domingo, 30 de junho de 2024

O inexplicável Zé Manel Carriço

O Zé Manel Carriço era um exagerado e provavelmente a pessoa mais extraordinária que conheci em toda a minha vida. O Zé Manel não comprava maços de tabaco, comprava volumes de tabaco, caixotes, camiões inteiros de tabaco, navios da proa à popa! Tradicionalista, conservador, teimoso, megalómano, excêntrico, reaccionariozinho apesar de inventor patenteado, mas também inteligente, polímata, empreendedor, visionário, elegante, disponível, inexplicável enfim, o Zé Manel até comprou um jornal falido que depois publicava uma vez por ano para manter o título, até comprou um cinema por pura vaidade, vejam lá! O Zé Manel comprava tudo, e a dinheiro, não acreditava no valor do plástico e desconfiava da honestidade dos cheques. Por isso ele andava sempre com a carteira grotescamente amarrecada por um enorme molho de notas de conto como se todos os dias tivesse de ir à feira do gado mercar uma junta de bois. Ou duas. Ou três. Ou mais. As notas chegavam e sobravam para começar de raiz uma manada completa. O Zé Manel fazia questão que fosse pública e notória a sua fartura. Ah!, e o Zé Manel Carriço era um homem amiúde generoso, mesmo muito generoso, mas essa parte ele preferia que não se soubesse.
Às vezes o José Manuel, que de baptismo era Rodrigues, levava-me a umas noitadas privadas e filosóficas (ele, o Pimenta e eu) no Peludo antigo, mesmo em frente ao seu atafulhado atelier, o que nos era de uma extrema comodidade. As noitadas entravam pela madrugada dentro, porque o Zé Manel tinha muito que contar e nós gostávamos muito de ouvir. As histórias do Zé Manel eram como as rodadas de cerveja, umas atrás das outras. O Sr. Avelino fechava para nós. Comia-se um marisquito, que àquelas altas horas estava já nas últimas, e sobretudo bebiam-se finos, com tremoços, para fazer boca. Mais do que uma vez esgotámos o stock de copos, enchendo de vasilhame babujado sete ou oito mesas à nossa volta, o café inteiro, porque o Sr. Avelino gostava muito de fazer a conta no fim. Partiam-se alguns copos, o Sr. Avelino afinava, tomava nota para acrescentar ao rol. Mas o pior era o desbaste dado nos tremoços, que pedíamos repetidamente por uma questão de princípio.
Uma noite o Sr. Avelino não aguentou e queixou-se: - Sr. Zé Manel, assim não pode ser, já comeram mais de dez pires de tremoços. É um prejuízo muito grande. Os tremoços custam-me dinheiro, valha-me Deus!...
O Zé Manel foi ao bolso do casaco, sacou da carteira marreca, tirou uma mão-cheia de notas e disse séria, calma e secamente: - Ó Avelino, traz-me cinco contos de tremoços! - e pousou o dinheiro como mão de póquer em cima da única mesa de vago, sem copos, que por acaso era a nossa...

P.S. - Publicado originalmente aqui no dia 4 de Agosto de 2023.

Sem comentários:

Enviar um comentário

A munha e o munho

Os colchões eram cheios com palha ou folhelho. E as almofadas enchiam-se com munha. Isso mesmo, munha, restos de palha moída depois de malha...