terça-feira, 16 de agosto de 2022

Eu, as Grilas, as Turicas e um par de mamas

Foto Hernâni Von Doellinger
Eu também fui preso antes do 25 de Abril. Sim, no meu tempo de estudante, em pleno turbilhão da crise académica de 1969, andava na quinta classe e ia para a Escola da Feira Velha quando fui detido pelo polícia, preso pelo cachaço. (A quinta classe que fiz com o professor Fernando - "Conhé" para os alunos -, e não há engano, houve realmente um tempo, se bem que breve, em que a quinta e a sexta classes eram o liceu dos pobres). Mas o meu o crime, é isso que querem saber, não é? Pois bem: achei um bocado de giz no chão e escrevi "Senhoras Donas Grilas" na parede da casa das Grilas propriamente ditas. Há horas do diabo e o cívico estava lá, pontual e flagrante, mesmo atrás das minhas costas. Apanhei um susto que ainda hoje tremo, e digo isto sem peneiras: ia-me borrando todo.
A história precisa de ser melhor contada, não precisa? Vamos lá então ver se sei, e por partes:

Primeiro, para que nos situemos, é essencial não confundir as Grilas com as Turicas, erro crasso e muito comum entre os especialistas locais. As Grilas eram mesmo ao lado do prédio do Café Chinês, que então se construía. Irmãs, muito velhas no meu critério de criança, solteironas, desgrenhadas, professoras e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado, e quando meteram telefone em casa ligaram ao meu avô a perguntar se o telefone dos Bombeiros "também tocava em português" como o delas. Eu morava ali à beira, ao dobrar da esquina, no Santo, e as senhoras até gostavam de mim. Mesmo depois da tratantada que lhes perpetrei e que graças a Deus nunca lhes chegou aos ouvidos. Sabiam que eu era filho da "viúva da Bomba" e isso valia muito em Fafe. Quando eu passava, as Grilas diziam-me sempre qualquer coisa simpática, só com a guedelha grisalha e o nariz de fora, e uma vez deram-me um santinho. Obviamente não mereciam a traição que lhes cometi...
Isto as Grilas. Agora as Turicas, um casarão na mesma Rua Monsenhor Vieira de Castro e do mesmo lado, direito para quem desce para o Picotalho ou para a Recta, mas depois do cruzamento dos tascos do Paredes e do Zé Manco, nem 50 metros de distância entre umas e outras, e daí a lamentável e inexplicável confusão numa terra tão prenhe de historiadores. As Turicas eram também irmãs. Costuravam. Pequeninas e idosas, resmungonas e prendadas para os mais delicados lavores, faziam renda de bilros sentadas num banquinho junto às enormes portadas que davam para a rua. Tinham uma loja mais antiga do que elas e que cheirava a um mofo muito bom. Vendiam botões e tafetás, fitas de nastro, fechos, linhas, lãs, chitas, agulhas e flanelas. Vendiam também vinho ao garrafão nas traseiras do estabelecimento. As boas senhoras tinham uma "criadita" que abria a porta a quem ia comprar vinho. E a miúda tinha umas mamas. A minha mãe mandou-me ao vinho e eu pedi à rapariga se me deixava apalpar-lhe as mamas. Ela não deixou e eu apalpei. As mamas eram de papel e foi um desgosto muito grande.

Mas que se segue: o prédio do Café Chinês estava a ser construído e as Grilas, que já lá moravam resvés, queixavam-se das obras e dos operários. Queixavam-se do barulho e da insegurança, de tudo e de nada, barafustavam que a casa ia abaixo, era berraria o dia inteiro, guinchos de um lado e palavrões do outro, que até foi preciso chamar a Polícia. A Polícia veio e ficou. Dias e dias. Um agente sempre a rondar e a deitar os olhos ao conflito durante as horas de expediente, não fosse a coisa passar a vias de facto.
Ora, foi exactamente o desprezo por este pequeno pormenor que me tramou. Quando o toco de giz me apareceu aos pés a tentar-me e eu não resisti a apanhá-lo e a sarrabiscar "Senhoras Donas Grilas" na parede das ditas, palavras não eram escritas e já estava a ser levantado por um potente garibalde que me agarrou em tenaz pelo cachaço e perguntou - O que é que o senhor está a fazer?
Olhei para trás e o garibalde era um polícia. O senhor era eu mais os meus onze anos, o que me fez desconfiar que estava metido em caso sério. Com o giz na mão e a última perninha do "s" final ainda a fumegar, respondi - Nada...
(Ainda hoje acho que respondi com grande categoria.)
E o polícia - Onde é que o senhor mora? E eu, que não queria a minha mãe metida na ocorrência, até porque era melhor para mim - Moro longe. E ele - Então, vamos para a esquadra.
(Para a esquadra? Mais polícias? Isso é que não me dá jeito, pensei, rápido como um fósforo, derivado ao que se ouvia dizer. Porque a Polícia daquele tempo... bem, a Polícia daquele tempo vestia uma farda de terilene cinzento, que era a cor da Autoridade e do País. Os carteiros também vestiam de cinzento, mas em cotim. A outra diferença é que os carteiros eram nossos amigos.)
E eu - Enganei-me, senhor polícia, desculpe, moro já aqui no Santo...
O polícia deixou-me finalmente aterrar, empurrou-me para casa, ainda com a tenaz no meu cachaço, o João do Zé Manco viu, veio a correr acudir por mim e foi à frente avisar a minha mãe de que eu não tinha feito mal nenhum. Fiquei a dever uma ao João. Dessa vez a minha mãe não me bateu. E ainda agora me diz que, para além da cunha do João, levou em devida conta o facto de eu ter escrito "Senhoras Donas Grilas" e não "Grilas" simplesmente. "Senhoras", evidentemente. Para a minha mãe, respeito e educação acima de tudo, mesmo em plena patifaria.
Fui condenado a limpar a parede com um pano molhado, cumpri pena e segui para a escola, de coração a mil e tremente como varas verdes. As varas verdes eram também uma especialidade da minha mãe e costumavam deixar marca. Livrei-me de boa...

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