Foto Hernâni Von Doellinger |
A coisa tinha o seu ritual. Esperar à porta do cinema não valia, tínhamos de ir mesmo a casa da Dona Laura, que também não era longe. Éramos para aí uns seis ou sete, às vezes menos, consoante o lado para que tinham acordado os pais de cada qual, e devíamos lá chegar pelo menos com uma boa meia hora de avanço em relação à hora de saída prevista da senhora. Chegávamos e esperávamos. Não se batia à porta, não se tocava na campainha, esperávamos apenas, calados como ratos, porque o mais pequeno ruído podia deitar tudo a perder.
A senhora saía, encarava-nos sempre com um grande sorriso e nós continuávamos sem dizer nada, nem era preciso. Púnhamo-nos atrás dela, em fila, como pintainhos seguindo a mãe galinha, e, agora que penso nisto, acho que devia ter sido uma coisa bonita de se ver, aquele extravagante grupo a atravessar o Largo da Igreja e a descer até ao Cinema, na máxima compostura e no mais religioso silêncio.
A Dona Laura entrava e nós ficávamos cá fora, bem guardados pelo Senhor Leitão porteiro, que era mau como as cobras e vestia um capote castanho, com botões dourados e gola vermelha, que até parecia um general soviético, embora na bilheteira é que estivesse o Senhor Castro, comunista, alfaiate e bom amigo.
Perdíamos os desenhos animados, perdíamos os "documentários", mas na horinha do arranque do filme a sério vinha a ordem da Dona Laura e imediatamente desatávamos a correr Cinema acima, dois andares a bater chancas em chão de soalho com escarradores, numa trovoada que quase deitava a casa abaixo, até chegarmos ao nosso sítio. Só ali voltávamos a portar-nos bem, sempre perante o olhar bondoso e compreensivo da nossa benfeitora, que, do seu camarote ao lado da cabina de projecção do Senhor Reinaldo Pires, nos lançava mais um sorriso, com o dedo de chiu sobre os lábios finos.
O nosso sítio era uma frisa e cheirava a veludo velho e tabaco. Quase que pertencíamos ao filme! O som dos altifalantes entrava-nos pelo corpo dentro, estremecia-nos, eu era do tamanho dum buraco do nariz do Maciste e tinha de me afastar para não desaparecer na caverna. Foi ali que eu conheci pessoalmente o Ursus, o Spartacus, o Ben-Hur e o Hércules e podem crer que aqueles cenários de papelão só pareciam de papelão, de resto eram mesmo a sério, e eu acreditava que era por causa do papelão que os filmes eram peplum. Eu sei, porque estive nos filmes. Fui eu que ajudei o Sansão a dizer "morra Sansão e todos os que aqui estão", para eu e ele nos vingarmos da traidora da Dalila e acabarmos com o filme logo ali, porque aquilo não se faz, e não me venham dizer que ele não disse nada disto. Dissemos!
Perguntassem ao "Sandim". Ele é que ia à estação de comboios "buscar os artistas", num carrinho com rodas de madeira. Mas não trazia os beijos todos. Não cabiam nas bobinas, decerto. As cópias dos filmes eram velhas, cheias de cortes, no melhor e mais quentinho passavam sempre à frente. Como o Jornal da Igreja Nova trazia uma sinopse das películas do fim-de-semana, nós achávamos que o Senhor Arcipreste fazia um visionamento prévio e culpávamo-lo por aquele imperdoável acto de censura. Mal eu sabia que ainda havia de ser feito um filme sobre esta minha história, mas em italiano.
No meu Cinema, no tempo em que o que eu queria era crescer para ver filmes "para maiores de 17", havia também umas senhoras da Rua de Baixo e de Santo Ovídio que faziam de arrumadoras e tomavam conta do buffet, onde serviam gasosas, laranjadas, café de cafeteira e rebuçados mulatos. Ao intervalo, enquanto o ardina entrava plateia dentro com a edição do Norte Desportivo de domingo à noite, já com os resultados e relatos dos jogos todos, os espectadores recebiam umas senhas para irem lá fora tomar café em condições.
No meu Cinema liam-se as legendas em voz alta para os analfabetos que não eram poucos. O respeito e a, como hoje se diria, segurança eram zelados pelo Senhor Barroco, pelos Senhor José e Senhor António do Santo e pelo Senhor António Quim, que eu sempre confundi com o outro, o de "Zorba, o Grego". Foi na companhia desta gente que eu cresci. Mal comecei a ganhar, passei a ter bilhete reservado para todas as sessões e, depois do 25 de Abril, até vi o "Último Tango em Paris". Duas vezes. Seguidas, olha o espanto!
Deixei Fafe no início da década de 1980 e o meu Cinema entrou em ruína. Pensei que outros tivessem ficado a tomar conta, mas enganei-me. Depois de 25 anos de inactividade, muita politiquice e um impressionante trabalho de recuperação, o Teatro-Cinema de Fafe reabriu portas em 2009, sem Maciste, sem Sansão nem Dalila, sem o Senhor José do Santo e sem a Dona Laura Summavielle. Já lá não estão, já cá não estão. O novo Teatro-Cinema de Fafe, que só conheço por fora, funciona agora como entreposto cultural camarário. O que é certamente aplaudível e tem muito mais cagança - mas não é a mesma coisa.
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