David Alves ensinava: o melhor guarda-redes do mundo era Clemence, o inglês. Nem o checo Plánicka, nem o russo Yashin, nem o alemão Sepp Maier, nem outros que tais - antes, durante e depois. Era Ray Clemence, que nos anos setenta e oitenta do século passado brilhou ao serviço do Liverpool e da selecção inglesa. E o David sabia do que falava: ele próprio tinha atrás de si uma interessante carreira como guarda-redes, posto que de mais recatados recursos. Sendo de Fafe, fizera a sua formação nos juniores do FC Porto, passou algumas temporadas no Paços de Ferreira, se não me engano, e ainda o vi jogar pelo Desportivo das Aves, creio que no tempo em que por lá andava também (ou andou pouco tempo depois) um famoso defesa central chamado Kentucky, que só me lembrava os Definitivos, pecados velhos. Por outro lado, o David Alves foi o primeiro José Mourinho que eu conheci. Isso mesmo. O David era inteligente, culto e visionário, carismático, tinha mundo, era um estudioso e metódico transgressor, promovia a acção psicológica: com um par de décadas de avanço, inventou em Portugal aquilo que hoje em dia é corriqueiro em todo o lado. Pensador por natureza, pedagogo, ele passava o futebol ao papel, e do papel passava o futebol ao campo. E no campo era bonito de se ver. O treino era ciência, os treinos eram aulas - ele levava-me muitas vezes para assistir. E era uma prazer ouvi-lo. Se não me engano, o David começou a carreira de treinador no Maria da Fonte, da Póvoa de Lanhoso, e eu pressentia que ele iria longe, muito longe, primeira divisão, estrangeiro até. A vida, porém, não lhe deu tempo para levantar voo...
Por aquela altura, o meu Fafe padecia de um guarda-redes suplentíssimo que tinha o insuspeito nome de Queimado. E, diga-se em abono da verdade, o rapaz era realmente um frangueiro de créditos firmados. Era uma acrobata voador, um contorcionista, um funambulista, um malabarista, um ilusionista até - guarda-redes é que não! O Queimado, que equipava muito bem, adelgaçado, exuberante, calção de licra comprido e justinho, à ciclista, e camisola verde dos pontos, voava de um poste ao outro leve como pluma em bico de pomba branca, pomba branca, inventava cabriolas impossíveis, pinchos sobejamente desnecessários, golpes de rins praticamente incapacitantes, e a bola, ignorada e ressentida, pimba!, sempre no fundo das redes. A baliza, com o Queimado, era um circo sem fundo.
Pois o inglês Clemence era exactamente como o nosso Queimado, mas ao contrário. Era esse o exemplo, era essa a comparação absurda que o David nos apresentava para explicar. Para ensinar. Clemence vestia à antiga. Na baliza, era elegante, fleumático, sóbrio, poupado e sobretudo eficaz. Simples. Tinha a bola sempre debaixo de olho, e nunca ninguém o viu voar para ela se ele podia dar um passo ao lado e agarrá-la definitivamente e sem outros sobressaltos. "Um passo ao lado", esta me ficou. Fácil, não é? E era assim que o David Alves ensinava.
Raymond Neal "Ray" Clemence pertence ao restrito clube dos grandes jogadores que fizeram mais de mil jogos oficiais durante a carreira. Morreu em 2020, tinha 72 anos. Lembrei-me dele e deram-me saudades do David Alves, que morreu estupidamente muito mais cedo na idade, numa idade em que devia ser proibido morrer. O David morreu e ficámos todos a perder. Portei-me mal com o David, e nunca lhe agradeci como devia todo o bem que ele me quis e fez, tudo o que me ensinou da vida, das vidas. É um dos meus maiores arrependimentos, e oh se tenho tantos! Ia escrever quatro linhas sobre o Clemence, e vejam no que isto deu...
Já disse. Qualquer dia, quando eu estiver pronto, espero escrever a sério sobre David Alves, o nosso David Alves, guru natural e sem querer de uma ou duas gerações de jovens fafenses. Fomos uns sortudos!
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Grande Senhor. Ahhh como eu gostava de entrar na "Podium", conversar com ele e o Naninho e sentir o cheiro dos equipamentos, bolas, etc , novinhos...
ResponderEliminarEra realmente um prazer e um privilégio conversar com e sobretudo ouvir o David Alves.
EliminarFoi meu treinador nos juvenis. Naquela altura utilizava métodos de treino e estratégias de jogo atuais. Lembro-me que queria pressão quando o adversário tinha a posse da bola, por ex... Era exigente e tolerante, um líder. E amigo da malta nova com quem gostava de conviver, sem nunca confundir o trabalho com o lazer. Uma pessoa de respeito que captou a admiração de uma geração.
ResponderEliminarMarinho
Muito obrigado pelo seu comentário.
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