A ver se me faço compreender: sempre fui praticante de asas e pescoços de frango, de ossos da suã, de iscas de fígado, de caras de bacalhau e de cabeça de pescada, se for inteira. Fui e sou. Sei dar-lhes o valor e as voltas: cá em casa são petiscos. Ainda não necessidade. À fressura é que nunca mais tornei. Ainda não precisei de tornar.
E em miúdo até era eu quem ia ao Talho, a mando da minha mãe, comprar "um quarto de fresura" para a massa do almoço, "se faz favor". Na minha ideia só havia um talho na vila, e por isso era com maiúscula, e não há uma mãe como a minha.
Já sabem que éramos pobres. Tão pobres, que a nossa fressura só tinha um esse, não havia dinheiro para mais. Comíamos "fresura" porque era o mais em conta que havia aparentado com carne para comermos à semana. E casava muito bem com massa, que era também comida de quem apenas sobrevivia. Eu aprendi a gostar e gostava sobretudo do rinca-rinca do cano. Já a parte do bofe fazia-me uma certa impressão e ainda hoje sou contra as chiclas. Ao domingo comíamos bife, microbife, é preciso que se note, ainda assim bife, porque a minha mãe tinha artes de ilusionista, truques de economia. A minha mãe fazia comida muito boa e, não vamos mais longe, devia ser ministra das Finanças.
A minha mãe passou por muito e diz que o 25 de Abril foi o melhor que aconteceu em Portugal. Isso e os títulos do FC Porto, que antes eram a bem dizer proibidos. A minha mãe não admite marcha-atrás. "O povo é tolo! Pobreza era no tempo do fascismo", diz a minha mãe, e os títulos do Benfica também eram. A minha mãe defende a democracia com unhas e dentes. Estamos de volta à fressura, mas a minha mãe garante que a democracia não tem culpa. Diz que é preciso ter muita lata para atirar pedras à democracia, com o povo que somos e os políticos que temos. E se a minha mãe o diz...
P.S. - Hoje é Dia Mundial das Massas. Curiosamente, no Brasil é também Dia da Democracia.
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