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segunda-feira, 8 de setembro de 2025

A peita

Os ausentes
Sim, ele gostava muito de presentes. Mas os ausentes falam-lhe mais ao coração...

Peita. Dádiva ou promessa com o fim de subornar, suborno, antigo tributo pago pelos que não eram fidalgos - é o que dizem os dicionários. E peitar, seguindo esta linha de raciocínio, será, então, subornar com peitas, corromper, aliciar com dádivas e promessas. Talvez. Mas a peita, naquele tempo, ao menos em Fafe, era mais que um simples suborno e muito menos que um simples suborno. Até podia ser pagamento de favores, reais ou imaginários, simulacro de cunha, mas ia para além e ficava aquém disso. Não era corrupção tal como hoje a entendemos e usamos, era, isso sim, uma manifestação quase folclórica de uma certa subalternidade social mansamente aceite e assumida pelo pé-descalço, resquícios decerto medievais do tal imposto popular, numa gratidão imensa e sem sentido pelos de cima. Enfim, sabujice e lambe-botismo em todo o seu esplendor, os pobres davam aos ricos, não sei explicar de outra maneira, e assim funcionava o regime.
O meu avô, por exemplo. O meu avô da Bomba gostava muito de ser doente e adorava ir ao Porto "ao especialista". Era uma coisa constada. Íamos "ao especialista" como se fosse uma romaria, uma excursão familiar na catrel de três velocidades do meu padrinho Américo. Íamos, mas todos com a perfeita noção da solenidade do momento e da compostura que se exige numa ida "ao especialista" e ainda por cima ao Porto. Era um cardiologista na Rua de Sá da Bandeira, que por acaso também era médico do poeta Pedro Homem de Mello, que nós conhecíamos da televisão a preto e branco, e eu ficava muito emocionado por estar ali à beira daquela grande figura, na sala de espera, a cores, mas evidentemente sem abrir o bico, para não destoar e às tantas até "incomodar" o meu avô. O meu avô da Bomba, e este era um ponto de que toda a família estava avisada e o resto de Fafe também, "incomodava-se do coração".
Quando ia "ao especialista", o Bô da Bomba levava-lhe sempre um bom quilinho da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Sr. Abreu do Talho, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Era a peita, o regalo, é claro que o meu avô não podia ir ao Porto com consulta marcada e aparecer "ao especialista" de mãos a abanar...
As peitas aos médicos eram, aliás, aparentemente consensuais e obrigatórias, e creio saber que hoje em dia ainda há quem por aí as pratique. E não se pense que se tratava de um pagamento de consulta em géneros. Não. Era um pagamento em cima do pagamento em dinheiro vivo, pagas e não bufas, um extra, uma gratificação, uma gorjeta de mãos largas, sei lá bem por que carga de água. Em Fafe havia um médico muito famoso por receber peitas, tantas e tantas, material de luxo, belas peças de caça, dúzias de ovos caseiros, salpicões, presuntos, cabos de cebolas, rasas de milho ou feijão, frangos, capões, coelhos, cabritos, mortos e vivos, e não sei se também porcos, peitas, tantas e tantas, dizia eu, que o senhor doutor aceitava alegremente e depois vendia, inclusive aos açougueiros locais, tudo passado a patacos. Isso, o médico rico fazia negócio com as esforçadas oferendas dos seus doentes pobres, tinha até uma "criada" destinada quase exclusivamente a esse ofício. Toda a gente sabia do cambalacho, na vila e nos arredores. Alguém de bolsos mais abonados andava com desejos de uma perdiz de escabeche, precisava de um coelho-bravo para dar ao patrão, queria um pato à moda antiga para uma tainada das tais, não tinha nada que enganar, era só ir ao médico...

A peita, para ser considerada e aceite como tal, deveria ser praticada de chapéu na mão e espinha vergada, balbuciando-se no acto da entrega, reverente e agradecido, muitos "obrigados!", diversos "desculpe por ser pouquinho!", um singelo e envergonhado "semos probes!", e já à porta, sempre andando às arrecuas, um derradeiro e definitiva "desculpe"...

O Natal era uma época especialmente porreira para as peitas. Consoada não é só o banquete de Natal, a reunião da família à mesa, na noite de 24 para 25 de Dezembro. Consoada é também a prenda que se dá a alguém pelo Natal, dias antes, e esse uso da palavra era então muito comum em Fafe.
Nas férias de Natal, era costume os meninos da escola primária levarem a consoada, isto é, a peita, a casa das professoras ou professores. Uma oferta simples, chocolates, rebuçados, alguma mercearia essencial, como se fosse para o Banco Alimentar, um gesto bonito, dir-se-ia, se não estivesse desde logo ferido de uma profunda injustiça social. Havia aqui, no exercício da peita escolar, qualquer coisa de insensato, algo de paradoxal, uma gritante subversão de valores - afinal, os miúdos éramos sobretudo filhos de operários, caixeiros de baixo salário, pequenos lavradores aflitos, tarefeiros incertos, proletários de uma forma geral, e os professores, apesar do infinito desprezo de Salazar, eram professores, quer-se dizer.
Havia professoras ou professores que levavam a mal e tomavam de ponta os alunos que não lhes dessem nada. Havia professoras ou professores que aceitavam simpaticamente o mimo e entregavam às crianças uns docinhos para a troca. Havia professoras ou professores que agradeciam muito o gesto, mas pediam aos meninos que voltassem a levar as coisinhas para casa, onde faziam muito mais falta. E havia o meu professor e a esposa do meu professor.
O meu professor, melhor dito, o meu excelentíssimo professor era o Toninho da Cafelândia, o Professor Correia, que morava, se não me engano, na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, ali logo nas redondezas do Jardim do Calvário e do Tribunal. Fui lá uma vez levar a peita. Talvez um quilo de açúcar, do melhor, talvez um quilo de arroz, do melhor, ajeitados não em cartuchos normais, cinzentos, grosseiros, mas nuns cartuchos coloridos, alegres, finos, eventualmente até com fitinhas. A minha mãe caprichou.
Toquei a campainha e fui acolhido pela esposa do meu professor. Perguntou-me quem é que eu era, não precisei de explicar muito, sabia de nós, da nossa situação, a senhora agradeceu sinceramente os meus dois cartuchos, pegou neles com um sorriso, pediu-me para esperar um bocadinho à porta e foi lá dentro. A casa tinha umas escadas. A esposa do meu professor voltou num lampo e, quando voltou, vinha mais carregada do que quando foi. Trazia nas mãos, para me dar, um saquinho com rebuçados e um saco com quatro cartuchos dentro, talvez arroz, talvez açúcar, mas eram outros os cartuchos e a dobrar, para eu entregar à minha mãe e que lhe dissesse muito obrigado e que lhe mandava cumprimentos.
A boa senhora solucionara facilmente o paradoxo. E eu, todo contente, aprendi a lição da gentileza e da generosidade, do respeito pela dignidade do pobre que dá.

Por outro lado, convém não esquecer, o assunto aqui era a peita. A peita, de uma forma geral. A peita, isto é, a mama, a grandessíssima mama.

P.S. - Versão revista e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Internacional da Alfabetização e Dia Internacional da Literacia.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Quando a "puta" tocava

O bombeiro profissional
Ele era um bombeiro verdadeiramente profissional. Só aceitava incêndios das 9h às 13h e das 14h às 17h, de segunda a sexta-feira. Fora do horário de expediente, que ligassem aos voluntários!

A "puta" tocava e Fafe desatava a correr em direcção aos Bombeiros. A "puta" era a sirene. E os homens largavam tudo: trabalho, mesa, cama, mulher e até os socos ou as botas pelo caminho. Havia os que iam de bicicleta e os que apanhavam boleia de motorizada. Carros paravam para levar desgraçados vindos das lonjuras da Cumieira ou dos campos do Sabugal e já com os bofes de fora. Depois, havia o Casimiro das Caixas, que começava o dia a fazer as palavras cruzadas no jornal do Café Chinês e chegava na sua velha furgoneta. Mas quando "ela" tocava, era para todos. Tocava também para os curiosos, para os que iam apenas ver, saber onde era o fogo. E, em vez de estorvar, faziam-se úteis. Apanhavam e arrumavam as bicicletas e as motorizadas que os bombeiros atiravam em pleno andamento ao chegarem ao quartel, e um mirone encartado ainda tinha de estacionar em condições a carrinha do Casimirinho, deixada sempre à frente dos portões a empancar a saída dos carros de incêndio. O Casimiro da Caixas era um fafense que tinha vindo de Guimarães, onde decerto nascera, como talvez Portugal, e nunca se descolou daquela pronúncia carregada que nos fazia rir a todos.
"Ela" tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno", que os bombeiros de Fafe foram ver a Guimarães, em viagem oficial. Eu também fui. Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles nunca confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do Tónio Quim Calçada os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.

(E havia os espontâneos, que afinal não eram tão espontâneos assim. Moravam ali à porta e estavam sempre de prevenção para uma emergência que o fosse realmente. Faltava um motorista, a saída estava a atrasar-se? - era só chamar por eles e eles avançavam: lembro-me do Fredinho Bastos e do irmão Quinzinho, do Varinho Dantas ou do Toninho da Luísa, que tinha piada fina e eu gostava de imaginar DaLuísa derivado ao comediante americano Dom DeLuise, mas isso já é outro filme. Se calhasse, enfiavam um blusão e um bivaque, só para despaisanar, e avançavam a todo o gás, bombeiros como os de exame feito e papel passado e ainda mais voluntários, mas qual seguro qual carapuça! Ser-se bombeiro era efectivamente um estado de alma. E estes eram bombeiríssimos de primeira.)

Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda precisa para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...

Quando o monte ardia, os bombeiros iam e pronto. Atulhados em viaturas desconfortáveis, vagarosas, barulhentas, fumegantes, inseguras e, não raro, caindo aos pedaços. Iam e pronto. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por apagar incêndios - eram uns tolos. Tolos, porém despachados e íntegros. Devotados. E espertos, desenrascados. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel.
Pelo menos em Fafe era assim, e não havia razão de queixa.

Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
Às vezes, não. Às vezes o herói faz o que tem de fazer, isto é, faz o que fazem os heróis, e depois desaparece em direcção ao sol poente. Desaparece e nunca mais.

P.S. - Nova versão, publicado no meu blogue Mistérios de Fafe. Hoje é Dia Nacional do Bombeiro.

sábado, 22 de março de 2025

Um teatro chamado Cinema

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu respeito o Teatro-Cinema de Fafe. O Teatro-Cinema de Fafe diz que se chama Teatro-Cinema, até tem o nome escrito na testa, "Teatro-Cinema", e eu cumpro-lhe a vontade. Para mim, o Teatro-Cinema é o Teatro-Cinema. Isto é, Teatro-Cinema com hífen, isto é, com tirete, isto é, com traço-de-união, isto é, com traço, isto é, com tracinho, como diz o povo. Teatro-Cinema, assim. Outros não pensam desta maneira.
Há quem lhe chame Cine-Teatro, até em documentos moderadamente oficiais, mais ou menos lisboetas, do chamado Património, e cineteatro, em bom rigor, quer dizer exactamente o mesmo que teatro-cinema, isto é, edifício que permite ou onde se realizam espectáculos de cinema e teatro ou vice-versa. É, portanto, correcto quanto ao conteúdo. Mas o nome verdadeiro está lá em cima, indesmentível, "Teatro-Cinema".
O meu avô da Bomba e os da geração do meu avô da Bomba chamavam-lhe, é verdade, Cine-Teatro, lembro-me disso, era nome em voga. O meu pai, eu e os da minha geração chamávamos-lhe e chamamos-lhe Cinema, porque no nosso tempo era o que lá havia e dizia-nos respeito, era o que tínhamos e amávamos, cinema, o meu Cinema Paraíso, com já aqui contei. Mas, insisto, o Teatro-Cinema, chamem-lhe os nomes que quiserem, se lhe perguntarem, diz que se chama "Teatro-Cinema". Está à vista de toda a gente.
Entretanto, não sei quem, mas doutores certamente, não sei quando nem sei porquê, a coberto da noite e da Câmara Municipal, alguém foi, vamos um supor, ao Teatro-Cinema e sonegou-lhe o hífen, isto é, o tirete, isto é, o traço-de-união, isto é, o traço, isto é, o tracinho, como diz o povo. E agora os serviços e a propaganda do Município chamam Teatro Cinema ao nosso Teatro-Cinema, quem dera que não se lembrem também de ir a Braga abafar o agá do Theatro Circo.
Ora bem. Fafe tinha o Teatro-Cinema. O Teatro-Cinema, de Fafe, edifício-sala-local para apresentações teatrais e sessões cinematográficas. Agora tem o Teatro Cinema, isto é, um teatro chamado Cinema, isto é, Teatro Cinema, como Teatro Antunes, como Teatro Maria Alice, como Teatro Aberto, como Teatro Privado. A palavra Cinema passou a nome do teatro. Teatro Cinema. Se ainda fosse no meu tempo, que era só filmes, ainda vá que não vá, mas actualmente, que é sobremaneira palco e o cinema mora ao lado, não vislumbro o sentido da coisa. Outros certamente vislumbrarão.

Resumindo e concluindo. A Câmara de Fafe, isto é, a autarquia, isto é, o Município, tem de fazer alguma coisa. E eu sei muito bem como é que isto se resolvia. Era chamar a "magirus" dos Bombeiros e mandar lá acima um trolha de confiança para apagar de vez o hífen, isto é, o tirete, isto é, o traço-de-união, isto é, o traço, isto é, o tracinho, como diz o povo. E os doutores passavam a ter razão.

P.S. - Hoje é Dia do Teatro Amador.

terça-feira, 4 de março de 2025

Falando de cus, se me dão licença

Moro mesmo em frente ao mar, se for para a varanda e me puser de lado. É o que costumo dizer: na minha rua passa o mar. No meu quintal estacionam navios de passeio mediterranicamente atlânticos, paquetes carregados, descarregados e outra vez carregados de turistas rotundos e supersónicos que conseguem turistar o Norte de Portugal inteiro em menos de oito horas. Há quem chame ao meu quintal, por inveja ou ignorância, Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões. Mas não: é o meu quintal e mais nada!
Noutro dia estacionou-me ali em baixo o Costa Pacifica, um colosso. São quase trezentos metros de navio para 3.780 passageiros. E sabem que mais? Eu vim de Fafe, uma terra evidentemente sem comparação e, Costa por Costa, tínhamos o Costa do Assento, que tocava concertina, uma vez deu na televisão a apoiar o General Ramalho Eanes e também era uma categoria de pessoa, não desfazendo, mas as viagens de circum-navegação ao mundo que eu sabia eram a Fátima e ao Alto Minho, organizadas pelo meu avô da Bomba. Naquele tempo, turistas éramos nós, lingrinhas de pé descalço e pila ao léu, em sorrateiras escapadelas até às recônditas estâncias balneares do Poço da Moçarada, do Comporte ou de Calvelos, de onde, por norma e tradição, éramos sacados a ganir, puxados por uma orelha. A minha mãe parecia que tinha radar, e, uma desgraça nunca vem só, sabia sempre por onde é que eu andava e o que fazia. Que se segue? Os paquetes que agora me batem regularmente à porta chegaram tarde à minha vida, eu preferia tê-los visto atracar à poça do Santo ou à ponte do rio de Pardelhas, uma vez que no meu antigamente éramos muito atrasados e ainda não tínhamos Barragem, mas mais vale tarde que nunca, e mesmo agora dão-me bastante que pensar, suscitam-me reflexões de pequena e média profundidade que aqui humildemente partilho com os meus queridos leitores. E daquela vez, olhando para o imponente Costa Pacifica, vieram-me à cabeça os cus. Os cus que os cruzeiros descarregam e recarregam.
Cu de turista não é brincadeira, já repararam? É traseiro de bitola larga e se for cu americano então ocupa o mundo inteiro, incluindo o México e o Brasil, menos a Alemanha e a Rússia. Até parece que para se ser turista - turista encartado - é preciso ter um cu daqueles. E o cu alemão e o próprio cu russo também para lá caminham, não querem ficar atrás, é só olhar para o que se passa na Ucrânia. O que diz tudo a respeito dos cus.
Imagino que sejam muito ricos os camones com que me cruzo nas bordas do Porto de Leixões - eles a saírem todos cheios de good morning e eu, de passagem, "desculpem lá a shit de dog na sola da sandália e thank God que vêm de meias, quer-se dizer, é good luck, com os cumprimentos de Matosinhos City, isto em Fafe seria outra limpeza, mas é para o que está", eu, que domino o inglês como quem domina a pantera. Tão turistas e tão prendados de cu, têm de ser muito ricos. Engordam e viajam porque podem. Se calhar são todos reformados da administração do Millennium BCP ou do BES ou da TAP ou da política portuguesa em geral, mas não querem que se saiba.
Os turistas. Chegam e parece-me sempre um congresso de cus com sala de espera no Passeio Atlântico, que se vê à rasca para aguentar semelhante pesadelo. Toneladas e toneladas de bagagem extra em traseiros colossais e gingões mesmo à frente do meu nariz e que até naufragam tuque-tuques. Confesso: é um espectáculo que não pára de maravilhar-me. Até porque, como diz o povo que nunca andou de navio mas passa a vida a vê-los passar, a gordura é formosura. Olho para os cus e olho para o barco, e só me apetece elogiar o génio humano, os avanços da ciência, os milagres da indústria, a arte e o engenho dos modernos fazedores de navios, supremos desafiadores das leis da física. Fascina-me aquilo que não consigo compreender. Para os cus e para o barco, olho. Olho para o barco e penso: como é que aquilo não vai ao fundo com tanto cu descomedido lá enfiado?...

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Obesidade. E, mais dia menos dia, vai deixar de ser...

domingo, 5 de janeiro de 2025

O meu avô era um artista

Já contei que o meu avô da Bomba, apesar de quarteleiro dos Bombeiros de Fafe, e daí o apelido, nunca se apartou completamente do velho e honrado ofício de sapateiro com que se iniciara na vida. Enquanto pôde, num cantinho por baixo das escadas que subiam para "o salão" do quartel da Rua José Cardoso Vieira de Castro, onde os finalistas da Escola Industrial levavam à cena a sua récita anual, ele manteve banca privada e fez, com desenho próprio, as sandálias e sapatos que calçavam a família. A família lá de casa dele, quero dizer, mulher e filhos, porque o meu avô não era de dar, nem para a família, vamos dizer assim, além-soleira. O máximo que dava eram os bons-dias e variadas ordens, mas exigia o troco e o recibo com número de contribuinte.
Em todo o caso, fui semanticamente injusto quando chamei sapateiro ao meu avô da Bomba. Sapateiro. Nestes tempos em que nem os cegos são cegos - são invisuais -, agora que já nem há mentirosos - mas inverdadeiros ou faltadores à verdade, como se sugere na política -, nos dias em que nem os bois são chamados pelos nomes - têm números -, chamar sapateiro ao meu avô da Bomba é praticamente um insulto, e estou muito arrependido, que me desculpem os sapateiros propriamente ditos e os atamancadores em geral.
Se escrevesse hoje, e é o que faço agora, eu diria que o meu avô da Bomba era um mestre do artesanato, um artífice do calfe, uma sumidade da sovela, uma Joana Vasconcelos por antecipação, e fazia-lhe um museu, se mo pagassem; diria que o meu avô era uma start-up em pessoa e metia-o na Bolsa de Nova Iorque, se me deixassem; diria que o meu avô era um criador de sapatos e enchia-o de massa do PRR, se ma dessem; diria que o meu avô era um caso exemplar do empreendedorismo nacional e pendurava-lhe mais uma medalha no 10 de Junho, se mandasse; diria que o meu avô era um estilista, um designer de calçado, e acompanhava-o à Feira de Milão, assim a agenda mo permitisse. É isso. Se escrevesse hoje, eu diria que, para todos os efeitos, o meu avô era um designer, um estilista, um artista - sobretudo um artista. Ai era, era...

P.S. - Hoje é Dia de São Simeão Estilista. Simeão Estilista, o Antigo, para se distinguir de Simeão Estilista, o Moço, nasceu em Alepo, norte da Síria, por volta de 389, faleceu em Telnessin, em 459, e terá sido o primeiro santo estilista. "Estilista" diz que advém da palavra grega stylos, que significa coluna. Era no topo de uma coluna que Simeão vivia, pregando e jejuando, preso por uma corrente. Quer-se dizer, hoje em dia trabalharia numa discoteca da moda. E o outro também.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

O incansável fazedor de sestas

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu ainda não sabia que aquela "meia horinha" se chamava assim, mas o primeiro adulto que eu vi a fazer a sesta foi o meu avô Manuel, o 17 da Bomba, que não era terrorista e ganhara a explosiva alcunha derivado a ser o bombeiro número 17 e quarteleiro dos Bombeiros de Fafe. O meu avô morava no quartel dos bombeiros, que, para todos os efeitos, na nossa terra, era a Bomba, e, pronto, sem fazermos mal a uma mosca, lavamos com a CIA em cima e não há quem nos acuda.
Naquela casa, isto é, na Bomba, só se comia e bebia do bom e do melhor, embora regrado. Muito regrado. Depois do almoço, o meu avô descia até à camarata e estendia-se numa das camas, a primeira à entrada do lado esquerdo, tapando a cara com o Jornal de Notícias. O JN era naquela altura um jornal grande, quase um lençol, muito jeitoso para a sesta, e o meu avô, contrariando a regra geral, gostava de dormir sob aqueles assuntos.
As minhas tarefas de neto em relação à sesta do meu avô eram ir buscar o JN e passar de vez em quando pela camarata para, se necessário, corrigir a posição do jornal. Tinha uma terceira tarefa, não editorial, que era andar em bicos de pés e de bico calado.
O Jornal de Notícias do meu avô era comprado a meias com o Senhor Ferreira do Hospital, que o lia primeiro, e depois eu ia buscá-lo, ou então ficava cada um com metade das páginas e a uma certa hora da manhã eu fazia a troca, já não me lembro bem.
O Senhor Ferreira do Hospital e o meu avô foram amigos e cúmplices toda a vida. Eram unha com carne, apesar de diferentes como a água e o vinho: o Senhor Ferreira era comunista, tinha estado preso, e o meu avô... antes pelo contrário. Para além de comunista, o Senhor Ferreira era um homem bom, íntegro, sábio, um grande Homem que eu admirava e gostava de ouvir. Anos passados, aos domingos, eu à beira de ir para a tropa e portanto sem emprego, o Senhor Ferreira cumprimentava-me com uma nota de 20 escudos escondida e imperativa na mão tremente. Depois de cegar, o Senhor Ferreira conhecia-me pela voz, mesmo sem eu abrir a boca, quase que só pela presença ou talvez pela respiração, não sei o truque. Já casado e jornalista, no Porto, eu ia frequentemente a Fafe, entrava no Nacor, então transplantado para as megalómanas porém inóspitas instalações em frente ao tasco original, eu ainda à porta, limpando os pés, o Senhor Ferreira, sentado ao enorme balcão, lá ao fundo, com a sua malguinha à frente, adivinhava-me e atirava logo: - Está aí o Hernâni? Aquilo comovia-me tanto, enchia-me tanto a alma, eu ficava tão orgulhoso, que não fazeis ideia! Eu estava realmente ali, e ganhava o dia, palavra de honra! Pelo menos uma tardada de abraços e revigorante conversa. E ainda hoje fico à rasca quando me lembro disto.
Mas o meu avô. O meu avô da Bomba fazia a sesta muito bem. Naquele tempo ainda não era moda dizer-se que a sesta faz bem à saúde, o que até viria mesmo a calhar ao meu avô, que era "uma pessoa muito doente". Era também preguiçoso, como vim a concluir mais tarde, o que me livrou do divã do psiquiatra e despesas adjacentes, uma vez que consegui perceber sozinho que tenho bem a quem sair.
Quando éramos miúdos, o meu avô punha-nos a bulir como gente grande, a mim e ao meu irmão Nelo. Eu era pau para toda a colher: limpava e polia os capacetes e outros amarelos com solarine Coração e uma espécie de pó de talco, lavava as viaturas, verificava o óleo e colocava água nos radiadores, anotava as quilometragens, lavava, punha a secar e enrolava as mangueiras depois dos incêndios, metia baterias à carga, enchia as baterias com água da chuva colhida num garrafão com funil que estava no telhado, ia chamar motoristas para as saídas urgentes de ambulância, servia de bombeiro, varria o "parque do material", levava avisos a casa dos bombeiros, atendia o telefone, tocava a sirene (era a parte de que eu mais gostava), hasteava as bandeiras aos domingos e dias de festa, ia à cave buscar vinho, "sempre a assobiar!", segundo ordens superiores. Enfim, eu é que era o verdadeiro Bomba. E não saía de lá. Também porque naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor - já disse.

Tenho-me esquecido de ir buscar o jornal para o meu avô da Bomba e também já há muito que não estou com o Senhor Ferreira do Hospital - gostava de lhe pedir um retrato. Aqueles dois nem devem ter reparado. Estão entretidos a meterem-se um com o outro, foram sempre assim, ou então dormem uma bela sesta, cada qual com a sua metade de JN sobre o rosto. Eu também já durmo a sesta, percebo-os agora. Quando nos voltarmos a encontrar, os três, ainda nos havemos de rir disto tudo.

P.S. - Publicado originalmente, versão mais curta, em Outubro de 2011, no meu blogue Tarrenego! Entre outros melhoramentos, hoje acrescento-lhe um bom parágrafo a respeito do Sr. Ferreira do Hospital, a quem voltarei um destes dias, dedicando-lhe um texto em exclusivo. Por outro lado, hoje é Dia do Festival do Sono. O meu avô haveria de gostar da efeméride. E faria um figuraço se fosse a concurso...

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Quando a "puta" tocava

Foto Tarrenego!

A "puta" tocava e Fafe desatava a correr em direcção aos Bombeiros. Os homens largavam tudo: trabalho, mesa, cama, mulher e até os socos pelo caminho. Havia os que iam de bicicleta e os que apanhavam boleia de motorizada. Carros paravam para levar desgraçados vindos das lonjuras da Cumieira ou dos campos do Sabugal e já com os bofes de fora. Depois, havia o Casimiro das Caixas, que começava o dia a fazer as palavras cruzadas no jornal do Café Chinês e chegava na sua velha furgoneta. Mas quando ela tocava era para todos. Tocava também para os curiosos, para os que iam apenas ver, saber onde era o fogo. E faziam-se úteis. Apanhavam e arrumavam as bicicletas e as motorizadas que os bombeiros largavam em pleno andamento ao chegarem ao quartel e um mirone encartado ainda tinha de estacionar em condições a carrinha do Casimirinho, deixada sempre à frente dos portões a estorvar a saída dos carros de incêndio. O Casimiro da Caixas tinha vindo de Guimarães, onde decerto nascera, como talvez Portugal, e nunca se descolou daquela pronúncia carregada que nos fazia rir a todos.
Ela tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno". Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles não confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do António Quim (sim, o do cinema...), os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.

(E havia os espontâneos, que afinal não eram tão espontâneos assim. Moravam ali à porta e estavam sempre de prevenção para uma emergência que o fosse realmente. Faltava um motorista, a saída estava a atrasar-se? - era só chamar por eles e eles avançavam: lembro-me do Fredinho Bastos e do irmão Quinzinho, do Varinho Dantas ou do Toninho da Luísa, que tinha piada fina e eu gostava de imaginar DaLuísa derivado ao comediante americano Dom DeLuise, mas isso já é outro filme. Se calhasse, enfiavam um blusão e um bivaque, só para despaisanar, e avançavam a todo o gás, bombeiros como os de exame feito e papel passado e ainda mais voluntários, mas qual seguro qual carapuça! Ser-se bombeiro era efectivamente um estado de alma. E estes eram bombeiríssimos de primeira.)

Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...

Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
Às vezes, não. Às vezes o herói faz o que tem de fazer, isto é,  faz o que fazem os heróis, e depois desaparece em direcção ao sol poente. Desaparece e nunca mais.

Eu sei que já leram isto. Até aqui, mais ou menos, publiquei eu no dia 19 de Agosto de 2022. E ao tempo que ia o tempo dos bombeiros voluntários. Em Fafe também. Agora, até os bombeiros voluntários são profissionais. Ser voluntário é profissão, o amadorismo é anedota, se não são bombeiros voluntários é porque são bombeiros obrigados, e então, já que aqui estamos e não somos menos do que os outros, reivindicam-se salários, aumentos, reformas, regalias, políticas, governos e tempo de antena, que já Chega!, e que já Chega! Os "soldados da paz" partiram para a guerra, regra geral, levados, levados sim. Os sapadores vão à frente, alumiando o caminho, com tochas, petardos e encontrões.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

O circo chegava e a vila espertava

Foto Hernâni Von Doellinger

Circo que é circo tem nome de circo. Ponto. Nome com pozinhos de perlimpimpim, nomes exóticos, inventados à la minuta, nomes de fazer sonhar. Nomes à antiga: Arena, Brasil, Cardinali, Circolândia, Chen, Cristal, Dallas, Dragon, Eddy, Flic Flac, Império, Leunam, Luftman, Mariani, Mundial, Nederland, Nery Brothers, Oceanika, Soledad, Romero, Torralvo ou Twister. Ou Circo Royal, "com Pierre Ivanoff e os seus leões da Abissínia", ou o meu melhor circo do mundo, Circo Merito, que ia a Fafe todos os anos, sem animais acima de cão, mas com um incrível número de transmissão de pensamento operado pelo senhor Merito em pessoa e sua partenaire, e sobretudo uns palhaços como nunca mais ri na minha vida e que contavam sempre a anedota de que a nossa era a única terra à face da mesma mas com maiúscula onde dormiam dezoito numa cama: o meu avô da Bomba, que era o 17, mais a minha avó. O meu avô afinava e eu achava um piadão.
O senhor Merito, que também era mestre-de-cerimónias do es-tra-or-di-ná-ri-ooo... ex-pe-ctá-cu-looo!!!..., padecia de uns óculos com lentes verdes de fundo de garrafa Carvalhelhos versão 1960 que, aos meus olhos infantis e crentes, justificavam à partida os poderes adivinhatórios de que ele estava evidentemente investido.
Coisas de outro mundo. No circo aprendi palavras sen-sa-ci-o-nais, que gostava de ouvir e de dizer e não sabia o que significavam: funambulista, malabarista, contorcionista, equilibrista, acrobata voador, faquir, trapezista, pirofagista, globista, faquista, mais engolidor de espadas, palhaço e ilusionista - estas três eu ia lá -, e que hoje percebo que todas são afinal meros adereços ou adjectivos para outra palavra do léxico circense que é a palavra... político.
Agora? Agora andam por aí circos com nomes paisanos, insossos, e a magia foi um ar que se lhe deu. Nomes de linha média em quatro-quatro-dois losango: Rúben, Cláudio, Leandro e Walter Dias. Nomes do dia-a-dia, corriqueiros, sem pés nem cabeça, como se fossem nomes de talhos ou retrosarias. Como se fossem: o Circo Ricardo, o Circo Pedro, o Circo Ferreira, o Circo Gomes, o Circo Lopes, o Circo Magalhães, o Circo Antunes. O Circo Maria das Dores. Sem o glamour de um Tony, sem o garbo de um Fredy, sem as lantejoulas de uma Nandy nem as meias de rede de uma Mirita no seu rola-rola, ainda que rotas, as meias, porque no circo é importante trabalhar com rede, posto que sem fio, portanto Wi-Fi.
E ainda haverá palhaços excêntricos musicais? E a profissão está devidamente reconhecida e enquadrada? Tem ordem? Carteira profissional? Tempo de serviço em recuperação?
O circo chegava e a vila espertava. A vila precisava. Fafe vivia intensamente os seus dias de circo, havia assunto, havia mundo, havia vida. Havia emoção, havia sonho, havia riso, havia medo, havia pena, tristeza, saudade antecipada, porque depois só para o ano. Era um deslumbramento vivermos - digo bem, vivermos -, de coração aos saltos e mãos a tapar os olhos, o perigosíssimo trabalho daqueles artistas cheios de is gregos e cabelo empastado, artistas in-tarrr-na-ci-o-nais de Ermesinde e Freamunde - Cuidado, Dany, cuidado! Res-pei-tá-vel público, silêncio, o mais completo silêncio, por favor, peço o silêncio dos senhores ex-pe-cta-do-reeesss... Vamos, Dany, cuidado, upa, ealé, bravo, bravo, Dany, bravo!...
Só o carro com altifalantes sobressaltando as pacatas ruas da vila antiga já era uma festa. "Hoje grátis às damas, damas grátis!", prometia-se ambiguamente na véspera da despedida. O circo era o melhor faz-de-conta de todos os tempos! O famoso Pierre Ivanoff chamava-se Pedro Piloña Reina e era um espanhol de Valência nascido em Casablanca, Marrocos. Na jaula, com os leões, vestia de tribuno romano que eu sabia dos filmes - e ficou-me até hoje. Tinha eu se calhar sete anos quando o Pedro, aliás Pierre, desafiou o meu pai, saxofonista desembaraçado na Banda de Revelhe, a fazer-se ao mundo a bordo da orquestra do Circo Royal, mas o meu pai não foi. Foi para mim um desgosto muito grande, que já me via palhaço, a morar na rulote, a faltar à escola e a rasgar completamente as meias de rede da Mirita...

O sítio do circo em Fafe era na Feira Velha, encostadinho à antiga escola primária cujas defuntas pedras depois se transformaram, por milagre, em capela de casa particular. E era porreiro o circo ali, porque vocês hoje em dia não fazem ideia dos deslimites do fedor a que pode chegar a jaula de um leão velho, mas eu e os da minha escola sabemos, graças a Deus. O circo creio que frequentou outros lugares da nossa vila, e lembro-me por exemplo de uma vez em que se instalou num terreno convenientemente devoluto ali para os lados da Recta, mas a Feira Velha é que era o sítio. Gosto de dizer, a Feira Velha, gosto de me ouvir dizer. Agora mesmo, escrevo e digo, vêm-me as lágrimas aos olhos por causa de duas palavras de nada, pareço tolo. Feira Velha. A Câmara Municipal, quando se tornou mercearia para não ficar atrás das outras câmaras municipais, meteu lá carros à hora e é o que temos.

Carlos Drummond de Andrade dizia: "Vou ao circo para me sentir em casa com o mundo". E Ferreira Gullar, no poema "Improviso para a moça do circo", do livro "Na Vertigem do Dia", lembrava a infância e contava: "é pouca a vida que a cidade oferece, até que aparece o circo". Por outro lado: o circo somos nós - camelos, ursos, jacarés em camisolas, asnos e leões mansos. Homens-bala de pólvora seca, malabaristas, contorcionistas, ilusionistas, equilibristas, palhaços - somos nós, porque nos mandam e porque somos o único circo a que temos direito. Vivemos na corda bamba e sem rede. Tiraram-nos a rede, esticam-nos a corda, sufocam-nos, caímos que nem tordos sem capacete.

P.S. - Publicado aqui originalmente no dia 29 de Agosto de 2022. Estamos no Natal, meus meninos!...

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

A vida aprende-se de ouvido

Por falar em lengalengas. "Doze, rebaldoze, vinte e quatro com catorze, dezasseis mais vinte e um - faz um cento menos um."
Esta, mais uma, ensinou-ma também assim o meu avô da Bomba. Eu teria sete, oito anos e ainda não sabia de Alves Redol e de "Gaibéus". O inefável Dezassete decerto também não. Quer-se dizer, a vida aprende-se de ouvido.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

O pintor que pintou Ana

"O pintor que pintou Ana
também pintou Leanor,
pintou a cara da mãe
com tinta da mesma cor."

Há outras versões da velha lengalenga, adaptações e até desenvolvimentos, mas foi assim simples que a aprendi do meu avô da Bomba. E lembrei-me dela e dele hoje outra vez, mesmo à bocadinho, no passeio à beira-mar...

sábado, 5 de outubro de 2024

O meu bisavô Lindolpho, pedagogo e jornalista

Um por acaso lembrou-me aqui atrasado do meu bisavô Lindolpho, pai do meu avô da Bomba e egrégia figura que infelizmente não conheci. Fui aos papéis. Lindolpho Von Doellinger, pedagogo, nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, na freguesia de Santo António dos Pobres - tanto quanto consigo perceber na certidão de nascimento do meu avô, assento n.º 71, que preservo com devoção e fita-cola. Dos Pobres, e eu nunca tinha ligado. A minha vida começa finalmente a fazer sentido...
Que se segue? Fafe marcou o 10 de Junho de 2017 com a inauguração do Museu da Educação, em Silvares, dando estupenda serventia ao recuperado edifício da centenária Escola Deolinda Leite. Ora acontece que o primeiro professor desta escola deverá ter sido exactamente o meu bisavô (situemo-nos nos anos de 1892 a 1894), sendo certo que não parou por lá muito tempo - o que me faz lembrar uma pessoa que conheço muito bem. Ano e meio, se tanto, e já o "Sr. Lindolpho Von Doellinger" manifestava a sua "vontade férrea" de mudar de ares para "abrir uma escola particular denominada Santa Virgínia, em Fafe, por insistência de muitos pedidos de vários seus amigos", segundo leio num documento do sítio do Museu das Migrações e das Comunidades.
Outro por acaso fez-me descobrir que, provavelmente entre os anos de 1907 e 1912, o meu bisavô Lindolpho - a quem puseram uma alcunha que, por maldosa, aqui não repito, embora não me envergonhe - foi director do semanário político fafense "A Verdade". Quer-se dizer: isto anda tudo ligado, velho camarada.

P.S. - Hoje é Dia Mundial do Professor.

domingo, 11 de agosto de 2024

O melão do meu avô da Bomba

O melão era um acontecimento. Celebrava-se uma vez por ano, por alturas da Lagoa, se não estou em erro, e o mestre-de-cerimónias era o meu avô da Bomba, um adivinhador de melões como decerto não haveria outro de semelhante calibre nas redondezas, e quando por acaso não acertava, o que acontecia com lamentável frequência, a culpa era evidentemente do melão. Os melões, é que o têm, só se sabe se são bons depois de abertos: o meu avô nunca se enganava, os melões às vezes é que não correspondiam...
Ia-se à Lagoa por tudo e mais alguma coisa. Ia-se para pôr a santa na cabeça, para fazer a barba e cortar o cabelo nos barbeiros abancados debaixo das árvores do largo em frente ao santuário, ia-se para ver o ambiente, para apanhar icónicas borracheiras, para fazer compras escusadas, para ouvir as bandas de música, para ver a procissão, para dar um pezinho de dança, para cantar ao desafio, ia-se para empernar e apalpar rabos e mamas, ia-se por ir ou simplesmente para andar à pancada, ia-se apenas para apartar um melão, numa fugida, e era esse, enfim, o caso do meu avô da Bomba.
Em casa, nos Bombeiros, eram chamados os maiores especialistas em melão de Fafe, isto é, os três ou quatro melhores amigos do meu avô, os do costume, os mesmos que também eram os maiores especialistas em canários e pintassilgos de Fafe. A minha avó punha a mesa como um altar, só para homens. O melão ao meio, resplandecente e prometedor, qual sacrário por revelar.
Fazia-se silêncio. Sentia-se uma certa comoção na sala. Como seria este ano? O meu avô tomava a faca num gesto largo, teatral, levantava-se, suspirava e abria o melão. Oh!... Havia uma primeira reacção, à cor, ao sumo, ao cheiro, eram peritos realmente, abanavam a cabeça, reviravam os olhos, trocavam monossílabos lá de entendidos, e seguiam para a prova propriamente dita, da boca para dentro, e que sim senhor, e que nem mais cedo nem mais tarde, maduro no ponto, apimentado, uma especialidade, um assombre, uma primeirinha, abençoadas mãos que o souberam escolher.
O meu avô ficava num sino, agradecia os encómios, explicava a técnica, desvendava o segredo, exultava de falsa modéstia e, sem mais nem menos, aproveitava para contar as suas duas anedotas. Era sagradinho. Desde que não soubesse descaradamente a botefa, o melão do meu avô da Bomba era sempre um sucesso, os elogios dos velhos expertos estavam garantidos e todos os anos o melão deste ano era ainda melhor do que o melão do ano passado. 
O único problema era a despesa. O meu avô passava a merenda inteira a chorar os quinze merréis que dera pelo estupor do melão, a ver se alguém se chegava à frente com qualquer coisinha para a ajuda ou então para ter pé para cobrar aos amigos pelo menos a pinga de vinho que acabara de lhes oferecer...

P.S. - Publicado anteontem no meu blogue Tarrenego!, assinalando o Dia Internacional do Melão.

domingo, 21 de julho de 2024

Tomai e comei todos...

Nos preguiçosos semáforos do frequentadíssimo cruzamento de Valença, na Estrada Nacional 13, como quem vai mas não vai para a estação da CP, dois indivíduos vestidos à empregado de mesa distribuem panfletos aos carros que param desprecatados e de vidros abertos. À empregado de mesa, quero dizer, sapatos desengraxados, calças pretas sebosas e camisas que parece que já foram brancas. São propagandistas, angariadores, embora não aparentem. Os panfletos com letras azuis e tamanhos desaparelhados fazem reclame a um restaurante, a uma churrasqueira, ou mais concretamente a um "asador", como lá diz em título garrafal, e justamente "asador" ainda que o estabelecimento se localize em pleno território nacional, a largos três quilómetros da fronteira com Espanha e "com amplo parque de estacionamento", mas é assim que as coisas são. E uma coisa desta categoria haveria de ter dado imenso jeito no tempo em que o meu avô da Bomba organizava sensacionais excursões fafenses ao Alto Minho, dois-dias-dois, e se fosse a Fátima eram três, porque Portugal era realmente muito longe de si próprio.
Duas das principais especialidades da casa panfletariamente publicitada são o "pollo na brasa" e a "costilla de cerdo". Para além dos mais emblemáticos pratos da cozinha tradicional portuguesa, do cozido e da picanha aos diversos bacalhaus e pescada cozida com todos, passando pelo cabrito, pelo leitão, pela vitela, pelo arroz de tamboril e pelo polvo, e com capacidade para 400 - sim, quatrocentas - pessoas, tem também "francezinhas, pizzas e hamburguers". É a promessa de todo um mundo, posto que regional e com ar condicionado. A quem se apresentar com o papelinho na mão, o imenso restaurante diz que regala "una botella de viño para levar p/ casa".
Enquanto isso, duas da tarde, o sol a pique nos semáforos do cruzamento cosmopolita, um dos dois emissários do "asador" farto, generoso, climatizado, bilingue e extraordinário, por acaso o mais velho dos evangelizadores gastronómicos, abre um pequeno saco se papel castanho que trazia no bolso das calças e rapa de um lanche já encetado. Dá uma, duas dentadas e volta a guardar a sande pré-fabricada e dura no saco gorduroso e nas calças idem. Limpa a boca com as costas da mão, sacode as migalhas da camisa suada e continua a distribuir papéis. Assim, a seco.

P.S. - Hoje é Dia da Junk Food.

sábado, 13 de julho de 2024

Portugal gaiteiro e excursionista

Foto Tarrenego!
O meu avô da Bomba jurava que nunca pôs nem nunca na vida poria pé na praia. Que era muito sol ao desamparo, areia demais para a sua camioneta. Queixava-se: a água estava constantemente molhada e, ainda por cima, salgada. O meu querido avô era "uma pessoa muito doente" e precatada quanto ao sal. Portanto, o sol e o sal. "Se ainda ao menos houvesse a sombrinha de uma árvore", dizia, molageiro, aí que contassem com ele nem que fosse só para a soneca da tarde. Mas o meu avô era um exagerado, um mentirosinho sem tenção de ofensa - e aquela jura eu sabia que era a mangar.
Para o avô da Bomba, como para todo o fafense que então se prezasse, a palavra praia queria dizer Póvoa de Varzim. Exactamente. Ir à praia e ou ir para a praia (conceitos que importa diferençar) era ir à Póvoa ou ir para a Póvoa, via Famalicão. E no entanto o meu avô conhecia também satisfatoriamente os longínquos areais de Ofir, da Figueira da Foz e da Nazaré, o que já não era brincadeira! E de onde é que lhe vinha esta extraordinária mundivivência, este cosmopolitismo fafense tão antes do tempo? Pois bem: o meu avô organizava excursões - dois dias ao Alto Minho, com pernoita em Viana do Castelo, dentro do autocarro, no Largo da Agonia a esbordar de camionetas e parolos como nós, e umas senhoras cá fora a fazerem café de cafeteira em máquinas a petróleo, à luz do petromax até que o sol nascesse. Três dias a Fátima, pelo 13 de Maio. Ano sim, ano não. Partida e chegada no quartel dos Bombeiros, sempre, então na Rua José Cardoso Vieira de Castro, ao lado da garagem do Zé Bastos e entre os dois palacetes. Com as estradas que tinha, Portugal era naquele tempo um país imenso. Ir de Fafe aos Arcos de Valdevez ou a São João da Madeira, por aquela altura, era como embarcar por engano numa expedição de Júlio Verne ao fim do mundo. Agora imaginem uma viagem praticamente de circum-navegação com escala no Portugal dos Pequeninos e no Mosteiro da Batalha, e com procissão de velas e tudo. Era um verdadeiro acontecimento, um marco de vida!

O meu avô era um videirinho, já aqui contei. Tinha casa e salário de quarteleiro dos Bombeiros, não sei se era muito ou pouco, mas não perdia oportunidade de fazer dinheiro extra no que lhe estivesse mais à mão: o tasquinho na cave do quartel, os tremoços, os bolinhos de bacalhau e o vinho na Festa da Bomba, a aguardente e o vinho, sempre o vinho, nas sessões nocturnas do cinema ao ar livre na parada das traseiras, muito antes de a sétima arte descer ao campo de futebol, a banca de sapateiro por baixo das escadas que subiam para o salão de festas, umas refeições especiais encomendadas por um certo grupo de amigos, respeitosos admiradores das mãos de ouro da minha avó para a cozinha. Uma vez há mais de cinquenta anos o papa Paulo VI veio a Fátima e pouca gente tinha televisão em casa. No salão dos Bombeiros foram montados um projector e uma tela para a transmissão em directo e em "ecrã gigante", com entradas a pagar. A sala encheu, o dinheiro da receita revertia naturalmente para a Associação Humanitária, mas de certeza que o avô também conseguiu sacar dali algum, nem que fosse a vender rebuçados para a tosse ou cascas de amendoins...
Ora é aqui que encaixam as excursões, que os candidatos a excursionistas pagavam em suaves prestações semanais desarriscadas nuns cartõezinhos que o meu avô mandava fazer na tipografia. Isto para aí durante um ano. O avô da Bomba fazia a cobrança aos sábados ou domingos de manhã, não sei precisar. Ia de motorizada e às vezes levava-me, primeiro numa Florett e depois na Lambreta, uma Vespa azul, antes e depois de haver sentidos proibidos nas ruas de Fafe. Para o meu avô nunca houve, o caminho foi sempre o mesmo e tinha sempre razão quando lhe apitavam ou gritavam para não ir por ali. Eu, nem pio...

(A Florett tem muito que se lhe diga em Fafe, era um veículo de pecado, mas por ser verdade aqui declaro que o meu avô nunca foi dado a essas actividades por assim dizer extracurriculares. A Florett calhou-lhe, e só isso...)

Mas as excursões. Eram viagens épicas, cheias de cheirinho bom a merendeiro e muitas paragens para "mudar a água às azeitonas", enjoos e borracheiras de caixão à cova. Cheiravam também a gomitado, a naftalina, a sapatos novos, a botas ensebadas de fresco, a chulé, a urina, a tabaco, a suor, a desodorizante Lander, a perfume barato, a brilhantina, a laca, a mundo. A coberto da noite soltavam-se uns traques enfeitados com risinhos solertes que ajudavam à festa. Era uma convívio muito grande. A camioneta avariava, pessoas perdiam-se. Cantava-se o "Treze de Maio", o "Queremos Deus" e "O carrapito da Dona Aurora". Rezava-se o terço ao passar a Ponte de Fão, sobre o rio Cávado, porque constava que a estrutura estava a cair de podre. Morreríamos todos muito bem - iríamos para o céu, se Deus quisesse, embora o grupo excursionista do meu avô se chamasse, com todo o mérito, "Grupo Excursionista "Os Arrebenta Pipas" - Fafe", assim tal qual, num pano hasteado por dentro no vidro traseiro da camioneta. Na Póvoa as mulheres arregaçavam saias e combinações, os homens arregaçavam calças e ceroulas e os miúdos ficavam em cuecas ou em pelote, consoante a idade, e todos se agarravam com quanta força tinham à grossa corda que ligava o mar ao areal, brincando aos sustinhos e trambolhões de felicidade histérica ali no sítio onde o mar enrola na areia, que também se cantava.
Sei disto tudo porque estive lá. Que me lembre, fui uma vez a Fátima e outra ao Alto Minho, esta ainda com o meu pai. O meu irmão Lando ainda não tinha nascido. Eu, o Nelo e a Nanda queríamos ir sempre, mas não podia ser. O meu avô não dava borlas, nem aos netos. (Na verdade, o meu avô não dava nada a ninguém. Isto é: dava os bons-dias mas pedia recibo com número de contribuinte.) Ia portante só um, e no colo da mãe, mais do que isso seria prejuízo.
O meu pai, que gostava de fazer rir a minha mãe, dizia aos dois que ficavam: "Não é preciso chorar, vós também ides. Na sombra..."

Tanto relambório para chegar aqui: herdei do meu avô o horror à praia em dias de sol e gente, mas tenho a árvore que ele reclamava. Uma árvore na praia. Encontrei-a aqui em Matosinhos, mesmo ao pé da porta, encostada à esplanada do Lais de Guia. Passo por lá todos os dias e vejo o avô à sombrinha, com os pés mansamente enfiados na areia morna. Gosto de o ver assim, peço-lhe a bênção e beijo-lhe a mão. Sossego as saudades. O avô da Bomba era molageiro e videirinho, forreta do piorio, mas é meu.

P.S. - A terceira aparição de Fátima ocorreu no dia 13 de Julho de 1917.

sábado, 4 de maio de 2024

O meu avô sabia duas anedotas

O meu avô da Bomba tinha a mania de contar anedotas e contava-as muito bem - achava ele. Eram duas. Contava-as sempre. Nem que não lhe pedissem que as contasse, nem que lhe pedissem que não as contasse. Ele contava-as, contra tudo e contra todos, abrilhantando casamentos, comunhões e baptizados de família - achava ele. Eram a anedota do cu português que, apesar do negrume da noite, acabou identificado pelos Carabineros na passagem a salto para Espanha, passemos à frente, e a anedota dos Bombeiros da Póvoa. Da Póvoa de Lanhoso, desta vez, para que nos situemos.
Contava o meu empolgado avô da Bomba que, em dia de festa de aniversário da prestimosa corporação lanhosense, o respectivo comandante fez o discurso que se segue: "Minhas senhoras e meus senhores, os Bombeiros da Póvoa são os melhores do mundo. Digo mais, os Bombeiros da Póvoa são os melhores da Europa. Os Bombeiros da Póvoa são os melhores da Península Ibéria. Os Bombeiros da Póvoa são até os melhores de Portugal. Os Bombeiros da Póvoa, minhas senhoras e meus senhores, excelência reverendíssima, são os melhores do Minho, os melhores do distrito de Braga. Que não haja dúvidas: os Bombeiros da Póvoa são aos melhores da Póvoa. Vivam os Bombeiros da Póvoa! Vivam e bem hajam! Tenho dito."
E, pronto, era a anedota. Uma das duas anedotas do meu avô, a principal. E hoje é Dia Internacional do Bombeiro. Vivam todos os bombeiros do mundo inteiro!

sexta-feira, 19 de abril de 2024

A Festa da Bomba

Foto Tarrenego!
Quando eu era pequeno, Fafe tinha três grandes festas e eram as maiores festas do mundo: a Senhora de Antime, a Festa da Bomba e a cascata do Santo António na minha rua. Quanto à enormeza da Senhora de Antime, sobretudo da sua incomparável e pungente procissão, suponho que estamos conversados. Do nosso Santo António já aqui dei um lamiré, e é preciso não esquecer que até tínhamos foguetes e altifalantes que o Zé da SIF arranjava e metíamos raivinha às outras ruas todas, incluindo avenidas, rampas, quelhas e largos como o nosso. O Zé da SIF é irmão do Armando Perrinha, e eles mais o Zé Maria, que foi comando no Ultramar, a Dina e a Luísa são filhos do Agostinho Cachada e da Senhora Laura, família quase minha, vizinhos do coração e gente do melhor que pode haver. Mas as festas. Faltava a festa de anos dos Bombeiros Voluntários de Fafe - a Festa da Bomba -, e vamos a isso.

A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes do Santo António, era de arrebenta. Só de altifalantes - sempre os altifalantes! - eram dois dias, quase três, e coisa profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores: "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto. Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, havia discos pedidos - "E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da minha avó e o verde tinto do meu avô, que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro pela minha querida tia Laura, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia que afinal era a fénix renascida, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. De padiola. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam demais aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Pensava que, às tantas, a Festa da Bomba era essencialmente aquilo - aquela bebedeira geral, eucarística, redentora e uniformizada, em descompassada ordem unida. E achava bem. E quero acreditar que nunca mais na vida tive pensamentos tão acertados.

P.S. - Publicado aqui no dia 31 de Agosto de 2022. Os Bombeiros de Fafe fazem hoje 134 anos. A Festa da Bomba é amanhã.

Os reforços vinham de motorizada

Foto Hernâni Von Doellinger
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. É uma questão de marialvismo, orgulho macho. E então arrebitam e continuam a arder lampeiramente uma semana depois de terem sido decretados dominados aos microfones da CMTV, e a CMTV fica toda contente, porque a CMTV é do ramo do sarrabulho e do fumeiro - disso vive, em lume brando. Os oficiais da Protecção Civil, doutores da mula ruça porém pessoas muito honradas e de boina, que antes deste rico emprego nunca tinham posto os pés num incêndio, tiraram um curso relâmpago de Teatro de Operações, vulgo TO, Forças no Terreno, Frentes Activas, Meios Aéreos & Pontos de Ignição e gostam de dar na televisão: o mais que dizem é que os incêndios de manhã, se não estão já dominados, vão entregar-se às autoridades a meio da tarde. Os oficiais da Protecção Civil e os políticos que os pariram inventaram um novo dicionário, especializaram-se em semântica, graduaram-se em eufemística e falam muito do que não sabem.
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina e galões no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.

Quando o monte ardia, os bombeiros iam e pronto. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Tolos porém despachados e íntegros. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel.
Pelo menos em Fafe era assim, e não havia razão de queixa.

O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e, com isto do entretanto profissional, perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.

Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.

P.S. - Publicado aqui no dia 11 de Setembro de 2022. Os Bombeiros de Fafe fazem hoje 134 anos.

domingo, 7 de abril de 2024

O povo quer é sangue

Foto Hernâni Von Doellinger
Quando eu era mocico e a ambulância acudia a um desastre com a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos mais graves e raros, assistiam também ao morto. As escadas do hospital eram um palco de desgraças e caldeirão de emoções, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a casamentos, bombeiros em festa e bandas de música, palavra de honra. Eram, portanto, o sítio mais in da vila e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima ou por aqueles degraus abaixo, às vezes de cangalhas até ao chão.
Mas o espectáculo. A ambulância saía e o povo corria. O bom do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi "a" ambulância. O artigo definido é aqui propositado e certo, porque naquele tempo, dará para acreditar?, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma ambulância, uma velha Skoda vermelha que regularmente ficava sem travões no meio das descidas. Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do hospital e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? Ai que desgraça tão grande! E muitos Uis! e muitos Ais! e muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! Esqueciam-se ali no relambório, a dar água sem caneco e a benzerem-se na direcção da Igreja Nova, convenientemente ao lado, mas sem perder pitada. Vampiros mirones, iam ao sangue, queriam sobretudo molhanga, muita, vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte. Era um fartote! Uma comoção! E nas cozinhas abandonadas e sombrias, os tachos esturricando ao lume pachorrento, azul e resmungão da máquina a pitroil...

Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas do hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem a CMTV.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Saúde.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Já não há mulheres com bigode

Foto Hernâni Von Doellinger
Sempre gostei de ir a Ponte de Lima por causa do arroz de sarrabulho e dos bigodes das mulheres. Mulheres feias é ali. Feias e bigodudas. Basta um raio de sol espreitar por entre as nuvens e elas saltam todas não se sabe donde para as bordas do rio a arejar as carantonhas e respectivas piaçabas. Palavra de honra, é um espectáculo digno de ser visto. Comprar um cartucho de jornal cheio de castanhas assadas e comê-las, ainda quentes, enquanto observamos o mulherio, picadeiro acima, picadeiro abaixo, como num desfile de moda mas para bigodes fêmeos, nove pontos para aquela, treze para a das suíças, há lá melhor maneira de passar um pedaço de tarde! Não sei o que a bela vila alto-minhota tem, mas é assim que as coisas são.
Cuidado. Antes de me soltarem os cães, façam o favor de perceber que eu não disse que as mulheres limianas são bigodadas e feias. Não. O que eu digo é que, sobretudo aos fins-de-semana e feriados, elas, as bigodadas e feias, concentram-se todas ali, à beira-Lima, como se fosse um congresso de camafeus ou um concurso de feieza. Numa dessas ocasiões, eu próprio fui confundido com a cantadeira de um rancho folclórico derivado às minhas barbas. De resto, não sei de onde elas vêm, as mulheres abigodadas, nunca perguntei.

Vou a Ponte de Lima desde pequenino, desde o tempo das excursões ao Alto Minho organizadas pelo meu avô da Bomba, sobrevivente dos sete ofícios. Aqui atrasado tornei lá todo contente e tive um desgosto muito grande. A vila mais antiga de Portugal, Ponte de Lima monumental e histórica, bela, tradicional, está mais pobre. As mulheres continuam particularmente feias, honra lhes seja, mas deitaram abaixo os bigodes. Sentei-me no banco do costume, junto à vendedeira de castanhas, queimei os dedos a comê-las, mas bigodes de mulheres, que era ao que eu ia, nem um para amostra. É lamentável. Os cremes depilatórios estão a dar cabo do nosso património.
Não sei se volto a Ponte de Lima. Ainda por cima, o arroz de sarrabulho também não estava grande coisa. Mas as castanhas eram bem boas.

P.S. - Este texto, publicado originalmente no dia 2 de Setembro, assinalando o Dia Mundial da Barba, foi o quinto mais lido no Fafismos durante o ano de 2023.

sábado, 2 de setembro de 2023

Já não há mulheres com bigode

Foto Hernâni Von Doellinger
Sempre gostei de ir a Ponte de Lima por causa do arroz de sarrabulho e dos bigodes das mulheres. Mulheres feias é ali. Feias e bigodudas. Basta um raio de sol espreitar por entre as nuvens e elas saltam todas não se sabe donde para as bordas do rio a arejar as carantonhas e respectivas piaçabas. Palavra de honra, é um espectáculo digno de ser visto. Comprar um cartucho de jornal cheio de castanhas assadas e comê-las, ainda quentes, enquanto observamos o mulherio, picadeiro acima, picadeiro abaixo, como num desfile de moda mas para bigodes fêmeos, nove pontos para aquela, treze para a das suíças, há lá melhor maneira de passar um pedaço de tarde! Não sei o que a bela vila alto-minhota tem, mas é assim que as coisas são.
Cuidado. Antes de me soltarem os cães, façam o favor de perceber que eu não disse que as mulheres limianas são bigodadas e feias. Não. O que eu digo é que, sobretudo aos fins-de-semana e feriados, elas, as bigodadas e feias, concentram-se todas ali, à beira-Lima, como se fosse um congresso de camafeus ou um concurso de feieza. Numa dessas ocasiões, eu próprio fui confundido com a cantadeira de um rancho folclórico derivado às minhas barbas. De resto, não sei de onde elas vêm, as mulheres abigodadas, nunca perguntei.

Vou a Ponte de Lima desde pequenino, desde o tempo das excursões ao Alto Minho organizadas pelo meu avô da Bomba, sobrevivente dos sete ofícios. Aqui atrasado tornei lá todo contente e tive um desgosto muito grande. A vila mais antiga de Portugal, Ponte de Lima monumental e histórica, bela, tradicional, está mais pobre. As mulheres continuam particularmente feias, honra lhes seja, mas deitaram abaixo os bigodes. Sentei-me no banco do costume, junto à vendedeira de castanhas, queimei os dedos a comê-las, mas bigodes de mulheres, que era ao que eu ia, nem um para amostra. É lamentável. Os cremes depilatórios estão a dar cabo do nosso património.
Não sei se volto a Ponte de Lima. Ainda por cima, o arroz de sarrabulho também não estava grande coisa. Mas as castanhas eram bem boas.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Barba.

Bruxedos e outros medos

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao por...