quarta-feira, 31 de julho de 2024
Raios e Corisco
Como se sabe, Zeus é o pai dos deuses, o deus dos céus, dos raios e dos relâmpagos, o fiscal que mantém em sentido toda a mitologia grega, e em Roma chama-se Júpiter. Os raios eram lanças muito grandes produzidas em série pelos gigantes ciclopes, criaturas de um olho só, como a gaita do Bitó. Estas lanças, suponho que de fogo, depois de prontas eram entregues ainda quentinhas a Zeus, que as atirava com toda a força sobre os homens pecadores e arrogantes, quanto mais longe melhor, e assim começaram os Jogos Olímpicos.
Foi aí que apareceu o Franklin. Benjamin Franklin, polímata americano que, entre outras habilidades, inventou o pára-raios, segundo aprendi na Escola da Feira Velha. E foi a nossa sorte. Assim se livrou a humanidade da fúria de Zeus, regra geral, e dos seus raios e coriscos. O Corisco, faço notar no entanto, era um cãozinho de banda desenhada no antigo jornal O Primeiro de Janeiro, que morreu sem que ninguém em Portugal se importasse. O jornal. O jornal é que morreu, como outros jornais que também morreram sem notícia na necrologia. Se fosse um cão, seria uma tragédia...
terça-feira, 30 de julho de 2024
Zé Cão, boxevista olímpico e invicto
O Valença, uma das glórias do futebol local, gostava de se meter com o Zé Cão. Na verdade, o Valença gosta de se meter com toda a gente, mas o que aqui interessa é o Zé Cão. E o Valença, quando o apanhava a jeito, obrigava o Zé Cão a contar vezes sem conta as suas idas ao Porto, ao Royal e ao Derby, velhos cafés de putas na Rua Chã, quase em frente um do outro, e o bom do Zé ia lá para aliviar o tesão a preço combinado, e uma famosa ocasião teve mesmo de se haver com um "boxevista", um "boxevista" a sério, na parte de cima da Ponte de Luís I, ali ao pé, discutindo exactamente por causa das senhoras. E o Zé Cão ganhou. Ganhou, evidentemente, nem podia ser de outra maneira, o Zé Cão era nosso. E a piada a espremer da historieta era tão-só fazer o Zé Cão dizer "boxevista", isto é, "bocsvista" ou "boquessevista". A mando do Valença, o Zé Cão dizia, e tornava ao combate, e fazia os gestos como foi, e disparava ganchos e uppercuts, cruzados e directos, e era um campeão sem sair do seu canto, desajeitado, quase caindo, porém olímpico e ainda invicto, a lutar por merecer mais um quartilho de verde tinto que uma alma caridosa fizesse o favor de lhe pagar...
segunda-feira, 29 de julho de 2024
O domador
A concha
domingo, 28 de julho de 2024
Natureza de conserva
É preciso ter lata
P.S. - Hoje é Dia Mundial da Conservação da Natureza.
De régua e esquadro
sábado, 27 de julho de 2024
Os animais da minha infância
sexta-feira, 26 de julho de 2024
Jogava-se ao tene
quinta-feira, 25 de julho de 2024
O nosso homem no terreno
quarta-feira, 24 de julho de 2024
Volta a Portugal em bicicleta!
- Volta a Portugal! Volta a Portugal em bicicleta! - pediu-lhe insistentemente a mulher, num derradeiro telefonema de aflição. E ele voltou. Mas veio de carro.
Somos todos primos e primas
- Sou, com efeito, um bocado parvo, mas como é que o caro senhor adivinhou?
- Um pressentimento. É que eu também sou...
- O caro senhor também é um pressentimento?
- Não, não, caro senhor: também sou um bocado parvo.
- Como o mundo é pequeno! Somos então praticamente primos...
- Parentes, pelo menos...
- E, mal que lhe pergunte, o caro amigo é um bocado parvo por parte da senhora sua mãe ou por parte do senhor seu pai?
- Por parte do senhor meu pai.
- Mas isso é extraordinário, caro amigo, porque eu também sou...
- O caro amigo também é um bocado parvo por parte do senhor meu pai?
- Não, não, caro amigo: sou um bocado parvo mas por parte do senhor meu pai.
- Oh, que pena! Afinal quase que éramos irmãos, não é?...
terça-feira, 23 de julho de 2024
A Milinha Modista
Foto Tarrenego! |
segunda-feira, 22 de julho de 2024
O meu professor de rali
Eram outros tempos. Fazíamos o caminho de regresso até ao carro pela estrada do troço de competição, encostando à berma quando se aproximava o roncar de mais um motor, mas (o Fredinho tinha razão) aquilo era só bazófia, muito roncar e pouco motor. Dava tempo para tudo. Até para cumprimentar pilotos e penduras da segunda metade da tabela, que estavam no largo do famoso Santuário de Nossa Senhora das Neves ainda à espera da ordem de saída. O Fredinho conhecia aquela malta toda. Ele, Alfredo Bastos, também tinha sido corredor de ralis.
Nós íamos no Vauxhall verde e cinza que o Fredinho levara à Rampa da Penha, e eu fui lá a pé para ver, uns anos antes, no reinado do estupendo Chevrolet Camaro de Ernesto Neves. O icónico Vauxhall, preparado pelo próprio Fredinho e pelo avinhadíssimo Valdemar Mecânico, ou "Paredes", ainda mantinha as barras de protecção e os assentos e volante de competição. Era de uma incomodidade dolorosa, porque andávamos sempre nas horas, e de lado, mas extremamente seguro. Diziam ao Fredinho que ele conduzia muito bem. Ele respondia: "Toda a gente conduz bem até bater. Eu também."
O Rali em Fafe era a Lagoa e era um mundo. Só anos depois é que foram inventadas as outras classificativas, as que agora chamam milhares e dão nas televisões com saltos e tudo, ideia e obra original de Parcídio Summavielle, o pai, presidente da Câmara entre 1979 e 1997, uma sorte que nos aconteceu felizmente no tempo certo, e muito para além das corridas de automóveis. Hoje é Dia da Aproximação de Pi e impunha-se, de justiça, este acrescento.
domingo, 21 de julho de 2024
Fafe livre de perturbações
Foto Hernâni Von Doellinger |
Tomai e comei todos...
Duas das principais especialidades da casa panfletariamente publicitada são o "pollo na brasa" e a "costilla de cerdo". Para além dos mais emblemáticos pratos da cozinha tradicional portuguesa, do cozido e da picanha aos diversos bacalhaus e pescada cozida com todos, passando pelo cabrito, pelo leitão, pela vitela, pelo arroz de tamboril e pelo polvo, e com capacidade para 400 - sim, quatrocentas - pessoas, tem também "francezinhas, pizzas e hamburguers". É a promessa de todo um mundo, posto que regional e com ar condicionado. A quem se apresentar com o papelinho na mão, o imenso restaurante diz que regala "una botella de viño para levar p/ casa".
Enquanto isso, duas da tarde, o sol a pique nos semáforos do cruzamento cosmopolita, um dos dois emissários do "asador" farto, generoso, climatizado, bilingue e extraordinário, por acaso o mais velho dos evangelizadores gastronómicos, abre um pequeno saco se papel castanho que trazia no bolso das calças e rapa de um lanche já encetado. Dá uma, duas dentadas e volta a guardar a sande pré-fabricada e dura no saco gorduroso e nas calças idem. Limpa a boca com as costas da mão, sacode as migalhas da camisa suada e continua a distribuir papéis. Assim, a seco.
P.S. - Hoje é Dia da Junk Food.
sábado, 20 de julho de 2024
Um pirolito pra mim, um pirulito pra ti
A Lua era em câmara lenta
P.S. - Hoje é Dia Internacional da Lua.
sexta-feira, 19 de julho de 2024
Eu sarapinto, tu sarapintas, ele sarapinta
Em 1976 a AD Fafe resolveu de repente montar de raiz uma equipa de ciclismo e apresentar-se à Volta a Portugal. Não terá sido bem a AD Fafe, mas algumas pessoas ligadas à AD Fafe e amantes das bicicletas, e tudo foi feito em cima do joelho, como convém às grandes empreitadas. Foi-se ao refugo do pelotão nacional e arranjaram-se dois ciclistas e mais dois ou três acompanhantes e desistentes garantidos. Os ciclistas eram o jovem António Alves, que posteriormente brilharia ao serviço do FC Porto, do Coimbrões de mestre Emídio Pinto, se não me engano, e do Boavista, entre outros clubes, e Manuel Martins, fafense de Golães e irmão mais novo do campeão José Martins. Dos outros, infelizmente, não reza a história. Foi-se praticamente à sucata e arranjou-se um velho Mercedes que seria, por assim dizer, recuperado e "preparado" para carro de apoio na garagem do Zé Bastos, ao lado dos antigos Bombeiros. O veículo, que avariava muito bem e parou vezes sem conta nas voltas da Volta, sobretudo quando fazia mais falta aos corredores, era o único acrescento logístico da equipa e seria guiado pelo Fredinho Bastos, condutor experimentadíssimo em corridas mas de automóveis. E foi-se a Pousada de Saramagos, Famalicão, tentar contratar um "treinador".
Uma embaixada fafense deslocou-se à loja-oficina de Carlos Carvalho, que ficava ali à face da estrada nacional, quem depois vira para o campo de futebol do Riopele de má memória pelo menos para nós. Iam talvez o grande Chico Marinho, de quem um dia falarei à parte, o despachado Machadinho, que também já era cobrador da AD Fafe, desse tenho a certeza, não sei se o Fredinho, o David Alves e o seu irmão Gabriel, eventualmente, e por certo alguém da direcção. Posso garantir é que eu fazia parte dessa delegação de alto nível, como modesto observador e porque, tratando-se de Fafe, naquele tempo da minha juventude eu ia com toda a gente para todo o lado. Em Fafe, não sei porquê, estive no meio de tudo ou tudo passou por mim. Fui portanto um espectador privilegiado da história da nossa terra naqueles anos imediatamente antes e após o 25 de Abril de 1974. Ou então, também admito estoutro ponto de vista, fui apenas um considerável emplastro, mas quase sempre a convite, é preciso que se note.
quinta-feira, 18 de julho de 2024
Fafe e a Guerra dos Cem Anos
Ora bem. Eu cuido que a Batalha de Castillon ocorreu em Fafe, exactamente em Fafe, numa antiga elevação situada entre a Ponte do Ranha, o Socorro, a Alvorada, a Fábrica do Papelão, a casa da Dona Aurora e o Estádio, com os campos e bouças de Cavadas aos pés. Ali se alcandorava, com efeito, o famoso monte de Castelhão, como se diz em português corrente, ou Castilhom, como se diz em fafês correcto - e portanto está fácil de ver onde franceses e ingleses foram buscar local e nome para a refrega. O monte de Castelhão era, na verdade, um sítio aprazível para a realização de todo o tipo de batalhas, como por exemplo brincar aos cobóis, e tinha um belíssimo pionono, de que infelizmente não há muita certeza. Mas isso é outra história.
Em todo o caso, não será certamente despiciendo relembrar mais uma vez que Fafe, o seu centro histórico e arredores consuetudinários, sempre dispôs das melhores e mais vantajosas condições naturais e estruturais para a realização de grandes eventos e mesmo certames de índole nacional e, como se vê, até internacional ou mais, nomeadamente batalhas e guerras de uma forma geral e dos mais diversos feitios. É uma terra que fica à mão e onde medram e farturam equipamentos a esse respeito e subsídios camarários. Não por acaso, suspeito que, como já aqui demonstrei, a própria Batalha de São Mamede, fundadora da nacionalidade, foi em Fafe que realmente se desenrolou, pelo menos um bocadinho, e ainda ninguém me conseguiu provar o contrário.
quarta-feira, 17 de julho de 2024
Os cabeçudos
Cabeçudos é uma antiga freguesia, ali já em Famalicão, encostada a Santo Tirso. É também o que se chama ao que ou a quem tem cabeça grande, às pessoas que gostam de teimar, os casmurros ou teimosos, a todos os estúpidos de uma forma geral e às pequenas figuras antropomórficas com cabeçorras de papelão que acompanham os gigantones nas arruadas saltitantes e musicais pelas feiras e romarias particularmente minhotas. Cabeçudo é ainda nome de ave, de peixe e de larva, o girino dos batráquios, nomeadamente anuros. Mas, em Fafe, cabeçudos eram sobretudo os ricos, os poderosos, os importantes, os graúdos, os figurões, os de cima, os chefes, os manda-chuvas, enfim, como também se dizia, o cagões, os cães-grandes. Exactamente, eram cabeçudos e, para mim, ainda são.
terça-feira, 16 de julho de 2024
O Mola assobiava que era uma categoria
O Mola. Mola, por outro lado, também pode ser masculino. Nesse caso escreve-se com maiúscula inicial, diz-se o Mola, e deve informar-se que morava, se não me engano, quem vai para a Fábrica do Ferro, resvés com a descida final, frequentava evidentemente o velho Peludo e, por morte deste, o Arcada. É preciso também que se diga que o Mola trabalhou muitos anos no Vitória de Guimarães e depois na AD Fafe, que era elegantemente discreto, cordato, sábio, infalível aos amigos e discípulos, noctívago, malandro, apreciador de bandas filarmónicas e ele próprio exímio executante de assobio, económico nas palavras, e tinha piada fina. Grande Mola! Uma figura mítica, irrepetível, um fafense excelentíssimo.
E eu sou um gajo cheio de sorte. Num dos meus bissextos retornos a Fafe, há coisa talvez de cinco anos, vi o Mola. Calhámos eu e ele à hora de almoço no Fernando da Sede (Adega Popular) e comoveu-me o reencontro. Não falámos, porque eu não ousei. Eu estava com o meu filho e senti um prazer tremendo, uma vaidade sem medida contando ao Kiko a grandeza daquele homem, a importância que ele teve na vida do meu amigo Pimenta e a importância que o Pimenta teve e tem na minha vida. Antes de sair e de dar o meu segundo abraço ao Fernando, mandei ao Mola um sinal de obrigado e ele deu-me em troca um sorriso tímido e límpido, talvez ausente, secreto, quem dera que pelo menos lhe tenha passado pela cabeça, ainda que por acaso, "acho que em tempos conheci aquele miúdo"...
segunda-feira, 15 de julho de 2024
Lágrimas parvas por Marcelo
De certeza que foi gente de Queimadela. Queimadela estava sempre presente! "Não esperava esta manifestação, mas compreendo-a", dizia Marcelo, modestíssimo, do alto da varanda do Palácio de São Bento, rodeado pelos pândegos mandadores de Vivas!, assim à moda do nosso Velhinho, o Castro Mendes de Travassós, o trabalhista fafense, "ide por esses tascos abaixo, comei, bebei e pagai". E depois Marcelo falou de política, mas isso já não me interessava. Eu estava outra vez comovido, ranhoso, mas agora de auto-satisfação nacionalista, de respeitoso respeito a Sua Excelência. Quem me dera estar lá também com o garrafão. Ainda por cima eu nunca tinha ido a Lisboa e o vinho, certamente como a viagem, devia ser também de graça. Chorei, pois claro que chorei, e as lágrimas já me toldavam o preto-e-branco do aparelho, mas saí dali de alma lavada e, se querem que lhes diga (e ainda que não queiram), também eu algo desagravado. E então ri-me. Junho de 1973. O Marcelo era Caetano e eu, burro como uma porta, pensando que sabia tudo, ainda não sabia nada.
domingo, 14 de julho de 2024
Liberdade de pensamento
- O mundo?
- O gado.
Pensamento do dia
O homem profundo
sábado, 13 de julho de 2024
Portugal gaiteiro e excursionista
Foto Tarrenego! |
Para o avô da Bomba, como para todo o fafense que então se prezasse, a palavra praia queria dizer Póvoa de Varzim. Exactamente. Ir à praia e ou ir para a praia (conceitos que importa diferençar) era ir à Póvoa ou ir para a Póvoa, via Famalicão. E no entanto o meu avô conhecia também satisfatoriamente os longínquos areais de Ofir, da Figueira da Foz e da Nazaré, o que já não era brincadeira! E de onde é que lhe vinha esta extraordinária mundivivência, este cosmopolitismo fafense tão antes do tempo? Pois bem: o meu avô organizava excursões - dois dias ao Alto Minho, com pernoita em Viana do Castelo, dentro do autocarro, no Largo da Agonia a esbordar de camionetas e parolos como nós, e umas senhoras cá fora a fazerem café de cafeteira em máquinas a petróleo, à luz do petromax até que o sol nascesse. Três dias a Fátima, pelo 13 de Maio. Ano sim, ano não. Partida e chegada no quartel dos Bombeiros, sempre, então na Rua José Cardoso Vieira de Castro, ao lado da garagem do Zé Bastos e entre os dois palacetes. Com as estradas que tinha, Portugal era naquele tempo um país imenso. Ir de Fafe aos Arcos de Valdevez ou a São João da Madeira, por aquela altura, era como embarcar por engano numa expedição de Júlio Verne ao fim do mundo. Agora imaginem uma viagem praticamente de circum-navegação com escala no Portugal dos Pequeninos e no Mosteiro da Batalha, e com procissão de velas e tudo. Era um verdadeiro acontecimento, um marco de vida!
O meu avô era um videirinho, já aqui contei. Tinha casa e salário de quarteleiro dos Bombeiros, não sei se era muito ou pouco, mas não perdia oportunidade de fazer dinheiro extra no que lhe estivesse mais à mão: o tasquinho na cave do quartel, os tremoços, os bolinhos de bacalhau e o vinho na Festa da Bomba, a aguardente e o vinho, sempre o vinho, nas sessões nocturnas do cinema ao ar livre na parada das traseiras, muito antes de a sétima arte descer ao campo de futebol, a banca de sapateiro por baixo das escadas que subiam para o salão de festas, umas refeições especiais encomendadas por um certo grupo de amigos, respeitosos admiradores das mãos de ouro da minha avó para a cozinha. Uma vez há mais de cinquenta anos o papa Paulo VI veio a Fátima e pouca gente tinha televisão em casa. No salão dos Bombeiros foram montados um projector e uma tela para a transmissão em directo e em "ecrã gigante", com entradas a pagar. A sala encheu, o dinheiro da receita revertia naturalmente para a Associação Humanitária, mas de certeza que o avô também conseguiu sacar dali algum, nem que fosse a vender rebuçados para a tosse ou cascas de amendoins...
Ora é aqui que encaixam as excursões, que os candidatos a excursionistas pagavam em suaves prestações semanais desarriscadas nuns cartõezinhos que o meu avô mandava fazer na tipografia. Isto para aí durante um ano. O avô da Bomba fazia a cobrança aos sábados ou domingos de manhã, não sei precisar. Ia de motorizada e às vezes levava-me, primeiro numa Florett e depois na Lambreta, uma Vespa azul, antes e depois de haver sentidos proibidos nas ruas de Fafe. Para o meu avô nunca houve, o caminho foi sempre o mesmo e tinha sempre razão quando lhe apitavam ou gritavam para não ir por ali. Eu, nem pio...
(A Florett tem muito que se lhe diga em Fafe, era um veículo de pecado, mas por ser verdade aqui declaro que o meu avô nunca foi dado a essas actividades por assim dizer extracurriculares. A Florett calhou-lhe, e só isso...)
Mas as excursões. Eram viagens épicas, cheias de cheirinho bom a merendeiro e muitas paragens para "mudar a água às azeitonas", enjoos e borracheiras de caixão à cova. Cheiravam também a gomitado, a naftalina, a sapatos novos, a botas ensebadas de fresco, a chulé, a urina, a tabaco, a suor, a desodorizante Lander, a perfume barato, a brilhantina, a laca, a mundo. A coberto da noite soltavam-se uns traques enfeitados com risinhos solertes que ajudavam à festa. Era uma convívio muito grande. A camioneta avariava, pessoas perdiam-se. Cantava-se o "Treze de Maio", o "Queremos Deus" e "O carrapito da Dona Aurora". Rezava-se o terço ao passar a Ponte de Fão, sobre o rio Cávado, porque constava que a estrutura estava a cair de podre. Morreríamos todos muito bem - iríamos para o céu, se Deus quisesse, embora o grupo excursionista do meu avô se chamasse, com todo o mérito, "Grupo Excursionista "Os Arrebenta Pipas" - Fafe", assim tal qual, num pano hasteado por dentro no vidro traseiro da camioneta. Na Póvoa as mulheres arregaçavam saias e combinações, os homens arregaçavam calças e ceroulas e os miúdos ficavam em cuecas ou em pelote, consoante a idade, e todos se agarravam com quanta força tinham à grossa corda que ligava o mar ao areal, brincando aos sustinhos e trambolhões de felicidade histérica ali no sítio onde o mar enrola na areia, que também se cantava.
Sei disto tudo porque estive lá. Que me lembre, fui uma vez a Fátima e outra ao Alto Minho, esta ainda com o meu pai. O meu irmão Lando ainda não tinha nascido. Eu, o Nelo e a Nanda queríamos ir sempre, mas não podia ser. O meu avô não dava borlas, nem aos netos. (Na verdade, o meu avô não dava nada a ninguém. Isto é: dava os bons-dias mas pedia recibo com número de contribuinte.) Ia portante só um, e no colo da mãe, mais do que isso seria prejuízo.
O meu pai, que gostava de fazer rir a minha mãe, dizia aos dois que ficavam: "Não é preciso chorar, vós também ides. Na sombra..."
Tanto relambório para chegar aqui: herdei do meu avô o horror à praia em dias de sol e gente, mas tenho a árvore que ele reclamava. Uma árvore na praia. Encontrei-a aqui em Matosinhos, mesmo ao pé da porta, encostada à esplanada do Lais de Guia. Passo por lá todos os dias e vejo o avô à sombrinha, com os pés mansamente enfiados na areia morna. Gosto de o ver assim, peço-lhe a bênção e beijo-lhe a mão. Sossego as saudades. O avô da Bomba era molageiro e videirinho, forreta do piorio, mas é meu.
sexta-feira, 12 de julho de 2024
Agnus day
Foto Hernâni Von Doellinger |
quinta-feira, 11 de julho de 2024
Ia-se a São Bentinho
Anos depois, o meu filho era criança e apareceu-lhe um cravo numa pálpebra. Uma vez a minha avó viu, pediu-me licença e disse que ia falar com São Bentinho sobre o assunto. Quando queria falar com São Bentinho, a minha doce avó Emília ia pessoalmente, a pé, ainda mais pequerricha e ainda mais velhinha, desde Passos, Cabeceiras de Basto, até Rio Caldo, em Terras de Bouro, onde o santo morava. O cravo desapareceu.
A minha avó era uma santa. Se eu puxasse pela cabeça, tenho a certeza de que me lembraria de um terceiro e definitivo milagre da minha avó em promessa com São Bentinho, mas não quero arranjar problemas ao Vaticano.
O Vaticano tem muito mais que fazer do que ocupar-se com a comezinha história da Bó de Basto, que, cada vez mais velhinha e e cada vez mais pequerricha, continuava a ir a pé entender-se pessoalmente com São Bentinho sempre que era preciso - até morrer. O Vaticano tem coisas muito mais importantes a tratar, e mesmo assim não trata, que faria se tivesse de tomar conta do assunto da minha avó...
quarta-feira, 10 de julho de 2024
Lapsus linguae
Foto Hernâni Von Doellinger |
terça-feira, 9 de julho de 2024
O trabalhista fafense
Anjinhos, não!
Deveria querer dizer alguma coisa a nosso respeito, agora que penso nisso, mas não sei se diz. Já repararam, certamente. Não há procissão no mundo que leve e chame tanto povo como a procissão da Senhora de Antime, em Fafe. Um mar de gente, povo atafulhado, a rebentar pelas costuras, sem espaço sequer para descruzar os braços e coçar repentinas aflições. Isso, povo em barda e de todos os feitios. Nós. O povo da terra, inteiro e simples, ali na procissão como na vida. Povo, povo, povo. Mas anjinhos, não...
segunda-feira, 8 de julho de 2024
Os dias da Senhora de Antime
Pintura de FERNANDA AGUIAR / foto CÂMARA DE FAFE |
sábado, 6 de julho de 2024
Como é que eu hei-de?
Foto Hernâni Von Doellinger |
Acontece que apanhei a velha cantiga no outro dia, por acaso, no rádio do carro, pus mais alto, é claro que pus mais alto, cantei também, cheio de garbo e perdigotos, a minha mulher servia à pinta, gostei tanto daquele inesperado reencontro que o estupor da música chegou ao fim e eu fiquei ali à espera que ela, a música do Nel, entenda-se, voltasse automaticamente ao princípio, recomeçasse em delirante moto-contínuo, como naquele tempo de abraços e vinho em Fafe, e vieram-me umas saudades do caraças, chorei como se tivesse falhado um penálti, quer-se dizer, chorei apenas um bocadinho, quase a seco.
O "Azar na praia" é hoje em dia, para mim, um clássico da verdadeira música popular portuguesa, quadrada e frequentemente desnecessária, paradoxal, convencida e ingénua, irrelevante e eterna, melodia simples e orelhuda, letra singela mas cheia de significado, como as homenagens no tempo do antigo regime e parece que agora outra vez também. A voz do Nel Monteiro, fraquinha, coitadinha, quase a fugir-lhe para parte incerta, aquela falta de ar no final das frases, os ésses rurais e honestos cantados como se trouxessem vento norte, não se arranjaria melhor nem por encomenda. E faço notar que não estou aqui no gozo. Acho esta canção realmente muito bem esgalhada, plenamente conseguida, sobretudo tendo em vista o público-alvo, tudo a bater no ponto, enfim, uma obra que só não digo que é prima porque lhe desconheço a parentela.
Nel Monteiro tem uma linda história de vida e disse uma vez que conheceu muito bem Marcelo Caetano e Salazar - "Fui sempre um ídolo dele", asseverou aliás, sem rodeios, em relação ao de Santa Comba. A extraordinária revelação entregou-a de borla à TVI, numa entrevista ao Manuel Luís Goucha, que em questão de importância, digo eu, também não é menos do que os outros dois figurões. A coisa passou-se no dia 1 de Abril de 2022. Em Dezembro do ano passado, Nel Monteiro voltou à TVI e ao Goucha para contar as necessidades que passaram, ele e a mulher, derivado à pandemia. Que "foi um sufoco muito grande", que até deixaram de levantar medicamentos da farmácia por falta de dinheiro - declararam e, naturalmente, choraram. Choraram, como é de lei nestas ocasiões.
Pronto. Hoje é Dia Mundial do Biquíni e por isso tornei a lembrar-me do nosso Nel Monteiro, especialista na matéria. Em sua honra, em honra do bom Nel Monteiro, meu fugaz ídolo estival, e em honra de todos os biquínis mais ou menos desocupados, segue-se a famosa letra do "Azar na praia", mas um azar nunca vem só. Estais à vontade e estamos no tempo: deixai-vos de merdas! Com ou sem camisa, em cuecas ou ao léu, puxai mas é o youtube, som no máximo, e cantai comigo e com ele, vozes e corações ao alto, e que se lixe a afinação e, já agora, a vizinhança também:
Banhar-nos à praia fomos tu e eu
Mas que grande bronca nos aconteceu:
A minha camisa, o vestido teu
Quando à noitinha nada apareceu.
Muito envergonhados saímos dali
Eu em tronco nu, tu em biquini.
Não tinha dinheiro, carro também não
Viemos a pé, fizemos serão.
E ela, coitadinha, muito aflitinha gritava assim:
Ai, como é que eu hei-de, como é que eu hei-de?
Como é que eu hei-de me ir embora?
Com as perninhas todas à mostra
E os marmelinhos quase de fora…
Muito envergonhados saímos dali
Eu em tronco nu, tu em biquini.
Não tinha dinheiro, carro também não
Viemos a pé, fizemos serão.
sexta-feira, 5 de julho de 2024
Um grande nome nas festas
Contra a ditadura do biquíni
quinta-feira, 4 de julho de 2024
Fafe e o garibaldismo
quarta-feira, 3 de julho de 2024
Não escarmentarás!
Foto Tarrenego! |
Tocavam sempre duas vezes
Os carteiros de Fafe eram homens poderosos. Traziam dinheiro, levavam notícias e, sobretudo, sabiam tudo de toda a gente. A vida toda. A sit...
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Foto Hernâni Von Doellinger A minha rua era um largo. Santo Velho, como lhe chamavam os antigos, ou apenas Santo, como lhe chamávamos nós os...
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Vou a Oliveira de Azeméis, por exemplo, e levo uma data de "Ó jovem!", geralmente debitada por pessoas de bandeja na mão e com ida...
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Isto passou-se na Brecha , palavra de honra, em dia de bolo com sardinhas , portanto num sábado, se não me engano. E as sardinhas eram evid...