quinta-feira, 30 de novembro de 2023
Papando uns e outros
Fafe não gosta da família?
Este ano, no total, foram distinguidos 108 municípios por todo o país, mais 13 do que no ano passado, e nem assim Fafe lá chegou. Insisto: eu não sei o que é que isto quer dizer, limito-me a ser eco da notícia, eventualmente omissa na quase sempre faustosa comunicação municipal.
terça-feira, 28 de novembro de 2023
Brothers in arms
A representação dos emigrantes
segunda-feira, 27 de novembro de 2023
A arte de instagrar
Foto Hernâni Von Doellinger |
Quem escreve sobre gastronómicas matérias no jornal da Sonae vê-se que tem inúmeros mestrados e consideráveis doutoramentos em Técnicas de Titulagem, mas também se percebe que é gente que só entra na cozinha para perguntar à mãezinha "o que é o comer". Não nego à partida que estas senhoras e estes senhores jornalistas sejam experts em lasanha pré-cozinhada do Lidl ou em rissóis e alegados bolinhos de bacalhau congelados do Pingo Doce, posto que fazem das tripas coração para que o patrão não saiba. Falta-lhes é o resto, a basezinha, como diria o nosso Eça, que, esse sim, sabia de mesa.
Vamos supor: um prato realmente "absolutamente fenomenal" como, não vamos mais longe, um arrozinho de grelos com fanequinhas fritas, à moda do que se fazia em Fafe e eu faço cá em casa. Chega à mesa e tira-se-lhe fotografias - deste e daquele lado, do direito e do avesso, de ângulo aberto ou fechado, visto de cima ou de baixo, de luz acesa ou com flache - em vez de se lhe garfar com toda a galhardia? Então vou explicar o que se passa entretanto: o malandro do arroz coalha, fica arroz de hospital, argamassa de atirar às paredes, e as fanecas, esse peixinho tão honesto, esfriam, perdem a graça, afeiam-se, desapetitam-nos. Uma calamidade!
E atenção que as fanequinhas frias ainda vá lá, mas no tasco e no Verão. E verão que tenho razão (esta veia poética que não me larga), quando um dia perderem a cabeça e experimentarem, o Verão e o tasco. Já o arroz segue directamente para o balde do lixo, tamanha dor de alma ainda por cima nestes tempos agrestes de cotão nos bolsos e tanta fome na rua.
Também é verdade: há pratos que são como a vingança, devem ser servidos frios, e por isso até se chamam pratos frios - como comprova a orelheirazinha lá de cima. E estes podem ser fotografados à moda das sessões de casamento, quero dizer: entre as oito da manhã e as seis da madrugada do dia seguinte, sempre a dar-lhe. Quanto ao resto, por amor de Deus, fiquem quietos! Creio que posso dizer melhor: respeitosamente, comam fotografias à vontade se, tipo, lhes souber bem, mas, por favor, não me instagrem a comidinha a sério (à séria, se por azar lido em Lisboa)...
Já agora: um tasco é um tasco. Uma tasca ou uma tasquinha são outra coisa...
Etiqueta à mesa
sábado, 25 de novembro de 2023
Cimeira de alto nível em Fafe
Foto Hernâni Von Doellinger |
sexta-feira, 24 de novembro de 2023
Deixe-se estar, que está quentinho
quinta-feira, 23 de novembro de 2023
O sapo como animal doméstico
segunda-feira, 20 de novembro de 2023
Abaixaide-vos, vai vir charters!...
Foto Hernâni Von Doellinger |
E o que é que Fafe tem? Pois, para além da igreja e do palacete levados ao engano, Fafe tem a Casa do Penedo e a Casa do Santo Velho, na minha rua, e "um enorme parque aquático ao ar livre", embora os indígenas prefiram refrescar-se "no reservatório local chamado Barragem de Queimadela". Para além disso, garante o indesmentível The Sun, Fafe tem "comida e bebida baratas", "restaurantes baratos e hotéis económicos". É pouquinho? Mas é de boa vontade.
Isto aqui vai ser outra vez o fim do mundo. E convém que parem por aí os estudos uns atrás dos outros que só dão despesa e não vão a lado nenhum. Nem Portela, nem Portela + 1, nem Portela + 2, nem Montijo, nem Alcochete, nem Santarém, nem Pegões, nem Rio Frio, nem Poceirão, nem Beja, nem Monte Real, nem Alverca. Nada disso. O novo aeroporto de Lisboa só pode ser em Fafe! Em Fafe, mais exactamente na freguesia de Golães, cumprindo-se enfim a viperina profecia da má-língua de outros tempos.
Ó gente da minha terra, abaixaide-vos! Vai vir charters...
domingo, 19 de novembro de 2023
sábado, 18 de novembro de 2023
Novo aeroporto de Lisboa é em Fafe
E agora as mamoas de São Jorge
Assim com maiúscula, o Pionono era exactamente em São Jorge, é justo que se diga. Pionono era nome próprio, sítio, geografia. "Vou ao Pionono". Ia-se ao Pionono. Ia-se aos pinheiros pelo Natal, ia-se esgaçar umas pernadas de carvalho para o trono da cascata do Santo António, ia-se aos fentos ou ao mato para o eido ou às giestas secas para espertar a lareira do chão da cozinha, ia-se brincar aos cobóis, ia-se cagar ao monte e ia-se dar umas trancadas, e o que eu gostava da palavra trancadas, mesmo sem ainda conseguir alcançar o que ela quereria dizer.
(As giestas também davam umas vassouras de categoria e o Trancadas era um barbeiro mesmo ao lado do tasco do Neca do Hotel, proximidade que se revelava de uma comodidade extrema. Por falar nisso, lembro-me de descer um degrauzinho, mais cá para o centro da vila, ali entre a sombria loja da Rosindinha Catequista e a Cafelândia, mas esse era o Sr. António Grande, o segundo barbeiro do meu padrinho Américo. Eu ia lá com o meu padrinho mais o meu tio Zé da Bomba, aos sábados de manhã, que naquele tempo eram sempre de sol. Na espera lia-se "O Primeiro de Janeiro", mal eu sabia que ainda o haveria de fazer. O meu padrinho Américo e o meu tio Zé da Bomba eram irmãos do meu pai, o grande Lando Bomba, e depois foram meus pais, à falta do propriamente dito, por razão de força maior.)
Hoje os montes de São Jorge e de Castelhão são casas e é o progresso. Os montes foram capados, terraplenados, desarborizados, alcatroados, liquidados. Os montes morreram de morte matada e a culpa morreu solteira. Fafe já não tem piononos. Mas, dizem-me, tem ainda a "Garrafinha" e historiadores até dar com um pau. Um deles, quem dera que não chova, ainda há-de contar esta como deve ser.
Só para que conste: pio-nono será a forma "correcta" de escrever, se nos referirmos ao meco. Mas pionono pode ser também nome de doce muito popular em Espanha, na América Latina e nas Filipinas. Por outro lado, Pio IX, que se chamava Giovanni Maria Mastai-Ferretti, teve o segundo maior pontificado da história da Igreja, logo a seguir a São Pedro. E foi o primeiro papa a ser fotografado.
P.S. - Para quem se interesse por estas coisas, há mais para ler sobre os desaparecidos piononos de Fafe aqui e aqui.
Fafe foi notícia esta semana no tablóide inglês The Sun, a propósito de uma não sei o quê feita por um tal de "Porto travel guide", onde Fafe aparece como a cidade mais barata de Portugal para se visitar. Ora, tirando umas aldrabices lá estampadas e uma foto do palacete que foi dos meus avós com a legenda "Igreja românica de Arões", até que ficou bonita... Aqui está.
https://www.thesun.co.uk/travel/24722483/fafe-portugal-cheapest-city-break/?utm_campaign=native_share&utm_source=sharebar_native&utm_medium=sharebar_native
O Dia do Bruxo
Para além disso, o Sr. Fernando Nogueira é uma figura nacional, é procurado por gente da alta, do futebol, do poder, até do estrangeiro, trata o diabo por tu, fala aos jornais, aparece na televisão, é entrevistado pelo Manuel Luís Goucha, é assunto da Joana Marques na Rádio Renascença, acerta amiúde no euromilhões, tem sítio oficial na internet e, sendo de Guimarães, porque ninguém é perfeito, podia muito bem escolher o nome que lhe apetecesse, com mais ou menos molho e lantejoulas, mas não, preferiu-nos, faz questão de ser o Bruxo de Fafe, sorte a nossa. Simplesmente Bruxo de Fafe, insistentemente Bruxo de Fafe, e, orgulhoso, dá a esta marca que também nos envolve o indesmentível cunho de garantia: "Eu sou o Bruxo de Fafe, não sou charlatão!", costuma declarar quando interpelado por desconfiados ou incréus, honrando-nos a todos, e eventualmente nem todos o merecemos.
Torno, por isso, à minha. Mas qual Dia das Bruxas, mas qual Halloween, ó meu Deus, ainda por cima Halloween! Em Fafe, não! Estamos servidos. Em vez de encher a noite do Pavilhão e da Biblioteca com bichas cabeçudas, abóboras de plástico, esqueletos desengonçados, teias de aranha a fingir, morcegos em cartolina, rolos de papel higiénico e bruxas desencartadas, tudo à americana, tudo copiado de lá de fora, tudo tão longe das nossas verdadeiras tradições, melhor faria o Município se olhasse para o que tem à mão e declarasse oficialmente o dia 31 de Outubro, hoje mesmo e doravante, Dia do Bruxo. Do Bruxo de Fafe. Era de justiça.
P.S. - Publiquei este textinho no passado dia 31 de Outubro, como é fácil de perceber. Mas passou praticamente invisível, como, de resto, convém a estas coisas do esoterismo. Ora bem: hoje é Dia do Ocultismo, isto que não saia daqui, e portanto repito-o, a ver se desta vez faz efeito.
quinta-feira, 16 de novembro de 2023
A bola, como uma mulher
Foto Miguel Ruiz/FCB - Expresso |
EpifaniaEle viu a Luz. Viu a Luz e disse: - O Dragão é mais bonito.
Messi conhece como ninguém, a cada momento, o ponto G da jogada que ainda nem lhe chegou aos pés. Ele adivinha o sítio onde a bola o vai procurar. Recebe-a com um beijo, oferece-lhe flores, acaricia-a, leva-a a passear, e ela gosta, retribui os carinhos, abraça-se-lhe à chuteira num abraço só desfeito no exacto momento do remate. Digo mal. Mas qual remate? Messi não chuta, passa a bola à baliza e é golo. O pequeno Messi é um cavalheiro, um amante delicado e atencioso: trata a bola como ela merece. A bola, como uma mulher...
Lionel Messi estreou-se pelo Barcelona aos 16 anos, no dia 16 de Novembro de 2003. Foi em Portugal, no jogo da festa de inauguração do Estádio do Dragão, que o FC Porto ganhou por 2-0. O menino Messi entrou em campo a 14 minutos do fim. Exactamente: o Estádio do Dragão faz hoje 20 anos. E de repente pareceu-me uma óptima ideia falar das instalações do FC Porto por um bom motivo...
A mão que cumprimentou Agostinho da Silva
O despertar do filósofo
- Chega-me o açúcar - disse a mulher do filósofo.
quarta-feira, 15 de novembro de 2023
segunda-feira, 13 de novembro de 2023
O Senhor Órfo, no seu merecido dia
Em Fafe, Órfão era nome próprio e dizia-se Órfo. O Órfo trabalhava no Talho, isto é, o Órfo era o Órfo do Talho, do Talho do Órfo, que realmente não se chamava desta maneira mas Talho Novo, o que é curioso porque, pelo menos de acordo com minha memória, este começou por ser o único talho de Fafe, no Largo, ali no enfiamento do Fernando da Sede, do Foto Jóia, do Romeu e outros que tais, tudo gente porreira, excelentíssima, o Órfo incluído. Para a mim, que era mocico e tinha medo à mão da minha mãe, o Órfo só podia ser Senhor Órfo, mas a expressão assim composta parecia-me um bocado parva só de a pensar da cabeça para dentro e portanto eu nunca a disse da boca para fora. Quer-se dizer. A vida em Fafe era muito simples naquele tempo, mas às vezes fazia-me confusão...
Ora bem. Para quem não sabe, hoje é uma efeméride. Aliás, hoje é várias efemérides, nomeadamente duas, mas centremo-nos na efeméride que nos interessa e que, modéstia à parte, nos diz respeito. Isto é: hoje é Dia Mundial do Órfão. Do Órfo, sim! É realmente uma grande honra para Fafe. E é merecida...domingo, 12 de novembro de 2023
"Eu e a UNITA", já à venda
O novo livro do jornalista Orlando Castro, "Eu e a UNITA", já está à venda. Sobre si próprio, diz o autor, lapidarmente: "Ao longo dos anos defendo aquilo que considero o mais correcto para a minha terra, Angola. Consigo não agradar nem a gregos (MPLA) nem a troianos (UNITA)". A obra conta com prefácio de William Tonet.
sábado, 11 de novembro de 2023
Fafe cheirava a sabão amarelo
sexta-feira, 10 de novembro de 2023
A landre
quarta-feira, 8 de novembro de 2023
Jardins era uma coisa que existia antigamente
Foto Hernâni Von Doellinger |
E corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E foram. Adão e Eva cometeram o pecado original e deu na merda que deu. Até hoje.
Assim. Pegue-se num bom pedaço de terreno relvado, com árvores, com sombras e talvez com charcos, e arrase-se tudo. O terreno, a relva, as árvores, as sombras e os charcos também. Encha-se o espaço de alcatrão, cimento, placas de granito e mármore, pedregulhos aparelhados fazendo de conta de bancos e estacas de alumínio a imitarem árvores ou, quem sabe, a imitarem esculturas muito inteligentes, de preferência com esguichos mas sem água derivado à seca e à poupança. Isto é urbanismo! Pegue-se no jardim da cidade, arranquem-se as flores e os arbustos, envenene-se o verde, construam-se desertos em forma de praça e mandem-se as pessoas para casa. Isto é urbanismo! Pegue-se num monte, sítio de memórias, de brincadeiras da infância, santuário de locais secretos e míticos, reserva de saúde e natureza, e corte-se-lhe a crista, cape-se, desarborize-se, desfaune-se, terraplene-se, enxote-se a bicharada, cale-se o incómodo do chilreio dos pássaros, ergam-se moradias de preferência com feitio de caixote, altas, pegadas e muitas, fechadas, e muros e portões e estradas e carros e escapes e buzinas e estampanços e atropelamentos e antenas parabólicas e fios e postes de alta ou remediada tensão. Isto é urbanismo!
Resumindo e concluindo: roubam-nos os jardins e dão-nos esplanadas desamparadas e escaldantes, arrancam-nos as árvores e impingem-nos guarda-sóis publicitários. Os senhores doutores engenheiros da Câmara chamam-lhe urbanismo. Progresso. Eu digo que é estupidez. Natural.
segunda-feira, 6 de novembro de 2023
domingo, 5 de novembro de 2023
À facada, era tiro e queda
Acho mal. E no entanto assobio. Ennio Morricone é que sabia...
sábado, 4 de novembro de 2023
Simplesmente Simplício
Foto Tarrenego! |
E a Super Bock secou na ilha do Sal
E lembro-me do Verão de 1990, na ilha do Sal, Cabo Verde. Agosto passava para Setembro, e a Super Bock esgotou literalmente em toda a ilha. Fui eu.
sexta-feira, 3 de novembro de 2023
Dona de casa, dona de quê?
quinta-feira, 2 de novembro de 2023
Jornalista, disse ele
- Profissão?
- Jornalista.
- Imprensa, televisão, rádio, agência noticiosa ou multimédia?
- Câmara municipal.
P.S. - Hoje é Dia internacional pelo Fim da Impunidade dos Crimes Contra Jornalistas.
O gestor de projectos
P.S. - Hoje é Dia Internacional da Gestão de Projectos.
quarta-feira, 1 de novembro de 2023
O pãozinho do Senhor
Foto Hernâni Von Doellinger |
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e os moços ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos involuntários, à espera dos ossos que não havia. Levavam troços de couves, cascas de batatas, espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, rupestre, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos e vidas de uso e das águas entornadas que lhe davam uma consistência de betão. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça (atenção!, uma banca de madeira), quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no monte. (E já lá iremos, ao monte.)
Era neste chão que eu às vezes deixava cair o meu megalítico naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu beijava o pão e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar.
(O meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...)
Na nossa casa, em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. Dizia-nos, a mim e aos meus irmãos, que o chão não suja, que o beijo purifica, que não se pode estragar pão, é pecado, porque há muita gente com fome, pessoas mais pobres do que nós. E se o pão ficava intragável e tinha mesmo de ir para a estrumeira, só depois de um beijinho de adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, estragado fico eu.
Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.
Agora vou contar o seguinte: fui muitas vezes à merda. E gostava. A Bó mandava-me com uma telha à procura de poios de bosta fresca, que depois servia para calafetar o forno onde se cozia a broa. Eu passava sempre uma temporada das férias grandes na aldeia e ir à merda era o meu modesto contributo para que tivéssemos pão à mesa. Isso e às vezes ir à fonte buscar água, coisa de menina, só para se rirem de mim.
(Para a aldeia ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento. Nessa enorme garagem também se construíram carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era desengonçada e cinzenta a carreira. Cheirava mal, espevitava enjoos. Ia-se com o nariz enfiado em meio biju para não gomitar e mesmo assim gomitava-se - falo por mim. Ia-se na carreira até Várzea Cova, e ali acabava a estrada, acreditem no que eu digo: o mundo acabava mesmo em Fafe. Dali já só faltavam mais cerca de cinco quilómetros a pé, em monte de sobe e desce, fizesse sol ou diluviasse, certa vez até passando a vau o ribeiro que a força de um inverno estoura-vergas desencaminhara e transformara em rio violador de margens. Chegávamos então à aldeia, como nunca na vida lhe chamámos. Era Basto. Freguesia de Passos, concelho de Cabeceiras de Basto, mas simplesmente Basto, para nós.)
A minha avó Emília, que era pequerricha e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e dias. Naquele tempo, o pão era o principal alimento dos portugueses. O pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente ambígua, a propaganda salazarista. Por ordem expressa de Salazar, beber vinho, naquela altura, era "dar de comer a um milhão de portugueses", e o patriótico e honrado povo de Passos podia não saber o que era bife nem tinha electricidade nem água, mas sempre deu o litro para que o resto do País não passasse fome. E o resto do país já então era Lisboa.
Beber era um honesto modo de vida. Podia faltar tudo na casa da Bó de Basto, e às vezes faltava muito, mas havia sempre broa com fartura e umas imensas malgas de "amaricano" às quais eu gostava de mandar umas pescoçadas até dizer ahhhhhh!...
Em Basto, as visitas eram recebidas com malgas de vinho e aparas de bacalhau salgado e falava-se como se fôssemos galegos, e a querida Tia Margarida felizmente ainda fala. E sempre broa, sem outros mimos. O almoço era o "jentar", e o jantar era a ceia. E bebiam-se, a acompanhar, umas valentes pingoletas. Também se bebia durante a merenda, que era aquela meia dúzia de horas de sol que vai desde o "jentar" até à ceia. Bebia-se, portanto, apenas às refeições - quer-se dizer, o dia inteiro. E já agora: o almoço, assim dito, era o café da manhã. E a manhã era madrugada, com música de galos tenores e carros de bois deslubrificados. O café era cevada, feita ao borralho, numa velha chocolateira de barro e tampa tamborileira e dançarina. Que saudades tenho dessa vida e dessa idade, dessas ideias que graças a Deus me ficaram, ainda no outro dia o "dixe" outra vez ao meu tio Al Pacino, o meu querido tio "Jé".
Enciclopedista fortuita e inocente, involuntária, alma fora da geografia e do tempo, a querida Bó de Basto alimentava-nos também o espírito. Lendas, contava-as que era uma categoria. Eram lendas mansas, de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de morar, lembro-me bem e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a primeira. Os efeitos especiais das histórias da avó - esperta, santa sem diploma, anjo sem asas à vista - foram muitos anos mais tarde copiados pelo cinema americano. Até aquele famoso jogo de sombras manipulado pela irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era das histórias da minha avó. E o vinhinho aquecido ao borralho com uma maçã assada lá dentro também, mas isso parece que os filmes não aproveitaram.
Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao monte. Eu e e minha avó, maravilhosa guardadora de lendas e tudo. E a Bó mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, a frincha de entrada, não havia dúvidas. Ainda por cima, até as lendas da minha avó eram verdade. Como poderia mentir-se acerca do pão?...
O estresse
P.S. - Hoje é Dia de Consciencialização do Stress.
Um dia sumamente produtivo
Crocodilos no Jardim do Calvário
Foto Hernâni Von Doellinger O Jardim do Calvário, em Fafe, recebe a partir de amanhã um exposição de dinossauros . E isso é porreiro. Quinze...
-
Foto Hernâni Von Doellinger A minha rua era um largo. Santo Velho, como lhe chamavam os antigos, ou apenas Santo, como lhe chamávamos nós os...
-
O grande Costeado. João Costeado, que, vem hoje nos jornais , regressa ao seu Vitória de Guimarães para tomar conta da braçadeira que o trei...
-
A ciência ainda não encontrou uma resposta plausível e, pelo menos, isenta de misoginia: porque é que os ovos de galo são maiores do que os ...