Situemo-nos: Fafe, finais da década de sessenta do século passado. A cidade triste e ausente de hoje em dia era então uma vila buliçosa, boémia e próspera. As Turicas moravam numa enorme e decadente casa aburguesada da Rua Monsenhor Vieira de Castro, mesmo em frente ao Toninho da Luísa, do lado direito de quem desce para o Picotalho ou para a Recta, depois do cruzamento do Santo Velho e, infalivelmente, dos tascos do Paredes e do Zé Manco. Nem cinquenta metros antes, resvés com o prédio do Café Chinês em construção e a longa entrada para a casa das Jerónimas na outra berma da estrada, perigosamente sem passeio, moravam as Grilas. Irmãs, duas, se não me engano, velhas no meu critério de criança, solteironas, desgrenhadas, professoras e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado, e quando meteram telefone em casa ligaram ao meu avô a perguntar se o telefone dos Bombeiros "também tocava em português" como o delas. Que se segue: derivado à proximidade geográfica entre as duas distintas famílias, havia e há quem, mesmo entre os especialistas e seus derivados, confunda as Turicas com as Grilas - o que é uma vergonha e de uma intolerável ignorância numa terra tão prenhe de historiadores e simpatizantes como a nossa.
Mas as Turicas, que foi ao que eu vim hoje, outra vez. As Turicas também eram irmãs e também eram duas, tanto quanto me lembro. Pequeninas e idosas, resmungonas e prendadas para os mais delicados lavores, faziam renda de bilros sentadas num banquinho junto às imponentes portadas que davam para a rua. Rendas de bilros, isso mesmo. No rés-do-chão do ancestral casarão, as Turicas entretinham-se com uma loja mais antiga do que elas e que cheirava a um mofo muito bom. Vendiam botões e tafetás, fitas de nastro, fechos, colchetes, linhas, lãs, chitas, agulhas e flanelas, sobretudo monos, tudo armazenado há séculos numas prateleiras altas, enegrecidas e carunchosas. E davam conselhos. Sorrateiramente, vendiam também vinho ao garrafão nas traseiras do estabelecimento, com vistas para um exuberante quintal sem fundo. As boas senhoras, certamente latifundiárias não sei onde, mantinham uma "criadita" que abria a porta a quem ia comprar vinho. E a miúda tinha umas mamas. Uma vez a minha mãe mandou-me ao vinho com dinheiro certo e tempo contado, e eu pedi à rapariga se me deixava apalpar-lhe as mamas numa pressinha. Ela não deixou e eu apalpei. As mamas eram de papel e foi-me um desgosto muito grande. Até hoje.
Ora bem. Hoje é Dia da Rendilheira. A maior renda de bilros do mundo é portuguesa, de Vila do Conde. Tem 52 metros quadrados, foi fabricada por 120 rendilheiras e entrou para o livro de recordes do Guinness no dia 2 de Agosto de 2015. E eu, que gosto de destoar, lembrei-me das nossas Turicas.
quarta-feira, 2 de agosto de 2023
Rendas de bilros e mamas de papel
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As Turicas. Lembro-me de estar dentro da loja e olhar para aquela porta e pensar:"Como será lá dentro?" Nunca soube. So soube como era o apartamento do Aníbal alfaiate um tempo depois, levado pelo Berto, o filho. Aliás, Berto era um nome ultra popular naquela zona vila, sabe-se lá porquê. As Grilas? "5 tostões de grilas e o resto de catarrutchas." Era assim que levava-mos as duas à loucura. Mas, no fundo, no fundo, beeemmm lá nos confins, elas até gistavam...
ResponderEliminarE tu já não apanhaste, creio, o Berto Vaqueiro, filho da Milinha Vaqueira, que se estabeleceu em Braga. Em todo o caso, ele há Bertos e Bertos, e os Dantas, os dois, foram, são, casos à parte e, felizmente, também parte da nossa vida.
EliminarRecordo do sobrenome, ou apelido, Vaqueiro e só. Quanto aos Bertos, na minha família ainda avô (AlbertoDantas), o Chico (Francisco Alberto) e o meu irmão (António Alberto). Mas sim, aqueles dois eram muito, muito especiais.
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