terça-feira, 21 de maio de 2024

Chá prò velhote!

Duas mulheres com feições e conversa orientais, deito-me a adivinhar. Provavelmente chinesas e aparentemente mãe e filha. Ouço-as antes de as ver. Estão agachadas entre os arbustos do Parque da Cidade, do Porto, em posição de necessidades. Desolho num relâmpago, cheio de vergonha e culpa por ter olhado, e fujo dali para fora aos solavancos o mais depressa que posso. As sapatilhas que herdei do meu filho fazem-me bolhas nos calcanhares e na planta dos pés. Mancam-me. Já é o terceiro par que recebo assim, sorrateiramente cilicioso, começo a desconfiar que é de propósito.
Dia seguinte à mesma hora lá estão elas outra vez. As duas outra vez aninhadas, movendo-se de cócoras pelo meio do restolho como melros e, alto e pára o baile, isso já me autoriza a não desviar o olhar. Isso de se moverem, digo bem, mais o facto de cada uma delas arrastar consigo de vez em quando uma daquelas enormes sacas de supermercado que custavam 50 cêntimos nos dias em que não eram dadas. Entretanto acabaram-se as borlas.  Aproximo-me. "É pala chá. Só pala chá. Só chá!", diz-me a mulher mais velha, incomodada e, parece-me, receosa da minha curiosidade.
Percebo. As duas mulheres com feições e conversa orientais catam flores de madressilva, que já esbordam das sacas de supermercado. Voltam lá todos os dias, vejo-as pelas cinco da tarde, às vezes com reforços, depenando muros anões na zona mais ocidental e marítima do parque, ali pelos arredores do Queimódromo, do Castelo do Queijo e do Edifício Transparente.
Consulto o Dr. Google, que me explica tudo. A flor da madressilva é altamente valorizada na medicina tradicional chinesa, que lhe reconhece propriedades adstringente, antibacteriana, antifúngica, anti-séptica, antiespasmódica, antitumor, diaforética, diurética, expectorante, febrífuga, hipoglicémica, laxante e refrigerante. A madressilva, mãe de todas as curas, usa-se para tratar a asma, o colesterol alto, a congestão linfática, a diarreia, a disenteria, a dor de cabeça, a dor de garganta, erupções cutâneas, febre, gripe, inchaços, infecção bacteriana, intoxicação gastrintestinal, laringite, queimadura do sol, sumagre-venenoso, tosse e úlceras. Se lhe conseguirmos acrescentar as unhas encravadas a sida e a covid, como chegou a ser sugerido na China, estaremos então na presença de uma panaceia ao nível da nossa famosa banha da cobra, misteriosamente desaparecida das feiras mas ainda à venda, que eu bem sei, e eu sou praticamente um especialista no assunto.
Por outro lado: a avaliar pela posição em que é apanhada, o mais certo é que a flor da madressilva faça muito mal às costas. E vieram-me à memória os curandeiros, talhadores e endireitas de Fafe e arredores, mulheres e homens honrados e competentes, abençoados por saberes antigos e generosos aliviadores de corpos e espíritos. O bruxo chegou muito depois...
Não sou dado a chás, tirando o chá de parreira e agora, com a velhice, infusões de barbas de milho e pés de cereja, para o estupor da bexiga. Mas o caso: a mulher mais velha, sem que eu lhe tivesse perguntado, fez questão de dizer-me, como se estivesse a defender-se de uma acusação, que era "só pala chá". Mas porquê? A coisa também se fuma, será? Hummm!... Vim-me embora com essa pedra no sapato. E era escusado. As putas das sapatilhas já me dão mau andar que chegue.

Contava-se. Havia umas irmãs em Fafe que saíam ao café para tomar chá - gente fina, conhecida e provavelmente falida. Era um chá para as duas, ambas as manas de mindinho espetado, requintadas, naftalínicas, vagarentas, excêntricas, assoprando cerimoniosamente, lábios em biquinho, uma beberricando pela chávena e a outra pelo pires, combinação lá entre elas e o velho empregado do café. O chá, constava, era vinho branco...

O Sr. Fala-Barato, pai, era um homem imponente e tomava chá. Tomava chá no Café Chinês, porque isto anda tudo ligado. O Sr. Fala-Barato, que também era um homem antigo e sábio, chegava lentamente, sentava-se com todos os vagares e uma das filhas, via de regra a mais nova, e pedia, muito simplesmente: - Chá prò velhote!
Às vezes, em dias talvez de melhor disposição e superavit de autoestima, o Sr. Fala-Barato, que também tinha a sua piada, investia um pouco mais nas palavras e dizia: - Chá prò velhote, que o velhote merece!...
Eu era pequeno, mocico de escola, ouvia tudo e aprendia muito bem. Tomei conta da frase e ainda hoje lhe dou uso, sem nunca esquecer a fonte. Os poucos que partilham a mesa comigo e já tantas vezes me ouviram dizer, quando reabasteço, "Um copinho prò velhote, que o velhote merece", ficam agora a saber de onde é que me saiu a ideia.

P.S. - Hoje é Dia Internacional do Chá.

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