sábado, 20 de agosto de 2022

E tudo começou no Campo da Granja

Foto Hernâni Von Doellinger
Comecei a ir ao futebol pela mão do meu pai. Íamos ao Campo da Granja ver o Fafe. O Campo da Granja tinha uma bancada pequena apontada ao grande círculo e uma nora atrás da baliza do lado de São Gemil. A nora, neste caso, era um engenho para tirar água de um poço e não funcionava. Mas ficava num altinho muito jeitoso para a assistência. A assistência naquele tempo não era passe para golo, era pessoas. Eu e o meu pai víamos os treinos, os jogos, os juniores em vez da missa (o que arreliava sobremaneira a minha mãe), as reservas e, ao domingo à tarde, o primeiro time. Os domingos à tarde da minha infância eram os melhores dias do mundo. Até tinham altifalantes com marchas do John Philip Sousa, e é preciso que se note que os altifalantes são um acontecimento muito importante na minha vida. Depois o meu pai deixou de ir à bola, por razão de força maior, e eu continuei.
O Campo da Granja desistiu para dar lugar a uma escola de pré-fabricados. E foi bom para todos. Ganhámos o ciclo preparatório e um estádio que havia de ser, mesmo encostado aos Bombeiros. Apareceu-me o buço e, embora uma coisa não tenha a ver com a outra, passei a acompanhar a Associação para todo o lado, pendurado na generosidade de amigos mais velhos e com emprego. Frequentei todos os campos e estádios do Norte do País e, já praticamente de bigode, até fui ao Barreiro arrancar à CUF um lugar nas meias-finais da Taça de Portugal que nos roubaram.
Quando mudei a minha vida para o Porto ainda se ia ao futebol em família. Quero dizer: famílias inteiras, com pai, mãe, avós e netos, sobrinhos, primos, namoradas e namorados. Podia-se ir, não era perigoso. Eu fui logo morar para o Estádio das Antas, Superior Norte, porta com porta com o meu tio Zé da Bomba, que já lá morava há que anos. Consegui converter a minha mulher ao FC Porto, fi-la também sócia e passámos a ir à bola os dois, eu e ela com a cesta do merendeiro atrás, porque naquele tempo não havia lugares marcados e para jogos grandes era mesmo preciso entrar de véspera. E quando digo merendeiro quero dizer exactamente merendeiro: frango assado, sandes de vitela ou lombo de porco, panados, bolinhos de bacalhau, bacalhau frito, pataniscas, feijoada, salada russa, iscas de fígado, rojões, moelas de coelho, arroz à valenciana, filetes de pescada, salpicão, presunto e rebentos de soja, uma toalha de linho em cima dos joelhos, uma garrafosa de verde tinto bem fresquinho, ou duas, e uma garrafa de litro de cerveja, ou duas, por causa dos descontos. Entrava tudo. E marchava tudo. Para não virmos carregados para casa. Aquilo é que era futebol!
Se o FC Porto não jogava nas Antas, então eu ia ao Mar torcer pelo Leixões ou ao Bessa ver o Boavista. Aos sábados puxava pelo Salgueiros em Vidal Pinheiro que Deus tem ou matava o vício no claustrofóbico campo do Infesta, que me dava falta de ar. Sempre que podia, levava comigo o Kiko, meu filho, que tinha a quem sair e gostava muito de ir lanchar aos campos de futebol. Às quartas, dia da minha folga do trabalho, papava campeonatos de reservas, desempates da Taça de Portugal, liguinhas de subida de divisão e torneios de apuramentos de campeões. Em Santo Tirso, em Vila do Conde, na Póvoa de Varzim, em Espinho, em Aveiro, onde calhasse aqui à roda. Havia jogo, eu estava lá. E regalava-me. Mas depois chegaram as sades e as claques "organizadas", como se diz para o crime, e eu vim-me embora.

Às vezes tenho saudades. Tenho saudades do tempo do futebol ingénuo, em estado quase puro, futebol asseado, sem sades, sem ceos e sem administradores e consultores e assessores pornograficamente remunerados e premiados no final do ano ainda que não ganhem nada em campo, ainda que destruam a equipa de futebol e ainda que levem o clube à falência. Do tempo em que os clubes de futebol eram clubes de futebol, associações, colectividades, agremiações. Do tempo em que os presidentes e os directores dos clubes de futebol punham dinheiro do próprio bolso e ainda biscatavam graciosamente ou, como o Fernando da Sede ou o Chester, carregavam botijas de gás às costas até aos balneários para que nada faltasse aos seus "meninos". Do tempo em que dirigentes pagavam bifes a jogadores à rasca da vida. Do tempo dos espectadores, da massa associativa, dos adeptos, dos apaniguados, dos grupos excursionistas, das comissões de auxílio, dos grupos de apoio espontâneos, com bombos e até gigantones e cabeçudos, que não eram poucos. Era o futebol, e o futebol era uma festa! Confesso: às vezes tenho saudades - mas não torno!
O meu pai compreenderá.

Agora dou-me por satisfeito com o que tenho aqui à porta. Aos domingos de manhã eles lá estão. Na praia, fora da época balnear. Jogam à bola porque gostam, são amigos e compinchas, para além disso dá-lhes imenso jeito ganhar apetite para o almoço, Deus os farture. Jogam a sério, têm árbitro, capitães de equipa, minuto de silêncio, estão organizados, já vi assembleias gerais antes dos prélios e minis geladinhas ao intervalo. Há os da praia seca e os da praia molhada. A paixão pelo futebol é a mesma, tremenda e pura. Olímpica. São amadores como quer dizer a palavra. Eles são do meu campeonato. Este futebol basta-me. Para mim, é quase um regresso às origens, com as cores certas e tudo, as cores que até o Vitória de Guimarães acaba de copiar, reconfortante ironia para os fafenses da minha geração. Mas pronto, é o fecho de um círculo praticamente perfeito. Aqui estou, sem nunca ter sabido dar um toque. Foi uma longa e gloriosa caminhada, eu e o futebol. E tudo começou no Campo da Granja...

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