Havia uns tipos com piada, em Fafe. Piada fina e piada grossa, conforme. Contadores de anedotas, abrilhantadores de saraus de sociedade recreativa, animadores de café, pregadores de partidas, havia-os com fartura naquele tempo. E eram uns pontos!
As anedotas vinham de fora, regra geral. Fafe não tinha então produção própria, quero dizer, os nossos piadistas eram mais divulgadores do que criadores. As redes sociais funcionavam boca a boca, como a respiração salva-vidas, e as novidades humorísticas chegavam até nós trazidas pelos vendedores ou caixeiros-viajantes que visitavam regularmente o comércio e a indústria locais. Debitar umas larachas, se possível frescas em ambos os sentidos - "já sabe a última?, é de bolinha!" -, fazia parte do ofício. Primeiro as anedotas e só depois a nota de encomenda, se corresse bem, embora fosse tudo dar ao mesmo.
As excepções talvez fossem o António Augusto Ferreira e o extraordinário Zé Manel Carriço. O Tónio Augusto, pai do omnijornalista Carlos Rui Abreu, o qual, diga-se de passagem, é o melhor relatador de futebol português de hoje em dia e parece que Fafe ainda não tomou sentido disso, o Tónio Augusto, era aqui que eu ia, abastecia-se de anedotas em Guimarães, onde por aquela altura já se encontrava estabelecido. A loja chamava-se T111, se não estou em erro, suponho que derivado à sua localização, no Toural, e ao número da porta, 111, ali a meia dúzia de passos da Basílica de São Pedro, cujos sinos tocavam, e não sei se ainda tocam, o Hino de Guimarães às prestações de quartos de horas. Quem também tocava o Hino de Guimarães, mas de uma ponta à outra e apenas uma vez por ano, era a Banda de Revelhe quando ia às Gualterianas e fazia a rompida na cidade velha, em frente à Câmara Municipal, e eu sei de cor a música do Hino de Guimarães e esta parte, sou obrigado a admitir, não abona nada a meu favor.
E então o que é que se segue? O Tónio Augusto todos os dias trazia de Guimarães anedotas ainda vivinhas, praticamente por estrear, e, quiséssemos ou não, contava-as pelas noites dentro do Verão fafense, na "esplanada" do velho Peludo, temperadas com fininhos e tremoços. Depois, terminada a função, metia-se no carro e ia para a Póvoa, ter com a família, e só lhe ficava bem.
A piada era fácil para o Tónio Augusto, porque ele era cómico de nascença. Ele era, dir-se-ia hoje, um predestinado, um Cristiano Ronaldo da pilhéria, um Lionel Messi do chiste. Uma vez, jogava o Tónio Augusto nos juniores da AD Fafe, no Campo da Granja, e rachou ou racharam-lhe a cabeça. Encostou ao banco, que era mesmo um banco, em madeira, corrido, ao fundo dos cinco réis de bancada, e o massagista, talvez o João Americano, tratava de enfiar-lhe uns agrafos no lanho escarrapachado e sanguinolento (não tenho a certeza se não estaria mesmo a ser cosido), mas ele não deixava, queria voltar ao jogo. Barafustava um, ralhava o outro, um a puxar para a frente e o outro a puxar para trás, escangalhados como parelha de bêbados matinais. Era mesmo de rir, parecia cinema mudo mas já em sonoro e a cores...
O Zé Manel Carriço era outra coisa. Ele não contava anedotas. O Zé Manel contava as suas histórias, verdadeiras mais ou menos, episódios protagonizados por ele próprio, mas cenas tão improváveis, tão esdrúxulas, tão gagas, com um fim tão inesperado e teatral, e tão bem contadas, que passávamos noites inteiras naquilo, só a ouvi-lo. E o Zé Manel era o primeiro a rir-se do que dizia, e ria-se sonoramente, afagando a pêra elegante, e o seu riso era como um fósforo em mato seco. E nós à volta éramos um incêndio de gargalhadas, incontrolável. Os mesmos empregados do Dom Fafe que, da uma às cinco da manhã, pediam, de meia em meia hora, "Ó Sr. Zé Manel, por favor, precisamos de fechar, olhe a polícia, temos de ir dormir!", às seis já só queriam "Ó Sr. Zé Manel, conte mais uma!"...
Depois tínhamos os "profissionais", o Landinho Bacalhau, o antigo, e o Zé Fala-Barato, os nossos microfónicos apresentadores de espectáculos, paus para toda a obra, cheios de categoria, e sempre com uma chalaça na ponta da língua. E tínhamos os pontos avulsos. As malandrices do Valença, as aventuras do Pimenta, as tiradas do Serafim d'Eiteiro, as saídas do Moisés, o Toninho da Luísa, que eu gostava de imaginar DaLuísa por causa do DeLuise americano, o Aníbal Carriço, o Zé do Registo em dias bons e fora do horário de expediente, o Zé Maria Sapateiro, o Sr. Lem, o Rates da Fábrica, o Manel Fogueiro, o Toninho do Café Chinês, o Aurélio Funileiro, o Chico Americano, o Tónio da Legião e o Aristides Carteiro, amiúde o Sr. Aristeu da Loja Nova e até o Joãozinho Summavielle, que aparecia pouco e só à noite mas não deixava os seus créditos por mãos alheias.
Estávamos, com efeito, muito bem servidos. Aliás, sobre toda esta esplêndida plêiade de bem-dispostos benévolos e geralmente militantes, tínhamos também a nossa conta de reconhecidos gabarolas e mentirosos, e Fafe era realmente abundante. Mentiam tanto e tão mal, patranhavam tão estrambolicamente os nossos queridos aldrabões, que acabavam por ter piada! Eram uns tontos, mas também uns pontos...
P.S. - Hoje é Dia Internacional do Ponto.
QUE MEMÓRIAS! Conheci-os todos, ou quase, mas o melhor contador de anedotas que me recordo era o mui saudoso Rui Araújo. Era engraçado até ao introduzir a piada. E o Tónio da Luísa, mas desse eu sou meio bias para falar. Aliás, esses referidos chamavam-me "ó Luísa", ou então "Teixeirinha" e só o Landinho me tratava por Pedro. Dantas só o Zé Manquinho, que recusava a chamar-me Pedro. E muito menos Miguel, que só no Brasil começou a acontecer.
ResponderEliminarO Rui Araújo, falas bem! Chegámos a ser unha com carne, ele e eu, no tempo de moçarada. Anos mais tarde, quando às vezes nos encontrávamos por acaso no Peixoto, púnhamos o riso e a amizade em dia com as liornas que contávamos um ao outro...
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