terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Ligava-se o rádio e abria-se o pano

Foto Hernâni Von Doellinger
Todas as noites. A nossa mãe pegava em nós - na Nanda, no Nelo e em mim - e colocava-nos de joelhos e mãos postas, virados para a parede. Não era castigo, era amor. Na parede do quarto da nossa mãe, por cima da cama de casal, estava pendurada uma daquelas gravuras do anjo da guarda à la menino da lágrima. Rezávamos: "Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia."

(Morávamos na casinha amarela do Santo Velho. O quarto da nossa mãe, logo à entrada, era também a sala, a urgência, o consultório das aflições e desgraças da rua inteira. A minha mãe curava. Cura. Eu era então o mais novo e os mimos eram todos para mim. Os mimos que a pobreza honrada permitia. Éramos remediadamente felizes, mas ríamo-nos muito, graças a Deus. Umas senhoras da Granja que trabalhavam no Posto Médico e passavam pelo nosso Santo Velho diziam que eu "até a chorar era bonito" - contava-me a minha mãe, cheia de vaidade, fazendo-me festinhas nos caracóis, e eu gostava. E eu gosto, mãe. Quando a minha mãe se zangava comigo - e eu enchia-a de razões para isso -, dizia-me que eu tinha sido deixado lá em casa pelos ciganos...
Depois nasceu o Lando e acabaram-se-me as mordomias.)

Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito "sem aldrabices" por ordem expressa e vigilante da nossa mãe, íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma cama para a Nanda e a cama maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Dramalhão. Mas tudo dentro dos conformes, pela moral e pelos bons costumes, tudo muito a bem da Nação. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora má e ciumosa que fazia a vida negra ao senhor viúvo e bom que gostava da menina tísica e bela que tomava conta dos quatro filhinhos dele, senhor viúvo e bom, a qual senhora má e ciumosa, todos concordávamos com a nossa mãe, era realmente "uma grande cabra", embora eu não visse nisso grande defeito. Na escola já tinha feito algumas redacções sobre "A cabra" e por isso sabia que a cabra é um animal doméstico e serve, nomeadamente, para a nossa alimentação, que era assim que a coisa se rematava.

O teatro terminava, vinha a ficha técnica - porventura autoria ou adaptação de Odette de Saint-Maurice, certamente as vozes de Jorge Alves, Manuel Lereno, Carmen Dolores, Rui de Carvalho, Eunice Muñoz ou Canto e Castro... nos papéis de -, mas a nossa mãe só desligava depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis", que ainda era mais mágico. Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer.

Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz. Radioso.

P.S. - Hoje é Dia Mundial da Rádio.

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