhamos o Miguel Cantoneiro, que padecia de uma questão com os erres e, para todos os efeitos, também era autoridade. Às vezes, quando não era precisa, também tínhamos polícia.

Em todo o caso: o Texas foi sempre um sítio pacífico enquanto esteve nas nossas mãos. Quando foi para a América é que se tornou perigoso.

Por causa de uma ateima

E aquela tradição tão fafense da ateima? Era. Em Fafe ateimava-se por tudo e por nada, sabia-se de tudo, discutia-se tudo, afirmava-se tudo, contrariava-se tudo, apostava-se em tudo e no seu oposto. Por nada, e por uma questão de princípio, mas às vezes também por dinheiro. Era mais um jogo, numa terra viciada nisso mesmo, no jogo. Um jogo como o Totobola e a Lotaria da Santa Casa da Misericórdia, o nosso jogo da ateima, como o bilhar e os flippers do Peludo ou o pilas do Serafim Lamelas ou a batota no Club e no Fernando da Sede, isto para não falar nos sorteios da itinerante associação de invisuais, ainda os invisuais não tinham vergonha de serem cegos, e nas rifas da Comissão de Auxílio. Futebol e política, Deus e o Diabo, vinhos e petiscos, carros, gajas e motorizadas, pré-congelados e piratas, caça e pesca, pistolas, espingardas e canhões de Navarone, gramática e escafandrismo, meteorologia e teoria da relatividade, grandes escritores e livros nunca lidos, países e bandeiras do mundo, chá de cidreira e actores de Hollywood, rácios bolsistas e festival da canção, bandas de música e ranchos folclóricos, a cor dos olhos de Brigitte Bardot e a cor de burro quando foge - era só escolher. Fosse qual fosse o tema, éramos teimosos, tínhamos opiniões, pontos de vista, prismas, ópticas, enfoques, perspectivas e até ângulos, cismas, birras e finca-pés, exageros de verde tinto e cerveja a copo que encorajavam certezas absolutas e desencontradas. E faltava dizer isto: a coisa passava-se realmente em tascos e cafés. Sobretudo.
Havia um extraordinário grupo de veteranos músicos da Banda de Revelhe que era particularmente dado à arte da ateimação. A cultura fafense deve-lhes muito, a essa meia dúzia de exímios ateimadores, mestres e guias de sucessivas gerações de jovens músicos da nossa terra, mas não é isso que aqui interessa. Estavam sempre naquilo, os velhos, nas ateimas. E uma vez que, também preguiçosos, não tinham vagar nem feitio para chegarem a vias de facto por forma a resolverem-se entre eles como adultos, precisavam amiúde de um juiz de fora, imparcial e sábio, que desempatasse as suas inumeráveis disputas, tolas e desnecessárias a maioria das vezes.
O Google ainda não tinha sido inventado, e portanto ligavam-me a mim, primeiro para o jornal e depois para o telemóvel, quando o telemóvel finalmente apareceu. Após a invenção do Google, ligavam-me na mesma, porque há coisas que eu sei e o Google não sabe. Ligavam-me, "Nane, por causa de uma ateima"...
Ligavam-me e o meu primeiro problema era perceber o que é que eles queriam. Do lado de lá havia facções, claques, vozes várias, interrupções, indisfarçáveis caralhadas. Eu já disse que aquilo passava-se principalmente em tascos e cafés, e acrescento que acontecia a certas e determinadas horas, horas cheias e bem bebidas. As palavras telefónicas dos meus estimados consulentes entaramelavam-se por norma e eu não raro também, porque quem sai aos seus a mais não é obrigado. Mas lá chegávamos. E então eu sentenciava, armado em parvo, resolvia a ateima, mas, que me lembre, por mais explicações que apresentasse, nunca consegui convencer a parte vencida, e tenho esse grande desgosto no meu currículo...

Fafe é uma terra de enormes tradições. E a ateima era uma bela tradição fafense. Não sei, porém, se ainda se pratica. Os velhos músicos deixaram de tocar na Banda de Revelhe e já não me ligam, estimo-lhes que ao menos continuem a beber. O Bertinho, meu rico menino, também já não me liga a perguntar, mas esse está desculpado. E eu para aqui, fafense exilado e imprestável, cheio de certezas para dar e vender, já que para mim há largos anos que não tenho nenhuma. E entretanto, em Fafe, as tradições multiplicam-se e medram, algumas tradições que não interessam a ninguém e até espantosas tradições inventadas ainda agora por uma autarquia que ostenta o gosto do croquete e a mania do novo-riquismo cultural. Sinceramente, espero e peço que a Câmara, e já nem falo em subsídio, pelo menos deite os olhos às nossas ateimas e não lhes permita o falecimento...

Molhando a palheta

Vamos então ao boleto. O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos, uma espécie de gratificação, provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número na procissão mas "ainda não ganhavam".
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito.
Posso ter inventado esta memória que se segue, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E o que acontece? Não sei porquê (sei, sei!), a minha cabeça começou então a associar boleto a merenda, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango abusivamente churrascado, moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em vinho até ao nariz.

Vinho, que é como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para lhe disfarçar o pique a vinagre. Mas bebia-se. Porque beber fazia parte da arte, e tinha o seu próprio solfejo, um tempo de aprendizagem...

Mudança de turno

Foto Hernâni Von Doellinger

Crocodilos no Jardim do Calvário

Foto Hernâni Von Doellinger O Jardim do Calvário, em Fafe, recebe a partir de amanhã um exposição de dinossauros . E isso é porreiro. Quinze...