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domingo, 14 de setembro de 2025

Tito, imperador da bola

O autogolo de Manaca
Eu estava lá. No velho estádio, em Guimarães. Fui de Fafe de propósito. Vi ao vivo o autogolo de Manaca que deu o triunfo por 0-1 e o título de campeão ao seu Sporting, sendo ele naquela altura jogador emprestado pelos leões ao Vitória. Foi no dia 25 de Maio de 1980, e eu, portista, estava lá, mesmo atrás da baliza em questão. Vi tudo, sou testemunha, lembro-me perfeitamente. E se quereis que vos diga: não sei, não tenho a certeza do que realmente vi...

Já lá vão mil novecentos e cinquenta e cinco anos, e lembro-me como se fosse hoje. Tito e as suas legiões romanas derrubaram a segunda muralha de Jerusalém. Lá dentro, os judeus, à rasca, fugiram para a primeira muralha, mas os romanos, copiando o Porto de muitos séculos depois, construíram uma circunvalação, cortando vazas aos sitiados e todas as árvores num raio de quinze quilómetros, o que foi imediatamente considerado como um escândalo ambiental. A circunvalação de Tito era também conhecida como muralha de cerco, mais uma vez plagiando por antecipação a Invicta, mas sem o mal afamado bairro. Tito era o filho mais velho de Vespasiano e foi imperador entre 79 e 81. A mãe de Tito chamava-se Domitila, a Maior, para se diferenciar da filha Domitila, a Menor, irmã de Tito.
Tito dedicou-se com sucesso à construção civil em Roma, à guerrilha e à fundação e presidência da antiga Jugoslávia, enfim voltando-se para o futebol no Atlético, onde começou a dar os primeiros toques, em 1962. Esqueceu as obras e fez bem, aquilo está tudo em ruínas, disse adeus às armas e abandonou a política. Deixou a Tapadinha e apostou a sério na bola: mudou-se para o União de Tomar e depois, por quinhentos contos, dinheiro a sério, para o Vitória da Guimarães. É daí que o conheço.
Na década de setenta do século passado, Tito fez sete épocas na Cidade-Berço e marcou 82 golos. Frequentava Fafe regularmente. Era, e não sei se ainda é, o melhor marcador de sempre do Vitória na primeira divisão. Fisicamente falando, Tito pode ser visto como um monovolumezinho, baixote, entroncado da cabeça aos pés, uma espécie de Müller que os antigos percebem, uma espécie de Miccoli que os menos antigos sabem, e aos mais novos não sei o que lhes diga, a não ser que olhem para o Bruno César que andou pelo Benfica, Estoril e, aqui atrasado, pelo Penafiel. Mas em bom.
Tito, na área, era imperial. Fino. Franco-atirador. Até de cabeça. E de fora da área também. Mas não de cabeça. Como muitos craques de hoje em dia, Tito gostava de treinar livres e remates espontâneos atirados propositada e directamente à barra. E tinha uma elevada taxa de acerto. O extraordinário é que, mais difícil ainda, gostava de fazer o número também de costas para a baliza ou de olhos fechados. E acertava regularmente. Palavra de honra, acertava! Estou aqui, que não me deixo mentir

Em Fafe, nos anos cinquenta, sessenta e pelo menos setenta do século passado, havia uma magnífica equipa de futebol popular, sazonal, que tinha o bonito nome de Embaixadores da Bola. Os rapazes representavam, se não me engano, a clientela do velho Café Peludo, que aliás raramente frequentavam, e mantinham uma terrível rivalidade com o poderosíssimo Maiense, da antiga Rua do Maia, grupo que, se fosse hoje, chamar-se-ia, por certo, Antoniossergense.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. No dia 14 de Setembro do ano 81, Domiciano tornou-se imperador do Império Romano após a morte do seu irmão Tito.

sábado, 24 de maio de 2025

Éramos pelos touros

Referendo tauromáquico
Fez-se um referendo sobre as touradas - sim ou não? Os touros votaram não.

Sim, creio que se poderá afirmar, sem demasiado escândalo, que havia uma certa afición em Fafe. Uma espécie de penha taurina intermitente e inorgânica, espontânea, funcionava, digamos assim, no Peludo, café do povo, sempre que houvesse corrida na televisão, o que acontecia muito raramente e ainda a preto e branco. Gostávamos, portanto, de touradas. Éramos conhecedores, exigentes, e só nos interessavam as pegas.
As touradas eram entretém de Verão, geralmente à noite, e as nossas noites de Verão decorriam naquele bocadinho de passeio que servia de esplanada ao Peludo, na rua do Cinema e quase em frente, dois bancos corridos, de jardim, encostados à parede, e três ou quatro mesas com cadeiras a atravancarem a passagem. Estava-se bem! A tourada era lá dentro, no televisor pendurado num dos cantos da pequena sala, logo após a porta. O espectáculo começava, cortesias, cavaleiros, toureiros, matadores, bandarilheiros ou simples peões de brega, e o pessoal cá fora como se nada fosse, aquilo não interessava para nada. Porém. Tocava o cornetim a anunciar a pega, e entrávamos todos a correr para ganhar lugar e pedir mais um fino. As pegas é que nos diziam respeito. E éramos, obviamente, pelo touro. Para o nosso grupo de aficionados, uma boa pega, uma pega realmente de encher o olho, era quando o animal, sozinho, conseguia dizimar a formação de forcados inteira, um a um ou todos aos mesmo tempo, o valentão da cara, os ajudas e até o rabejador, tudo levado à frente, tudo pelos ares e, se possível, que não era, a coisa repetida depois duas ou três vezes, em câmara lenta.
Rematada a função, amiúde de cernelha, que tristeza, após três, quatro ou cinco tentativas de pega natural falhadas, tornávamos ao exterior, talvez para mais uma sessão de anedotas com o Tónio Augusto Ferreira ou para ouvirmos as mirabolâncias do Zé Manel Carriço, que aparecia de repente, parecia impossível, só tinha de atravessar a rua. E ali ficávamos no comentário e na galhofa, até à próxima gaitada.

Que Fafe também teve a sua tourada, isso já é outra história. Foi no Campo da Granja, em 1963, provavelmente por ocasião das Festas da Senhora de Antime, que é o mais certo, mas também poderá ter sido por alturas das Feiras Francas, lembro-me é que era um belo dia de sol e, agora que penso nisso com mais vagar, não faço a mínima ideia de como é possível lembrar-me. Uma tourada que terá sido a primeira organizada em terras de Fafe e que, se não me engano, foi igualmente a única, e portanto última, até hoje.O redondel não era assim tão redondo como o nome poderia indicar à partida: digamos que foi construída, com robustos troncos de madeira, uma espécie de lua cheia fanada, cortada em linha recta na zona da bancada, que era para o excelentíssimo público poder estar em cima do acontecimento. As digníssimas autoridades locais e a nossa mais distinta burguesia, orgulhosamente alapadas na bancada de cimento com tecto de chapas de zinco, quero crer que com umas discretas almofadinhas aliviando os respectivos traseiros, e o povo a pé, no meio do campo da bola, encostado às tábuas, mas seria muito pouco, meio dúzia de gatos-pingados, se tanto, e eventualmente já razoavelmente decilitrados, porque os bilhetes, mesmo os bilhetes mais baratos, eram bastante caros. Foram certamente ao engano e, diga-se em sua defesa, o calor era realmente muito e a situação deveras incómoda e eventualmente perigosa. Se naquele tempo já havia praças de toiros desmontáveis e alugáveis, não foi daquela vez que uma delas chegou a Fafe.
A tourada, segundo me lembro, e confesso que continuo sem perceber como é que me lembro, foi uma merda. Os do Peludo, especialistas encartados, nem lá pusemos os pés. Oficialmente. Quer-se dizer: mandaram-me a mim, que era puto, dar uma espreitadela, dei, e por isso é que sei do que estou a falar. Acho eu.

No tempo das feiras de gado, havia uma, valente, na Lameira, acontecimento constado ali à volta. Realizava-se todos os anos "pelos 21", isto é, no dia 21 de Agosto, ponto alto das Festas em Honra de Nossa Senhora da Saúde. Ora bem. Uma ocasião, uma vaca espantou-se não sei com quê, soltou-se do sítio onde estava a guardar e correu o arraial inteiro de uma ponta a outra a espalhar o pânico e o caos em direcção à Pica, escornando e escoiceando a torto e a direito, desfazendo tendas, barracas e ornamentações, tudo em pantanas, invadindo tascos e casas sérias, saltando para cima de carros e outros veículos mais ou menos motorizados e levando a eito aquele povo todo, aflito e tolo que não sabia aonde se havia de meter, anjinhos e mordomos incluídos. Eu, muito bem entrincheirado e de barriga cheia após merenda na Albertininha, ri-me como um perdido. Quer-se dizer: a coisa não constava do programa, mas também foi uma bonita tourada.

(Publicado originalmente no meu blogue Mistérios de Fafe)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Os animais da minha infância

Tive uma infância feliz, em Fafe, rodeado de animais de estimação, ditos agora de companhia. Tínhamos um cão chamado Rin Tin Tin, tínhamos uma cadela chamada Lassie, tínhamos um canguru chamado Skippy e até tínhamos um cavalo chamado Mister Ed ao qual nem faltava falar. Eu ia vê-los ao café, porque em casa não tínhamos televisão.

P.S. - Hoje é Dia do Animal de Estimação. E Dia Mundial da Justiça Social.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

A passagem de ano em Fafe

A passagem de ano em Fafe era bem porreira no meu tempo. As motas andavam sem escape à meia-noite no Largo, bebia-se Magos no Peludo e vomitava-se abundantemente. Uma coisa verdadeiramente constada, uma festa inegavelmente de arromba! Vinha povo de fora, até de Guimarães como se fossem espanhóis, a Arcada enchia-se como um ovo, por baixo e por cima, por dentro e por fora. Era o delírio! Tremens. As motas eram sobretudo Zundapp e Sachs, faziam um basqueiro desgraçado e os tombos sem capacete eram saudados como se fossem golo do Benfica! Às vezes a festa metia também ambulância, num extraordinário espectáculo de som, luz e cor. O Magos era uma merda, mas naquela altura eu não sabia. Fazia também muito frio na rua, que era onde o ano passava, um frio que não se podia andar com ela de fora, e já era a sorte grande chegar a casa com o nariz e as orelhas inteiras, isto para não falar de outros acessórios ordinariamente mais recatados. Na manhã do dia seguinte, que só começava, a bem dizer, à noite, o ano novo metia baixa.
Portanto, ia-se ao Largo ver o fim do ano. O ano passava em Fafe apenas uma vez por ano, como no resto do mundo, embora no resto do mundo o ano não passe sempre à mesma hora, mas, não sei porquê, em Fafe parecia que o ano passava todos os dias, isto é, todas as noites. Os de agora podem não acreditar, mas era assim a vida na nossa terra, e, garanto-lhes, era de categoria.

A passagem de ano em Fafe agora chama-se Réveillon e é um certame, porque em Fafe agora tudo é certame, até a Senhora de Antime, e se não é certame, pelo menos é evento e de certeza é icónica, a passagem de ano, porque em Fafe agora tudo é icónico. De acordo com os anúncios, o Réveillon sucede no quentinho do Multiusos e apresenta Quim Barreiros, área gold, área premium, área vip e área white, que deve ser o antigo peão, todos os utentes com pulseiras como nas urgências dos hospitais. Motas a desbundar e ambulâncias em tinoni é que nada, em princípio, e Magos de certeza que também não. Quer-se dizer, está certo, há-de ser uma festa ajeitada lá à maneira da rapaziada moderna, com muito gelo mas sem geada, mete o carro, tira o carro, o que se pôde arranjar, mas, por favor, não tem comparação com a nossa...

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Atenção à nabiça e ao tomate

Dezembro a bater à porta e o Borda D'Água manda resguardar as plantas do gelo. Arrotear terras e mato para as sementeiras da Primavera. No crescente, continuar as covas e a estrumagem. As sementeiras de trigo e centeio continuam se não houver geadas, bem como a de cebola, couves, beterraba, nabiça, pimentos, tomate e salsa. Em sítios abrigados pode-se ainda semear agrião, espinafre, alfaces, fava e ervilha. Plantar ainda macieiras e pereiras. Cortar madeiras, no minguante. Continuar a poda das vinhas e mergulhia das vides. Fim da apanha da azeitona e limpeza dos lagares. No jardim, prossegue a plantação de roseiras, gladíolos, cíclames e lírios, a proteger das geadas. Semear ervilhas-de-cheiro, goivos e jacintos. Quanto aos animais, abrigue o gado do frio e chuva, e acarinhe-o.
Quer-se dizer: em Dezembro descansa mas não durmas, como recomenda, por seu lado, O Seringador.
E pronto. É este tempo, senhores. O tempo. Ou, como dizia o outro na rádio a preto-e-branco: na aldeia do Senhor Costa, assim vai a agricultura. E quem diz Costa, diz Montenegro.

Isto a propósito do engenheiro Sousa Veloso. José de Sousa Veloso, engenheiro agrónomo e mítico apresentador do programa TV Rural da RTP. Durante três décadas, o Senhor Engenheiro deu as notícias e a táctica aos lavradores e outros telespectadores portugueses. Morreu no dia 27 de Novembro de 2014, com 88 anos. Conheci muito bem o engenheiro Sousa Veloso. Ambos frequentávamos o velho café Peludo. Ele no televisor pendurado logo à entrada, do lado esquerdo, por cima dos bolos-reis previamente encomendados e comprados fora para o Natal, e eu sentado no canto contrário, atento à TV e aos bolos, ouvindo uma e desejando os outros, nem que fosse só um bocadinho. No final, o Senhor Engenheiro dizia, num largo sorriso, já em cima da música: "Despeço-me com amizade, até ao próximo programa". Era para mim.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Serafim d'Eiteiro, filósofo da hora de almoço

Serafim d'Eiteiro tinha uma sombria loja de fazendas em Cima da Arcada, por baixo do Club, e era homem de voz grave e piada fina, um figurão. O apelido "d'Eiteiro" suponho que fosse natural corruptela de "do Outeiro". Lugar do Outeiro, Antime, donde creio que era este ilustríssimo fafense, ou seriam pelo menos os seus ancestrais. Serafim do Outeiro igual a Serafim d'Eiteiro, assim terá decidido o povo, na sua provecta e indesmentível sabedoria - mas estou a deitar-me a adivinhar.
Alto, magricela, de fato todos os dias, Serafim d'Eiteiro frequentava a sala das traseiras do Peludo, onde, após almoço, se jogavam umas bilharadas iglantónicas. Aquilo era coisa constada, só para artistas diplomados e (aqui que ninguém nos ouve) até metia apostas a dinheiro, reunindo sempre uma pequena multidão de espectadores dados ao palpite e a gozar o parceiro. Um mundo! Em Fafe era assim.
E uma vez foi demais. Eu era puto e estava lá. Um dos jogadores, desgraçadamente em dia não e alvo único e reiterado da chacota geral, perdeu de repente as estribeiras e, varando com os olhos a plateia ali à roda, atirou, cheio de raiva e perdigotos: - Ide todos para o caralho! Todos...
Mas nisto encarou o respeitável comerciante, pessoa de outra idade e estatuto, teve um rebate de consciência e resolveu abrir uma honrosa excepção: - Todos, não. Faz favor de desculpar, senhor Serafim, não é para si -, corrigiu o bilharista azarado e despeitado porém atencioso, botando giz no taco.
Sentado logo à entrada depois do degrau, lado esquerdo, no canto por baixo do velho rádio Philips dos relatos domingueiros, Serafim d'Eiteiro disfarçou um sorriso maroto atrás do fumo do ininterrupto cigarro sem filtro e respondeu naquela maneira vagarenta de falar que dava ares de sabedoria: - Muito obrigado pela deferência, mas aqui sozinho é que eu não fico. Se o amigo não leva a mal, eu também vou...
E era assim a vida.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Filosofia.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

As paredes tinham ouvidos. E os soalhos também.

No tempo em que as pessoas falavam, as paredes tinham ouvidos. E os soalhos também. Mas as pessoas falavam, mulheres e homens, porque era preciso, falar era respirar, era prova de vida, e não vai assim há tanto tempo. Os cafés, as mesas de restaurante costumavam ser sítios de conversa, de tertúlia, de crítica, de protesto, de esgrima de argumentos. De vida. Ainda os nunos rogeiros e os marcelos rebelos de sousas não tinham sido inventados pela televisão e já nós sabíamos tudo de tudo, primeiro no Peludo e depois no Peixoto, evidentemente em Fafe, que era o centro do mundo. Guerra, França, futebol, política, Mário Soares e Álvaro Cunhal, pesca e caça, religião, padres fodilhões, música, alterações climáticas, vinho, teoria da relatividade, teorias da conspiração, medicamentos, bolo com sardinhas, gajas e automóveis, festival da canção, rácios bolsistas e sobretudo motorizadas, Zundapp vs. Sachs, sabíamos na ponta da língua e cada qual dava a opinião que se impunha, a opinião definitiva. Fumava-se provisórios...
Tínhamos pontos de vista, prismas, ópticas, enfoques, perspectivas e até ângulos. Amontoávamo-nos em duas ou três mesas, perdíamo-nos noite dentro naquela conversa transversal, ecuménica, polifónica, finamente regada, em que toda a gente metia o bedelho, até os filhos da puta dos bufos da Pide, que aproveitavam para incendiar o assunto a ver o que aquilo dava. De uma forma geral, os bufos da Pide não eram nada bufos da Pide: autoproclamavam-se, gabavam-se, ameaçavam, faziam-se passar por bufos da Pide, salazares dos pequeninos, só para meterem medo, que era a coisa mais parecida com sexo que conheciam, ou para pavonearem um poder que nunca tiveram, nem em casa, onde levavam nos cornos e bico caldo. Eram filhos da puta, isso é certo, e em Fafe havia diversos.
O 25 de Abril de 1974 veio realmente liberalizar o paleio à roda do cimbalino, mas nós nem precisávamos. Já há muito que falávamos pelos cotovelos e comíamos tremoços. Ou cascas, cascas de tremoços, à falta de conteúdo e de dinheiro no bolso. Mas não interessava - a conversa, para nós, era tudo.
Portanto agora dá-me pena: de conversa, que é livre e de graça, estamos conversados - acabou-se, até no café, parece-me impossível. Eu, que actualmente não frequento, passo pelas montras e vejo: uma pessoa em cada mesa, cabeça enfiada no computador portátil, telemóvel colado ao ouvido, dedo saltitante a gatafunhar mensagens analfabetas e com carinhas redondas e amarelas e corações e dedos assim ou assado, ninguém conhece ninguém, ninguém fala com ninguém, parece que estão todos proibidos uns dos outros. Que desperdício de liberdade!...
Nos restaurantes, o mesmo desconsolo. A família senta-se à mesa e ninguém pia. Vai-se ao bolso, rapa-se do telemóvel (permitam-me que continue com a generalização, para mim aqueles aparelhos que não distingo são todos telemóveis) e ignora-se com assinalável obstinação o irmão do lado direito, o padrinho do lado esquerdo, o pai e a mãe em frente, a avó na cabeceira para pagar a conta, ainda por cima. E não são só os miúdos. Também os graúdos, nomeadamente graúdas, cinquentonas, casadas assim assim ou tias praticamente por estrear, esfregando, esfregando o ecrã da lamparina mágica, vai ser desta que vão ser felizes.
É. As pessoas julgam que falam umas com as outras, mas não falam. Aquela ideia romântica de conversa morreu e foi enterrada. As pessoas hoje em dia são perfis, esgotam-se na "conversa" com os "amigos" do Facebook que não conhecem de lado nenhum, talvez valha uma pinadela. As pessoas esbanjam todas as suas doutas opiniões, todos os seus espertíssimos achismos, na Antena Aberta da rádio Antena 1 e no Fórum Sport TV. (Desculpem-me o parêntese: para mim nem é dia nem é nada se não ouço o que têm a dizer o senhor José Fonseca, 45 anos, informático, da Amadora, sobre a problemática do Cristiano Ronaldo e da Selecção Nacional, ou o senhor Afonso Palheta, 53 anos, aposentado, do Marco de Canaveses, a propósito da política de reflorestação do País.). Depois, as pessoas chegam ao café, chegam à mesa do restaurante, ou chegam a casa, sítios da conversa antiga, cara a cara com outras pessoas de carne e osso, e ficam caladas e sós. Sós umas das outras. São criaturas sem assunto, estão vazias: já disseram tudo e não era nada.

Mas tornando à mesa do café. As cascas de tremoços eram roubadas da mesa do lado e são, é preciso que se note, o melhor que há logo a seguir aos tremoços propriamente ditos, sobretudo em caso (e era o caso) de cotão nos bolsos. Melhor, só mesmo lamber e raspar com os dentes o papel do pão-de-ló, que era a segunda coisa melhor logo a seguir ao pão-de-ló propriamente dito, que eu via ao longe uma ou duas vezes ao ano.

P.S. - A Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) foi criada no dia 22 de Outubro de 1945, alargando a acção repressiva da então extinta Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE).

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

O que acontece em Fafe, fica em Fafe

As máquinas de flippers chegaram a Fafe creio que pelos finais da década de 70 do século passado e assentaram arraiais na exígua sala de bilhares do velho café Peludo, onde Serafim d'Eiteiro debitada pérolas filosóficas para jogadores momentaneamente ensandecidos. Fafe daquele tempo, sobretudo Fafe fora de horas, era uma terra de jogo, havia muito vício, muita batota. O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo exactamente. Jogavam maus meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. (Para entrar era preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava.) Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao sapo, ao pau e à bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e feio. Ateimava-se. A ateima também era um jogo. Jogava-se a tudo. E até se jogava ao pilas, como já por aí contei.
Queiramos ou não: Fafe era Fafe, um farol civilizacional, inapagável Las Vegas do vale do Ave hoje em dia com barragem e tudo, oásis de sorte e azar encravado entre a Póvoa de Lanhoso e Felgueiras, a zona de Basto, Vieira do Minho e Guimarães, consoante o lado por onde se lhe quiser entrar.
Os flippers chegaram a Fafe e foi uma febre medonha. Uma epidemia, descontrolada mas circunscrita. Eram sempre os mesmos, os do póquer, que eram os do bilhar, que eram os do dominó, que eram os das copas, agora apanhados pelo pinball, e apostava-se ali à rica e sempre com o dinheiro na mão. Os recordes, sucessivamente batidos, valiam belas maquias. Eram autênticos agarrados, constavam-se lares praticamente desfeitos. Era preciso marcar vez, havia quem pagasse por uma vaga, havia quem se esquecesse de ir trabalhar à tarde, só para não largar a máquina, deixando-a à mercê da concorrência. Não havia vida para além dos flippers, morava-se ali, ao som daquelas campainhas mágicas, sem mulheres, sem filhos, e ao fim da noite talvez também sem um tostão no bolso. Depois as máquinas foram embora, foi a sorte, ou então milagre, e os jogadores tornaram a casa, às mulheres e aos filhos, à vida real. Até que chegaram as consolas, os computadores e os telemóveis espertos...

P.S. - Publicado ontem no meu blogue Tarrenego!, a propósito do Dia Internacional do Gamer.

sábado, 20 de julho de 2024

A Lua era em câmara lenta

Não sei se se lembram: Eurico da Fonseca (1921-2000) foi o principal especialista português em astronáutica, e creio que ainda é, embora já não exerça por razão de força maior. Praticamente autodidacta, nomeado investigador por decreto-lei e oficialmente equiparado a professor catedrático, colaborou com a NASA e conheceu os principais responsáveis pelo Programa Apollo. Notabilizou-se entre nós como divulgador de assuntos científicos. Na rádio, acompanhou em directo, na então Emissora Nacional, a chegada do homem à Lua, faz hoje exactamente 55 anos, e comentou os voos espaciais norte-americanos e soviéticos. Mas era na RTP que eu gostava de o ouver. Ouver, escrevi bem. A Lua também deu na televisão e, eu bem vi, era em câmara lenta.
Pois foi com Eurico da Fonseca na televisão - na televisão evidentemente a preto e branco do café Peludo - que eu aprendi que, quando se fala de um lançador espacial, deve dizer-se foguete e não foguetão. Foguete. Tal como na meia de vidro com fio puxado. Foguete. Tal como o velho comboio Porto-Lisboa que era praticamente um luxo e chegava aos cem à hora. Foguete. Tal como no Santo António da minha rua em Fafe, com girândolas, diabos-encaixados, bombinhas, estalinhos e bichas-de-rabear, ou rabichas, como por lá se chamavam. Foguete. E outro especialista em foguetes e apetrechos correlativos era o nosso Rates, raríssimo cromo de almanaque. Foguete. Eurico da Fonseca explicava, apenas insinuando, que foguetão é outra coisa: por exemplo, coisa gasosa, eventualmente sonora e, por norma, fedorenta. Quer-se dizer: um peido, uma bufa, um traque, um flato, uma farpa, um pum, com vossa repetida licença, e isso já seria matéria da alçada do nosso Moisés...

P.S. - Hoje é Dia Internacional da Lua.

segunda-feira, 1 de julho de 2024

O inexplicável Zé Manel Carriço

O Zé Manel Carriço era um exagerado e provavelmente a pessoa mais extraordinária que conheci em toda a minha vida. O Zé Manel não comprava maços de tabaco, comprava volumes de tabaco, caixotes, camiões inteiros de tabaco, navios da proa à popa! Tradicionalista, conservador, teimoso, megalómano, excêntrico, reaccionariozinho apesar de inventor patenteado, mas também inteligente, polímata, empreendedor, visionário, elegante, disponível, inexplicável enfim, o Zé Manel até comprou um jornal falido que depois publicava uma vez por ano para manter o título, até comprou um cinema por pura vaidade, vejam lá! O Zé Manel comprava tudo, e a dinheiro, não acreditava no valor do plástico e desconfiava da honestidade dos cheques. Por isso ele andava sempre com a carteira grotescamente amarrecada por um enorme molho de notas de conto como se todos os dias tivesse de ir à feira do gado mercar uma junta de bois. Ou duas. Ou três. Ou mais. As notas chegavam e sobravam para começar de raiz uma manada completa. O Zé Manel fazia questão que fosse pública e notória a sua fartura. Ah!, e o Zé Manel Carriço era um homem amiúde generoso, mesmo muito generoso, mas essa parte ele preferia que não se soubesse.
Às vezes o José Manuel, que de baptismo era Rodrigues, levava-me a umas noitadas privadas e filosóficas (ele, o Pimenta e eu) no Peludo antigo, mesmo em frente ao seu atafulhado atelier, o que nos era de uma extrema comodidade. As noitadas entravam pela madrugada dentro, porque o Zé Manel tinha muito que contar e nós gostávamos muito de ouvir. As histórias do Zé Manel eram como as rodadas de cerveja, umas atrás das outras. O Sr. Avelino fechava para nós. Comia-se um marisquito, que àquelas altas horas estava já nas últimas, e sobretudo bebiam-se finos, com tremoços, para fazer boca. Mais do que uma vez esgotámos o stock de copos, enchendo de vasilhame babujado sete ou oito mesas à nossa volta, o café inteiro, porque o Sr. Avelino gostava muito de fazer a conta no fim. Partiam-se alguns copos, o Sr. Avelino afinava, tomava nota para acrescentar ao rol. Mas o pior era o desbaste dado nos tremoços, que pedíamos repetidamente por uma questão de princípio.
Uma noite o Sr. Avelino não aguentou e queixou-se: - Sr. Zé Manel, assim não pode ser, já comeram mais de dez pires de tremoços. É um prejuízo muito grande. Os tremoços custam-me dinheiro, valha-me Deus!...
O Zé Manel foi ao bolso do casaco, sacou da carteira marreca, tirou uma mão-cheia de notas e disse séria, calma e secamente: - Ó Avelino, traz-me cinco contos de tremoços! - e pousou o dinheiro como mão de póquer em cima da única mesa de vago, sem copos, que por acaso era a nossa...

P.S. - Publicado originalmente aqui no dia 4 de Agosto de 2023.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

O Homem-Prazol

Os super-heróis. Fui um apreciador, confesso. Desde os meus tempos de miúdo, em Fafe, à pala da televisão a preto e branco do Peludo, das borlas no Cinema ou dos livrinhos de cobóis levados à troca no postigo por baixo da Arcada, onde agora funciona o Turismo. Apreciava o homem-aranha, o homem-formiga, o homem elefante, o homem-rã, o homem de gelo, o homem de ferro, o homem de lata, o homem-bala, o homem-estátua, o homem invisível, o homem que veio de longe, o homem-sanduíche, o homem-crocodilo, o homem-tocha, o homem-máquina e até o homem-bata, que quase existia. Apreciava, sim senhor. Mas. Derivado a pecados velhos e por indicação médica, hoje em dia sou mais dado ao homem-prazol.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Doente. As melhoras!...

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

O sapo como animal doméstico

Tínhamos também um sapo. Isto é, uma vez à noite tivemos um sapo, mesmo nosso, nem foi preciso ir ao café ver televisão, se o Sr. Avelino por acaso a ligasse, mas não lhe pusemos nome. Eu conto a história do sapo.
A porta da nossa casa no Santo Velho tinha, em baixo, junto ao chão, um bocadinho de folheta levantada, e era ali que se deixava a chave, de uns para outros, éramos pelo menos seis, como, por exemplo, à noite, quando a nossa mãe já nos dava licença de saída até às 22 horas, ao Nelo e a mim, e depois no regresso a gente metia a mão no buraco, tirava a chave, que era digna de São Pedro, há que dizê-lo, abria a porta em câmara lenta, a monumental chave de bico calado, bem oleada, e entrávamos em casa com os pés debaixo dos braços para não fazermos barulho, a nossa mãe fazia de conta que estava a dormir e portanto só de manhã é que nos acertava o passo por termos chegado às 22h01.
Acontece que. Uma noite, findo o serão, estamos à porta, e o Nelo, que é mais velho, manda-me apanhar a chave. Eu meto a mão no vazio da folheta e, em vez da chave, agarro um enorme sapo que lá se tinha metido, filho da puta, e apanhei um susto que me ia mijando todo, estremeci-me até hoje, argh!, enchi-me de nojo, arranquei a mão como se a tirasse do fogo e rasguei-me na chapa ferrugenta, gani, vomitei, cocei-me antecipando verrugas para toda a vida, palavra de honra, e o caralho do sapo, como se não fosse nada com ele, saiu nas calmas felizmente para o lado da rua, caso contrário eu nunca mais entraria em casa. Entrámos, a nossa mãe a pé, à nossa espera, e a hora de picar o ponto já não interessava para nada. Levámos logo ali, por causa do sapo, da ferida, do vomitado, do barulho, quer-se dizer, do "espectáculo", que a nossa mãe não tolerava, fosse em que circunstância fosse. Tudo por minha culpa. Ainda por cima eu tinha dito "argh!" e em nossa casa, que era muito pobre, estavam terminantemente proibidas as onomatopeias, sobremaneira as derivadas dos livros aos quadradinhos...

Os sapos à porta realmente incomodam-me. E metem-me nojo sobretudo os sapos à porta dos restaurantes ou de outros estabelecimentos comerciais. É. Como sou um bocado cigano, recuso-me também a entrar.

Os sapos às vezes são de engolir, como aconteceu com Álvaro Cunhal e o PCP na segunda volta das eleições presidenciais de 1986, para derrotar Freitas do Amaral, candidato da direita, e, só por isso, eleger Mário Soares. "Vamos ter de engolir um sapo. Se for preciso, tapem a cara [de Soares] com uma mão e votem com a outra", recomendou Cunhal aos comunistas. Para se distinguirem dos faquires, que engolem facas, os engolidores de sapos chamam-se sapires.

No velho tasco do Toninho Nacor havia um sapo que era um jogo, na zona cimentada do quintal logo depois da cozinha, por baixo do sombroso caramanchão, ao lado das famosas gaiolas dos pássaros e do forno de cozer vitela e bolo. O sapo era um jogo tradicional e de taberna, um jogo de mesa em forma de armário aberto com inúmeras ranhuras correspondentes a outras tantas gavetas. Jogava-se com pequenas patelas, que se lançavam para o "armário" e cada entrada correspondia a uma certa pontuação. A boca do sapo era o máximo, se não me engano. Servia para matar o tempo enquanto se esperava pela hora da merenda e dali poderia sair também "multa" aos perdedores para próximas quartilhadas.

Sobre este interessante assunto, os sapos, apraz-me finalmente registar que o Sapo, primeiro motor de busca português, foi criado por cinco estudantes da Universidade de Aveiro em 1995. Antes disso, mas em Penafiel, já era um famoso restaurante de enfarta-brutos e conceituado estabelecimento de compra e venda de árbitros de futebol.

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

O fabuloso Zé Manel Carriço

O Zé Manel Carriço era um exagerado e provavelmente a pessoa mais extraordinária que conheci em toda a minha vida. O Zé Manel não comprava maços de tabaco, comprava volumes de tabaco, caixotes, camiões inteiros de tabaco, navios da proa à popa! Tradicionalista, conservador, teimoso, megalómano, reaccionariozinho, apesar de inventor patenteado, mas também inteligente, polímata, empreendedor, visionário, elegante, disponível, o Zé Manel até comprou um jornal falido que depois publicava uma vez por ano para manter o título, até comprou um cinema por pura vaidade, vejam lá! O Zé Manel comprava tudo, e a dinheiro, não acreditava no valor do plástico e desconfiava da honestidade dos cheques. Por isso ele andava sempre com a carteira grotescamente amarrecada por um enorme molho de notas de conto como se todos os dias tivesse de ir à feira do gado mercar uma junta de bois. Ou duas. Ou três. Ou mais. As notas chegavam e sobravam para começar de raiz uma manada completa. O Zé Manel fazia questão que fosse pública e notória a sua fartura. Ah!, e o Zé Manel Carriço era um homem amiúde generoso, mesmo muito generoso, mas essa parte ele preferia que não se soubesse.
Às vezes o José Manuel, que de baptismo era Rodrigues, levava-me a umas noitadas privadas e filosóficas (ele, o Pimenta e eu) no Peludo antigo, mesmo em frente ao seu excêntrico atelier, o que nos era de uma extrema comodidade. As noitadas entravam pela madrugada dentro, porque o Zé Manel tinha muito que contar e nós gostávamos muito de ouvir. As histórias do Zé Manel eram como as rodadas de cerveja, umas atrás das outras. O Sr. Avelino fechava para nós. Comia-se um marisquito, que àquelas altas horas estava já nas últimas, e sobretudo bebiam-se finos, com tremoços, para fazer boca. Mais do que uma vez esgotámos o stock de copos, enchendo de vasilhame babujado sete ou oito mesas à nossa volta, o café inteiro, porque o Sr. Avelino gostava muito de fazer a conta no fim. Partiam-se alguns copos, o Sr. Avelino afinava, tomava nota para acrescentar ao rol. Mas o pior era o desbaste dado nos tremoços, que pedíamos repetidamente por uma questão de princípio.
Uma noite o Sr. Avelino não aguentou e queixou-se: - Sr. Zé Manel, assim não pode ser, já comeram mais de dez pires de tremoços. É um prejuízo muito grande. Os tremoços custam-me dinheiro, valha-me Deus!...
O Zé Manel foi ao bolso do casaco, sacou da carteira marreca, tirou uma mão-cheia de notas e disse séria, calma e secamente: - Ó Avelino, traz-me cinco contos de tremoços! - e pousou o dinheiro como mão de póquer em cima da única mesa de vago, que por acaso era a nossa...

Ora bem. Hoje é Dia Internacional da Cerveja. O Dia Internacional da Cerveja é um Dia De tão palerma e desnecessário como a maioria dos outros Dias De e foi inventado por uns maduros americanos de Santa Cruz, na Califórnia, em 2007. A efeméride é assinalada em meia centena de países de todo o mundo, incluindo Portugal. O principal objectivo deste peculiar Dia De é, consta dos estatutos, estar com amigos para saborear a cerveja. Quer-se dizer, Dia Internacional da Cerveja é quando um homem quiser e os amigos tiverem vagar. Ou por outra, o Dia Internacional da Cerveja eram aquelas noites com o Zé Manel e com o Pimenta, mas ainda não tinha sido inventado e eu ainda não sabia.

segunda-feira, 13 de março de 2023

Excelentíssimo Menino

Foto Tarrenego!
Avisaram-me ontem ao princípio da tarde, mas eu preferi esperar pelo desmentido. O meu irmão Nelo sabia que me interessava muito, mandou-me uma mensagem para o telemóvel, dizia simplesmente "morreu o nosso Menino", mas a morte do Landinho só podia ser engano. Uma coisa assim um bocado tola, pensei. Primeiro, porque o Landinho faz falta. Quer-se dizer. Como é que vai ser Fafe agora? Quem vai cobrar as cotas? Quem vai passar as multas? Quem vai aos cafés avisar dos funerais? E o Landinho foi avisar da sua morte? Desconfio que vem aí o caos. Segundo, porque a morte do Landinho não interessa a ninguém. Que vantagens? Para quem? Só se for para Deus, que dizem que leva primeiro os que ama, os que mais ama, e eu começo a ficar farto do egoísmo de Deus.
Portanto esperei pelo desmentido.
O Landinho é um dos meus mais excelentíssimos fafenses. Como eu aqui recordava há menos de quatro meses, "o Landinho, o nosso Menino, [estava] sempre presente, particularmente nos momentos solenes e também nos outros, verificando factos e tomando conta da ordem pública. Fafe sem Landinho seria impossível". E é. O Menino fazia parte da paisagem fafense, mas era mais do que paisagem. O Landinho era - penso agora - a mais benévola metáfora do que somos todos nós os que somos de Fafe, os que sentimos Fafe. E Fafe nem sempre o tratou bem, mas ele, o Menino, nunca nos faltou.
Sei muito do Landinho, muito mais do que aqui vou contar. Sei da sua infância, sei da senhora sua mãe, sei da sua juventude, lembro-me de ele ter ido às inspecções, que pelo menos naquela leva foram realizadas no velho quartel dos Bombeiros. Exactamente, o Menino foi às sortes e tenho ideia de que não se livrou à primeira, alguém por ele teve de posteriormente fazer prova das suas singularidades. Safou-se por pouco de ir à guerra, e às tantas ainda tínhamos ali herói. Era. O regime precisava de carne para canhão.
O Landinho gostava de fatos e de "manganésia". Eu sempre achei que o Landinho mandava fazer os seus fatos por medida, personalizados, porque os fatos que vestia assentavam-lhe todos muito mal, mas muito mal sempre da mesma maneira, e por isso ficavam-lhe muito bem, porque o Landinho era assim, aquela era a sua imagem de marca. Irredutível militante das calças à boca de sino pelo tornozelo e da gravata tipo bacalhau de quarto com nó grosso, eu via-o como um verdadeiro gentleman sobretudo aos domingos, feriados e dias santos, e sempre me incomodou que a La Redoute nunca tivesse convidado o nosso Menino para modelo de pelo menos um dos seus pantagruélicos catálogos.
Menino quer dizer muito em Fafe. Quando entrava no antigo Peludo, já no tempo do Peixoto, o Landinho pedia geralmente um pratinho de "manganésia", que era a sua perdição gastronómica. Ou então era só fome e ele saberia que não lhe davam outra coisa. Andava com sorte se lá estivesse o grande Valença, o gozão-mor do reino, inveterado pregador de partidas, mas também portador de um coração de razoáveis dimensões. E então o Valença dizia-lhe: - Pago-te o pratinho mas primeiro tens de dar um beijo aqui ao Bomba! - e o Bomba era eu, e o Landinho chegava-se e abraçava-me e lambia-me a cara com um sonoro e indesmentível beijo. Isto mais do que uma vez, pelo menos três ou quatro. E o nosso Menino ganhava o seu pratinho de maionese, que era o que se chamava àquela travessa de salada-russa, às vezes com um filete de pescada ou um panado em fim de prazo, mais um copinho de vinho, e só um, que já não faltava quem abusasse dele. Do Menino...

Mas o desmentido não veio. O desmentido não vem. O Landinho morreu e é mais que tempo de eu dizer alguma coisa. Disse.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

O casal Carter e o Casal Garcia

O simpático casal Carter, Jimmy e Rosalynn, vai a caminho de comemorar 77 anos de casamento, tantos quantos brevemente contarão de vida o pândego Donald Trump e George W. Bush, o inventor das armas químicas do Iraque. E é notícia. Jimmy Carter e Rosalynn Smith Carter têm o matrimónio mais duradouro de toda a história presidencial dos Estados Unidos. E os americanos estão todos contentes, porque acham sempre que são os maiores. Os americanos nunca foram a Fafe, ao Peludo, no tempo do Sr. Avelino "Hoss". Eles não sabem que, em Portugal, o Casal Garcia, since 1939, é só fazer as contas, já está nos 84 anos...

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Casamento.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Pipi das calças rotas

Foto Hernâni Von Doellinger
A escritora sueca Astrid Lindgren, autora de "Pipi das Meias Altas", morreu no dia 28 de Janeiro de 2002, aos 94 anos. Confesso que só conheci a Pipi pela televisão, à mesa clandestina do café, na minha infância fafense, e tenho portanto noção do que certamente perdi. Mas vi-a no outro dia ali em baixo, já crescidita e gingona, a fazer números de skate, e não resisti...

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Foguetes, foguetinhos e foguetões

Não sei se se lembram: Eurico da Fonseca (1921-2000) foi o principal especialista português em astronáutica. Praticamente autodidacta, nomeado investigador por decreto-lei e oficialmente equiparado a professor catedrático, colaborou com a NASA e conheceu os principais responsáveis pelo Programa Apollo. Notabilizou-se entre nós como divulgador de assuntos científicos. Na rádio, acompanhou em directo, na então Emissora Nacional, a chegada do homem à Lua, há cinquenta e três anos, e comentou os voos espaciais norte-americanos e soviéticos. Mas era na RTP que eu gostava de o ouver. Ouver, escrevi bem.
Pois foi com Eurico da Fonseca na televisão - na televisão evidentemente a preto e branco do café Peludo - que eu aprendi que, quando se fala de um lançador espacial, deve dizer-se foguete e não foguetão. Foguete. Tal como na meia de vidro com fio puxado. Foguete. Tal como no Santo António da minha rua em Fafe, com girândolas, diabos-encaixados, bombinhas, estalinhos e bichas-de-rabear, ou rabichas, como por lá se chamavam. Foguete. Eurico da Fonseca explicava, apenas insinuando, que foguetão é outra coisa: por exemplo coisa gasosa, eventualmente sonora e por norma fedorenta. Quer-se dizer: um peido, com vossa licença, e isso já seria matéria da alçada do nosso Moisés...

P.S. - Hoje é Dia do Astronauta.

sábado, 15 de outubro de 2022

Deixei o cego a falar sozinho

Por Matosinhos anda um cego que tem duas curiosas particularidades: é benfiquista e diz palavrões como a puta que o pariu. A cegueira poderá explicar a primeira curiosa particularidade, mas suponho que já não conseguirá justificar a segunda.
Para além de ser pelo Benfica e campeão da malcriadez, o meu cego vende lotarias e ouve as notícias num transístor em altos berros e aqui atrasado, estávamos na paragem de autocarro da Avenida Serpa Pinto, o aparelho falava da Grécia, da tentativa de primavera grega que agitou a Europa durante mais de cinco anos. A reportagem ainda ia a meio, mas o cego, sem que eu lho pedisse, resumiu-me imediata e cientificamente a questão: "Se se fossem mas é foder, filhos da puta do caralho, se querem chupar que chupem piças, era fodê-los, era fodê-los"...
Eu, para não mandar o cego à merda, ia-lhe debitando os números dos autocarros que se aproximavam da paragem, como se estivesse a "cantar o quino", tal qual se dizia em Fafe por alturas do Natal, marcando com milho os cartões escarrapachados em cima das mesas de bilhar do Peludo. Informei-o do 111. "A mim só me interessam o 500 e o 502", respondeu-me, com maus modos, como se a culpa fosse minha. Já agora, culpa de quê? "O 502 passou há um bocadinho, perdi-o por pouco", expliquei eu, a ver se amenizava a coisa. "Há um bocadinho não, que eu estou aqui há um pedaço e ele não passou", atirou-me o cego. Acreditem em mim, por favor: eu tinha chegado à paragem há cinco minutos, o cego chegara há três minutos. Fiquei invisual com a desconfiança e com a falta de educação do homem, mas afastei-me, para não ter de lhe responder torto.
Deixei-o a falar sozinho, literalmente a falar sozinho, porque ele continuou a comentar as notícias, caralho acima, quem os fodesse abaixo, aparentemente virado para mim, imaginando-me ao seu lado, mas eu estava a mais de quinze metros de distância e, confesso, a começar a sentir-me ligeiramente mal com a situação. Não se faz, deixar um cego a falar sozinho.
Reaproximei-me quando chegava mais um autocarro. Um rapazinho avisa o cego, "É o 523". O rapaz confundiu-se, era o 123 da Resende, o 523 da STCP não existe, e o cego, que sabe os autocarros de cor e salteado, aproveitou para dar uma desanda ao miúdo. Vem finalmente o 500 e o jovem, ainda cheio de boas intenções apesar do raspanete, alerta, satisfeitíssimo, "É o 500, é o 500". O autocarro pára e abre a porta. O cego pergunta lá para dentro, ao motorista, "É o 500?", "É o 500", confirma o motorista. Da paragem, corado de vergonha e tristeza, o rapazinho queixa-se ao cego, "Não acredita em mim?", e o cego responde, "Acreditar em quem, caralho, tu até inventas números..."
Não renego o meu fardo judaico-cristão, mas os remorsos passaram-me de repente. Sim, deixei o cego a falar sozinho - e, sabeis que mais, não me arrependo!

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Bengala Branca.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Quero denunciar o meu pai

Foto Tarrenego!
Quero fazer uma denúncia: o meu pai era benfiquista e morreu quando eu tinha dez anos. Isso faz-se? Tem algum jeito? Não sei se a CMTV e a TVI vão pegar no caso, mas justificava-se. Porque desgraça tamanha é para dar na televisão. Há que tempos que eu sou mais velho do que o meu pai, e acho mal. E o meu pai ainda me faz falta e tenho essa razão de queixa. E às vezes sinto-me órfão, como por exemplo hoje, e já não tenho idade para isso. Na minha ideia, a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Judiciária também deviam fazer alguma coisa. Quando ao ministro da Administração Interna, só tem uma saída: a demissão. E o Chega devia exigir uma comissão de inquérito.
O meu pai era portanto benfiquista e penso que só isso é mais do que suficiente para abrir um processo. Era benfiquista e levava-me a ver os treinos do Fafe no Campo da Granja que também já não existe. O meu pai, apesar de breve, ensinou-me o futebol e outras coisas boas da vida. Uma vez levou-me às Festas Gualterianas a Guimarães, fomos a um tasco e eu pedi-lhe para comer feijão com tripas, que nunca tinha provado, e gostei que eu sei lá. Se calhar por isso é que ainda hoje gosto tanto e faço tão bem. Outra vez trouxe-me de presente uma pistola Luger P08 de brincar, pesada e igualzinha às dos nazis dos filmes, e gostei que eu sei lá. Não sei o que me deu na cabeça, mas cresci e não gosto de armas. Continuo a gostar do meu pai.
Para além de benfiquista - repito, benfiquista -, o meu pai era também novo, bonito e bom, mas suponho que isso não interesse para os autos, e era excelente operário tecelão, músico, bombeiro e jogador de dominó. De bombeiro, levava-me ao cinema e ao circo à borliú. E contava-se que no dominó, jogado na mesa do canto direito para quem entrava na sala das traseiras do café Peludo, o meu pai até escondia pedras na boca para enganar parceiros e ganhar mais uns tostões para casa. Eu ia chamá-lo, bem ensaiado pela minha mãe para que ele não ficasse mal perante os amigos. "A mãe manda dizer que a comida está pronta", era o que eu dizia, uma e só uma vez, baixinho, e ficava ao lado dele todo contente à espera.
É preciso que se note: o meu pai, também conhecido como Lando Bomba ou Lando da Bomba, não era só dominó. Nas festas onde a Banda de Revelhe ia tocar, o meu pai, que tocava saxofone, tinha também sociedade com o homem da roleta de feira, artesanal e viciada. Nos intervalos dos concertos, fartava-se de ganhar canivetes, cintos, saca-rolhas, tesouras, baralhos de cartas e gaitas de beiços. O meu pai era o engodo. "Mais uma para o senhor músico. Está em dia de sorte, o raisparta o músico!", gritava o homem da roleta, feitos um com o outro, a chamar o povo. No final, o meu pai devolvia tudo a troco de umas coroas ou de mais uma navalha para oferecer.
Calhava-me, de vez em quando, levar o almoço do meu pai à fábrica. Estando sol, o meu pai e outros operários da Fábrica do Ferro comiam num terreno muito jeitoso para o efeito, a caminho do rio. Do Comporte, e por favor não confundir com Comporta. Sentávamo-nos numas pedras à sombra de pinheiros geralmente mansos e eu adorava estar ali com o meu pai aquela meia hora. Era como se fosse um piquenique, mas eu ainda não conhecia a palavra.
O meu pai dizia "Lá estara?". "Lá estara?" era cumprimento, saudação tirada de ouvido entre amigos e compinchas, da rua, da fábrica, dos bombeiros, da bola e da banda. "Lá estara?" queria dizer mais ou menos "Olá, tudo bem?" ou "Viva, como é que vai isso?". O meu pai fazia também questão (que se dizia "questã") de reinventar os nomes das pessoas, e por isso o nosso bom Berto Dantas era o Berteira, o monossilábico Augusto da esquina era o Gustaveira, e assim sucessivamente.
O meu pai gostava muito de fazer rir a minha mãe e, de malandrice, lia-lhe o jornal metendo as expressões "pelo cu acima" e "pelo cu abaixo" entre as palavras das notícias. Se fosse hoje, ficaria, por exemplo, assim: "A atriz pornográfica, pelo cu acima, Stormy Daniels, pelo cu abaixo, descreveu, pelo cu acima, o pénis, pelo cu abaixo, do ex-presidente, pelo cu acima, dos Estados Unidos, pelo cu abaixo, Donald Trump, pelo cu acima, comparando-o, pelo cu abaixo, a um cogumelo, pelo cu acima." Eu e os meus irmãos, que arranjávamos sempre maneira de ouvirmos aquela comédia, escangalhávamo-nos a rir. A minha mãe repreendia o meu pai, tentava tirar-lhe o jornal das mãos, pareciam o Charlot mas a cores, e nós ainda nos ríamos mais. Éramos pobres, mas tínhamos o riso. E o riso é muito bom, é uma riqueza alternativa. Éramos então remediadamente felizes.
O meu pai foi para França, Belfort, resvés com a Suíça, e escrevia-nos cartas numa letra muito perfeitinha em papel quadriculado que nós líamos à nossa mãe. Nós também íamos para França, estávamos de partida, mas não tivemos tempo. O meu pai morreu, acredito que de saudades, numa véspera de Natal. Em França. Sozinho. No dia seguinte nasceu o Menino Jesus, disseram-me que de propósito para tomar conta na minha mãe, de mim e dos meus três irmãos. Que Deus me perdoe, mas o velhote, que nunca pôde ser, ter-nos-ia dado muito mais jeito...

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...