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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Na baliza, sem presunção de inocência

É goleiro no Brasil e guarda-redes em Portugal, o que em certa medida explica logo à nascença a suprema necessidade e a utilidade sem medida dessa coisa escaganifobética e sonsa a que certos doutores chamam acordo ortográfico. Falando à nossa moda, o guarda-redes é-o, regra geral, porque, no que diz respeito à bola, não serve para mais nada, não joga um caralho, não dá uma para a caixa, é um trambolho, um cepo, um arrocho, e por isso vai para a baliza. Exactamente: o arrocho vai para a baliza. Ali pelo menos não estorva. E grita a torto e a direito "Sainde da frente!, Sainde da frente!", desarrumando imaginárias barreiras no miserável recreio da Escola Conde de Ferreira, no largo da Feira Velha ou entre as aprazíveis tílias do Santo Velho, fazendo todo o cuidado aos vidros da Milinha Modista, isto era em Fafe mas podia ser no Maracanã ou no Prater de Viena, era só pensar e escolher. Sei muito bem do que falo, da maneira de ser arrocho. E falo orgulhosamente por experiência própria, não sendo o único.
Albert Camus, Arthur Conan Doyle, Karol Wojtyla, conhecido como papa João Paulo II, que foi eleito santo, Che Guevara, Julio Iglesias e até Luís Marques Mendes tentaram ser ou foram mesmo guarda-redes. Do Luisinho lembro-me eu muito bem, nas camadas jovens da nossa AD Fafe, que agora tem uma extraordinária SAD que parece que vai para Felgueiras, suponho que na velha carreira, ida e volta todos os dias, como faziam antigamente as pessoas sérias, isto é, as pessoas que têm só uma família e trabalham...
Duas das melhores definições sobre o guarda-redes, digo eu, terão sido elaboradas pelos escritores Eduardo Galeano e Nelson Rodrigues. "Carrega nas costas o número 1. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito", sentenciou o uruguaio. Já o brasileiro Nelson Rodrigues afirmou um dia - "Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários."
Por mim, o que continua a interessar-se particularmente no ofício de guarda-redes é tentar perceber esse mistério do homem que entra em campo como "guardião", sim, chamam-lhe guardião, e sai do campo como "frangueiro", sim, chamam-lhe frangueiro, ao ex-guardião. Frangueiro e filhodaputa. E penso na desgraça que aí vai a respeito de Adán, o intermitente guarda-redes do Sporting.

É preciso que se note, o menosprezo pelo guarda-redes não é de agora, vem desde o tempo da invenção do futebol. O guarda-redes nunca constou de esquemas tácticos, não entra nos fundamentos do jogo. Eram "onze contra onze", ficou estabelecido, mas o guarda-redes, nem que fosse "o melhor do mundo", não contava para o totobola. O guarda-redes era uma espécie de Santa Bárbara (embora esse fosse do andebol), só se lembravam dele quando acontecia penálti. De resto, havia o 1-1-8, o WM, o 4-2-4, o 3-4-3, o 4-3-3 e o 3-5-2. Sobretudo. E é só fazer as contas, somar os algarismos e ver que dá dez, não onze. Até W mais M é igual a dez. O "onze contra onze" é uma fraude - eram dez contra dez e era um pau, e a bola era redonda mas nem sempre. Essa é que é essa. E hoje em dia, por mais losangos, faixas e terços do terreno que inventem, a desconsideração continua. O guarda-redes só é necessário porque é preciso um bode expiatório. E, no entanto, ele houve e há grandes guarda-redes, autênticos salvadores da pátria, valha-me Deus!

David Alves ensinava: o melhor guarda-redes do mundo era Clemence, o inglês. Nem o checo Plánicka, nem o russo Yashin, nem o alemão Sepp Maier, nem o italiano Dino Zoff, nem outros de semelhante calibre - antes, durante e depois. Era Ray Clemence, que nos anos setenta e oitenta do século passado brilhou ao serviço do Liverpool e da selecção inglesa. E o David sabia do que falava: ele próprio tinha atrás de si uma interessante carreira como guarda-redes, posto que de mais recatados recursos. Sendo de Fafe, fizera a sua formação nos juniores do FC Porto, passou algumas temporadas no Paços de Ferreira, se não me engano, e ainda o vi jogar pelo Desportivo das Aves, creio que no tempo em que por lá andava também (ou andou pouco tempo depois) um famoso defesa central chamado Kentucky, que só me lembrava os Definitivos, pecados velhos. Por outro lado, o David Alves foi o primeiro José Mourinho que eu conheci. Isso mesmo. O David era inteligente, culto e visionário, carismático, tinha mundo, era um estudioso e metódico transgressor, promovia a acção psicológica: com um par de décadas de avanço, inventou em Portugal aquilo que hoje em dia é corriqueiro em todo o lado. Pensador por natureza, pedagogo, ele passava o futebol ao papel, e do papel passava o futebol ao campo. E no campo era bonito de se ver. O treino era ciência, os treinos eram aulas - ele levava-me muitas vezes para assistir. E era uma prazer ouvi-lo. Se não me engano, o David começou a carreira de treinador no Maria da Fonte, da Póvoa de Lanhoso, e eu pressentia que ele iria longe, muito longe, primeira divisão, estrangeiro até. A vida, porém, não lhe deu tempo para levantar voo...
Por aquela altura, o meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente um frangueiro de créditos firmados. Era um acrobata voador, um contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até - guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos, voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca, pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola, ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo, era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para explicar. Para ensinar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático, sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos grandes jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu em 2020, tinha 72 anos. Lembrei-me dele e deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, numa idade em que devia ser proibido morrer. O David morreu e ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...

Já disse. Qualquer dia, quando eu estiver pronto, espero escrever a sério sobre David Alves, o nosso David Alves, guru natural e sem querer de uma ou duas gerações de jovens fafenses. Fomos uns sortudos!

E, para fechar com chave de ouro, uma extraordinária curiosidade. Dino Zoff e Sepp Maier, dois dos melhores guarda-redes de todos os tempos, nasceram no mesmo dia, com uma diferença de dois anos. E estão hoje de parabéns. O italiano, o mais velho jogador de futebol a ser campeão do mundo, nasceu no dia 28 de Fevereiro de 1942 e disputou 112 jogos pela Squadra Azzura. O alemão nasceu no dia 28 de Fevereiro de 1944, jogou sempre no Bayern Munique e actuou 95 vezes pela selecção de seu país.

(Texto publicado originalmente, assim revisto e compilado, sob o título "A culpa é do guarda-redes", no meu blogue Tarrenego!)

quarta-feira, 26 de abril de 2023

O arrocho ia para a baliza

Hoje é Dia do Goleiro. No Brasil. Se fosse em Portugal, seria Dia do Guarda-Redes, o que em certa medida explica logo à nascença a suprema necessidade e a utilidade sem medida dessa coisa escaganifobética e sonsa a que certos doutores chamam acordo ortográfico. Falando à nossa moda, o guarda-redes é-o, regra geral, porque, no que diz respeito à bola, não serve para mais nada, não joga um caralho, não dá uma para a caixa, é um trambolho, um cepo, um arrocho, e por isso vai para a baliza. Ali pelo menos não estorva. E grita a torto e a direito "Sainde da frente!, Sainde da frente!", desarrumando imaginárias barreiras no miserável recreio da Escola Conde de Ferreira, no largo da Feira Velha ou entre as aprazíveis tílias do Santo Velho, fazendo todo o cuidado aos vidros da Milinha Modista, mas podia ser no Maracanã ou no Prater de Viena, era só pensar e escolher. Sei muito bem do que falo. E falo orgulhosamente por experiência própria, não sendo o único.
Albert Camus, Arthur Conan Doyle, Karol Wojtyla, o papa João Paulo II, que foi eleito santo, Che Guevara, Julio Iglesias e Luís Marques Mendes tentaram ser ou foram mesmo guarda-redes. Do Luisinho lembro-me eu muito bem, nas camadas jovens da nossa AD Fafe, que agora tem uma extraordinária SAD que parece que vai para Felgueiras, suponho que na velha carreira, ida e volta todos os dias, como faziam antigamente as pessoas sérias, isto é, as pessoas que têm só uma família e trabalham...
Sobre guarda-redes, percebia muito o David Alves, como sabia também da vida. E eu já aqui contei. E também já passei a limpo duas ou três definitivas ideias que concatenei sobre a problemática guarda-redística e suas derivadas e concomitantes subjacências. Embora, não é para me gabar, eu seja geralmente brilhante, admito que duas das melhores definições sobre o guarda-redes terão sido elaboradas pelos escritores Eduardo Galeano e Nelson Rodrigues. "Carrega nas costas o número 1. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem a culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito", sentenciou o uruguaio. Já o brasileiro Nelson Rodrigues afirmou um dia - "Amigos, eis a verdade eterna do futebol: o único responsável é o goleiro, ao passo que os outros, todos os outros, são uns irresponsáveis natos e hereditários."
Por mim, o que continua a interessar-se no ofício de guarda-redes é tentar perceber esse mistério do homem que entra em campo como "guardião", sim, chamam-lhe guardião, e sai do campo como "frangueiro", sim, chamam-lhe frangueiro, ao ex-guardião. Frangueiro e filho da.

Eu não dei para nada, nem para guarda-redes. Fui sempre uma nódoa, futebolisticamente falando, desportivamente falando. Mas sei muito bem de quem tinha jeito para tudo, era só chamá-lo, dar-lhe a experimentar, fosse o que fosse, e ele, pimba, era imediatamente um sucesso. Sem ir mais longe, chamo aqui, a esse propósito, o testemunho parceiro de Francisco Assis Pacheco, nas suas "Memórias de Um Craque". E ele conta assim:

De como fiz a minha iniciação desportiva, hesitando entre a arte de guarda-redes e a de pedróbolo da quinta do Lopes

O Eusébio marca livres de 30 metros, o Artur Jorge chuta em moinho, o Dinis faz fintas à bandeirola de canto, mas eu fui o maior craque da Rua Guerra Junqueiro e está para nascer um sucessor digno desse título.
A Rua Guerra Junqueira continua no mesmo sítio, isto é, em Coimbra, capital da Beira Litoral, e creio que já de nascença tinha o quintal do Luís Marques (12x2,5m) com a parede do prédio à esquerda de quem desce as escadas e um muro infelizmente não muito alto à direita, que era por onde galgávamos para o quintal do Lopes à procura da chincha. Uma tarde, estava o craque nos cinco anos, ouviu-se a frase entre todas decisiva:
"E se o miúdo jogasse à baliza?"

Vi-me subitamente presenteado com um boné e dois lenços de assoar para as joelheiras. A maltózia era mais velha, nove, dez anos, e num relance percebi que o meu futuro desportivo, assaz brilhante nas épocas seguintes, poderia nem sequer começar. Ora como isto de futebóis mais vale um mergulho para o fotógrafo do que dois meses no banco dos suplentes, o craque enfiou o boné bem enfiado na tola, arreganhou o pior dos sorrisos (grr!) e dispôs-se a gravar o nome completo sobre o cimento do quintal. É claro que a minha equipa ganhou: nem seria nunca de outro modo, pois logo à pri­meira investida do Tó Mané Magalhães esfola gatos mata cães fui­-me a ele, encostei delicadamente a biqueira do sapato esquerdo ao tornozelo do artista, fiz força (uma força "do catarino", como então se dizia) e apliquei-lhe o acelerador com algumas ganas e sobeja intenção de brilhar. O Tó Mané desandou para as escadas agar­rado ao tornozelo. Perguntaram-lhe se queria que trouxessem a bilha de água.
"Quero, pois", urrou. "Quero a bilha e quero um calhau pra partir os focinhos a esse gajo do cento e dezoito!"
Nessa tarde, afora o incidente relatado supra, correu tudo à me­dida dos meus mais veementes desejos: cinco defesas em reboleta, três por cima das sardinheiras, enfim um penáltie socado por cima do muro que ainda estou a ver o Luís Marques muito chagado ex­plicando-me assim:
"Vais lá tu que é pr'aprenderes a não armar ao Barrigana, òviste?" Fui, sim senhor, e deliciado. Daí a pouco terminava o prélio: vi­tória dos Portas Pares, um convite ad aeternum para aparecer sempre que entendesse. Durante mais de sete anos não faltei ao compro­misso.

Como depois da jogatana era preciso secar as camisas, Luís Marques e seus muchachos costumavam trespassar-se até ao quin­tal do Lopes e entreter os derradeiros ócios antes da sopa da noite com um exercício de arremesso. Destarte me tornei o mais artilheiro dos pedróbolos da rua, com um saldo de catorze gatos só na semana de estreia. Quando ouço contar que o Zsivotzky lança o martelo a - setenta metros e tal, batendo com isso os máximos reconhecidos e a reconhecer, debruço-me na janela da Travessa do Patrocínio e,

deitando a bia fora, ponho-me a pensar em quanto é cruel o mundo dos homens. Um recordista mundial que não dá nem uma calhoada num gato - então isto chama-se pontaria?

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...