Foto Hernâni Von Doellinger |
A minha mãe não foi sequer à escola. Mandaram-na para criada de servir aos sete anos de idade. Serviu famílias importantes em Fafe, mas ninguém se lembra ou faz caso, a minha mãe era um criança.
A minha mãe casou aos 18 e ficou viúva aos 33. Viúva e com quatro filhos evidentemente menores. Era tempo do fascismo - sim, do fascismo -, da pobreza sufocante e do opróbrio, da reprovação pública, porque a má-língua sobre vizinhos ou conhecidos era o passatempo que havia antes dos reality shows da TVI e das notícias de faca e alguidar da CMTV. Naquele tempo de cinza, ser-se nova e viúva era uma desgraça, mas também, socialmente, um defeito, uma marca na testa para toda a vida. A minha mãe passou a ser oficialmente a Viúva da Bomba, para que não lhe viessem ideias. E no entanto, sozinha, fez de nós quatro as pessoas que somos, à sua imagem e semelhança, vertebrados e moralmente limpos, gente digna e séria, respeitadora e respeitada, menos eu, que dei no que dei e, com esta idade, já não tenho remédio.
Como é que a minha mãe conseguiu? Com muita muita canseira, com roupa lavada para fora em tanques de ricos, na poça do Santo ou no tanque do Matadouro, com camisolinhas e casaquinhos de lã feitos por encomenda, primeiro à mão e depois à máquina, com lágrimas tantas que eu bem as via por mais escondidas que fossem, com os tostões contados sete vezes ao dia, com os meus irmãos mais velhos - a Nanda e o Nelo - a terem de ir trabalhar ainda crianças para que eu e o Lando, os mais novos, pudéssemos "estudar e ser alguém na vida". E sermos alguém na vida por eles, em nome deles, de todos, porque nós os cinco éramos apenas um, assim é que a nossa mãe nos queria, como os mosqueteiros, ainda nem fazíamos ideia do Intermarché, embora eu já soubesse do Alexandre Dumas e do d'Artagnan.
Resultado: os meus irmãos são umas jóias, foram e são sempre os melhores naquilo que fizeram e fazem na vida, que era o mínimo que a nossa mãe nos exigia, o Nelo e a Nanda afinal também são "alguém" mesmo sem "estudos" e, quer-se dizer, só eu dei para o torto porque nestas coisas de família é realmente imprescindível a excepção que confirme a regra, e portanto resolvi sacrificar-me pelo bem comum.
A minha mãe fazia das tripas coração e da massa com fressura um pitéu. O dinheiro não chegava e então passou a tomar conta de crianças. Isso, a minha mãe tomava conta dos meninos dos outros, era "ama" disputada, havia lista de espera, metiam-se cunhas, empenhos para que ela aceitasse esta ou aquela criança. Lembro-me do Miguel, da Guidinha, do André, da Xaninha, da Susana, do Ginho, do Miguelinho, e esqueço-me indesculpavelmente de outros, e os meninos chamavam à minha mãe, cada qual à sua maneira, "mãe Xandrina", "mãe minha" (haverá forma mais bonita de chamar alguém?) ou simplesmente "bozinha", porque os netos também lhe passaram pelas mãos. A querida Guidinha, agora casada e também mãe de um rapaz já adulto, ainda hoje chama "mãe Xandrina" à minha mãe e a mim chama-me "tio Nane". E eu gosto muito.
Na Rua do Assento, na casinha de pedra, minúscula, imensa e mágica, a minha mãe chegou a olhar por nove meninos ao mesmo tempo. Como se fossem também seus filhos. Olhava por eles para olhar por nós. Era severa e amorosa, dava-lhes, de acordo com a exigente a cartilha que lhe corria no sangue, o pão e a educação, tinha ali uma espécie de infantário, restrito e de alta qualidade, e se fosse hoje se calhar ia presa.
Sem comentários:
Enviar um comentário